Atividade marca resistência popular a empreendimento licenciado no sul do Estado
“Vamos até o extremo sul com esse grito: ‘Nem um poço a mais, nem um porto a mais’. Um grito de justiça ambiental, de justiça social. Nós não queremos a morte do rio, a morte do mar, a morte da vida. Nós queremos a vida!”. A fala é de Paulo Henrique Ling, um dos organizadores da campanha “Nem um poço a mais, nem um porto a mais”, que ecoa mais de duas décadas de resistência e chega na próxima semana ao litoral sul do Estado, com a mobilização “Pedal pela Vida”, que vai denunciar os profundos impactos socioambientais previstos com a construção do Porto Central em Presidente Kennedy.
“O porto que querem construir pode trazer muitos problemas ambientais, afetando a costa e os ecossistemas marinhos. Além disso, há um impacto social significativo sobre as comunidades locais e o risco de desequilíbrio social. Também afeta diretamente o Santuário de Nossa Senhora das Neves, que pode ser impactado com a movimentação e poluição”, ressalta.
A pedalada terá início no próximo domingo (3), com partida de Cariacica. O trajeto inclui paradas em Ponta da Fruta, Guarapari, Anchieta, Piúma e Marataízes, com chegada em Presidente Kennedy na terça-feira (5), coincidindo com a tradicional festa de Nossa Senhora das Neves. Durante o percurso, serão realizadas atividades culturais como exibições de filmes, apresentações artísticas e momentos de diálogo com pescadores e lideranças locais.

Segundo os organizadores, a construção do porto ameaça comunidades tradicionais – indígenas, quilombolas e pescadores -, além de colocar em risco ecossistemas sensíveis, como manguezais e áreas de vida marinha. O grupo também critica a poluição da água e do ar associada à presença de grandes empreendimentos ligados à mineração, petróleo e celulose. Entre as empresas apontadas estão a Vale, ArcelorMittal, Suzano, Petrobras, Shell, BP (British Petroleum), Petrocity, Bunker One, Porto Central S.A., TIL – Terminal Industrial de Líquidos, Van Oord e Port of Rotterdam.
Há um forte lobby empresarial, especialmente do setor de petróleo e gás, influenciando a condução do projeto, denuncia Paulo Henrique. “Os licenciamentos foram aprovados de forma muito rápida e suspeita. A gente sabe que existe uma ligação política por trás disso, que vai beneficiar as mesmas elites de sempre, ligadas ao petróleo”, afirma.
Ling também cita o uso de recursos e maquinário público municipal nas obras iniciais do porto, como terraplanagem. “Presidente Kennedy é o município que mais recebe royalties de petróleo no Espírito Santo, mas tem um dos menores investimentos sociais do Estado. Já teve prefeito, esposa e sobrinha presos por corrupção. É nesse cenário que querem impor mais um megaempreendimento, com baixa transparência e pouco retorno para a população local”, destaca.
Também haverá exibições do Cineclube Ambiental, com filmes sobre os impactos do Porto Central, além da performance Um Corpo Negro Sobre a Terra, ato de teatro e música. Instrumentos como casaca, berimbau e pandeiro acompanham os momentos de interação. A distribuição de panfletos e adesivos complementará as ações, transformando cada parada em oportunidade de diálogo e fortalecimento da resistência ao empreendimento.
O “Pedal pela Vida” teve início em 2008, impulsionado pela urgência de denunciar os impactos causados pela exploração de petróleo, gás natural e monoculturas de eucalipto no litoral norte do Espírito Santo. Na primeira edição, um grupo percorreu de Cariacica até Riacho Doce, na divisa com a Bahia, estabelecendo contato com comunidades tradicionais, pescadores, aldeias indígenas e quilombolas. Desde então, foram realizadas seis edições.
A atividade deste ano é organizada pelo Instituto Social Capixaba e Cineclube Ambiental, em articulação com a Campanha “Nem um poço a mais, nem um porto a mais”, a Diocese de Cachoeiro de Itapemirim, a Comissão de Justiça e Paz (CJP), a Pastoral da Ecologia Integral, a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), o Observatório Internacional do Petróleo (IOAT) e a ONG Restauração e Ecodesenvolvimento da Bacia Hidrográfica do Itabapoana (Redi).
Pela primeira vez, a atenção se volta ao litoral sul capixaba, rumo à centenária Igreja de Nossa Senhora das Neves, que celebra 275 anos. O objetivo é unir população, pescadores, artistas e lideranças contra a ameaça da construção do Porto Central, vendido como oportunidade de desenvolvimento, mas alvo de crescentes questionamentos devido aos seus potenciais danos ambientais, sociais e culturais.
A ação do grupo de ciclistas, apontam os organizadores, ecoa o apelo do Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, que convida toda a Igreja a se colocar em defesa da Casa Comum, denunciando estruturas que ferem a dignidade humana, marginalizam os pobres e destroem a criação.
A Igreja de Nossa Senhora está localizada em área de alagado. O porto será construído 4,5 metros acima do solo, o que poderá desviar a água das chuvas para a área do santuário. Além disso, a obra prevê a devastação de mais de mil hectares de mata atlântica. Outro ponto crítico é a ameaça à atividade pesqueira, que sustenta centenas de famílias e pode se tornar inviável. Os pescadores não têm sido reconhecidos como comunidades tradicionais e são ignorados nos processos de compensação.
Entre as preocupações está a situação da igreja, datada de 1694, que poderá ficar ilhada em meio ao parque industrial. A construção do porto avançará até a área do Santuário, onde será instalado, de um lado, um estacionamento de caminhões, e do outro, espaço para tonéis de até 20 metros. A estrada de acesso ao santuário desaparecerá para dar lugar ao canal do porto.
Em 2024, a mobilização já havia marcado presença na Romaria de Nossa Senhora das Neves. Uma campanha de abaixo-assinado impulsionou o debate público e fortaleceu a resistência. Segundo a Fase, três licenças já foram liberadas para o empreendimento, permitindo a retirada de pedras do Pico da Serrinha para a construção de um enrocamento no mar. As pedras serão transportadas em caminhões, aumentando o tráfego e o risco de acidentes.
A previsão de chegada de mais de 4 mil trabalhadores para a instalação do porto também representa risco de aumento nos casos de violência contra mulheres e meninas, como ocorreu em outras áreas portuárias do Espírito Santo, como Barra do Riacho, em Aracruz.

Desde março, um trecho de 3,1 quilômetros entre as praias de Marobá e Neves está com acesso interditado ao público, devido ao avanço das obras da fase 1. A Prefeitura de Presidente Kennedy alega que a medida visa prevenir riscos de acidentes e está prevista no licenciamento ambiental. Nesta etapa, iniciada em dezembro, é construída a infraestrutura para um terminal de granéis líquidos de águas profundas, que servirá de transbordo de petróleo entre navios de grande porte. São removidos mais de 65 hectares de vegetação, de um total de 2 mil licenciados.
As próximas etapas incluem terraplanagem, produção e transporte de rochas para o quebra-mar sul, instalação da central de fabricação de elementos de concreto, e dragagem do canal de acesso. A pedreira que fornecerá as rochas, situada a 27 quilômetros da área portuária, está na fase final de preparação. A conclusão da primeira fase está prevista para meados de 2027.

Para especialistas e moradores, as compensações propostas são insuficientes. “Para construir, tem que destruir muito”, alerta o sociólogo e educador popular da Fase, Marcelo Calazans. Segundo ele, faltam planejamento e responsabilidade, como já ocorreu no vazamento de óleo na Baía de Guanabara em 2000, quando mudas foram plantadas sem sucesso. Ele afirma que a situação se repete em Presidente Kennedy.
O Porto Central promete contratar 1.200 trabalhadores na fase inicial, a maioria homens em empregos temporários. “Depois, o que fica é desemprego e destruição da pesca. O porto será automatizado, vai gerar 200 ou 300 empregos fixos no máximo”, afirma Marcelo.