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Quando o Rio Doce via o mar

Fotos: Gustavo Louzada (Cor) e Rogério Medeiros (P/B)

Arnoílton simplesmente caiu no sono. Saía para a pesca sempre ao final da tarde e voltava para casa ao final do dia com uma fartura inominável. Robalão, robalinho, mero, bagre, tainha, carapeba, cação-espada: a rede de caceia emergia prenhe de peixe após cada lance. Eram três em média, entre os quais os pescadores ficavam sob a barraca montada na areia, esperando, tomando vento, falando sobre a vida, bebendo cachaça. Numa dessas Arnoílton dormiu para nunca mais. Só acordou com o sol do dia seguinte lhe esbofeteando a cara. Levantou-se rápido e aflito para ver a rede que abandonara na água. Foi puxando, puxando, a rede saindo, ele puxando. Sossegou, finalmente. Havia peixe como desde sempre. 
 
“Tava cheia”, ri, sentado no sofá da varanda. Ajeita-se, então, meio de lado, apoia o braço esquerdo no espaldar e abandona a cabeça indolentemente na palma da mão; os pequenos olhos castanho-claros se fixam em algum ponto na parede caiada de salmão. Por algum tempo parece ter sucumbido ao torpor da tarde fresca e muda de Regência. Um vento leve sopra as roupas no varal. 
 
“Quem diria… Tem hora, na praia, que fico pensando como o rio chegou a essa situação”, diz, a voz agora baixa e serena, o olhar ainda remoendo algo na parede caiada. 
 
Há algo de saudade desse rio que hoje corre magro e triste rumo ao oceano. Mas uma saudade resignada. Arnoílton vem testemunhando os sinais da agonia do Rio Doce em todas as formas possíveis – a falta de peixe, o fundo que ficou raso, as ilhas de areia, a baixa vazão, a salinização – mas esse divórcio com o mar é coisa que nunca viu em mais de 40 anos de pesca. 
 

De repente é assaltado por outra lembrança dos tempos juvenis: o plantio de feijão numa ilhota de 30 metros quadrados não muito longe do porto. Colhia cerca de um litro e meio de sementes.
 
O que mais o impressionava no entanto era a facilidade com que apanhava uma centena de bagres com um expediente não tão dificultoso como sair ao mar, lançar vastas redes para recolhê-las dois terços de hora depois e repetir o processo outras duas ou três vezes: espalhava cem anzóis com isca a intervalos regulares em uma corda e deixava a armadilha na água entre 15h e 16h. Cada anzol era um bagre garantido.
 
O feriado do Dia da Independência praticamente acabou e nas ruas jovens bronzeados com bolsas, mochilas e pranchas de surfe deixam a vila – em fins de semana e, um tanto mais, em feriados prolongados, pousadas lotadas e carros nas ruas desestabilizam sensível mas não radicalmente o ponto de equilíbrio do lugar. 
 
Além da quarta etapa do campeonato estadual de surfe, outra atração do feriado foi a caminhada de cerca de dois quilômetros pela estreita faixa de areia que bloqueou a saída do rio. Famílias, casais de namorados e grupos de amigos faziam um passeio até agradável, em que, experiência sensorial interessante, de um lado, o mar trovejava e, do outro, o rio era manso como um lago. Lamentavam também o grande volume de entulho – sandália, chinelo, sapato, garrafa pet, embalagens plásticas, tampa de latrina – que o rio traz e deposita no local e que, de certo modo, já é parte da paisagem da Boca do Rio. 
 
Apenas ao fim da caminhada vislumbrava-se o exíguo canal por onde o rio deságua no mar e separa as praias de Regência e Povoação. 
 
Pescadores diletantes com varas de mão também compunham o cenário. Já os profissionais eram raros. Ronaldo Euzébio era um destes. Na manhã de 7 de setembro, o pescador de feições caboclas caminhava pela barra à beira do rio com sua tarrafa de 24 palmos sobre os ombros. Apesar da pouca idade, 29 anos, tem quase 20 de pesca. Vizinho de Arnoílton, também explica que não adiante sair para o mar pela barra norte. “Não adianta. Mais à frente o barco não passa, fica preso na areia”, diz ele, que, em julho, figurou em jornais e TVs após capturar um tubarão na Boca do Rio, a praia da região da foz.
 

Os pescadores explicam que normalmente a saída sul sofria um estreitamento no inverno em função da característica baixa pluviosidade do período. Mas, como se sabe, desta vez a estiagem anda particularmente severa, debilitando uma vazão cujo quadro de fragilidade já era grave. Resultado: bem mais forte, o mar devolve toda a areia para o continente e, de brinde, ergue a inverossímil barreira que impede a saída dos pescadores para o mar.

 
“Pela barra norte é mais difícil, a gente pega as ondas de frente”, explica Arnoílton. Enfrentar o revolto mar de inverno exige força hercúlea. Já a saída sul não era tão hostil, mesmo no inverno.
 
Se navegar é preciso, viver, mais ainda, razão pela qual por três vezes em agosto foi ao mar pela saída natural rio, ou seja, enfrentando a areia. Remava até o banco, descia, arrastava o bote pela faixa de areia de cinco a dez metros para enfim se lançar ao mar para jogar a rede. Iam ele e mais dois pescadores. De volta, era repetir o processo: descer do bote, arrastar o bote, voltar ao porto. 
 
Um esforço cansativo e arriscado no bravo mar de inverno: é uma época em que são poucos os dias em que as ondas deixam o pescador trabalhar. Daí o risco de entrar no mar com apenas com um pequeno bote. E, quando se pensa em entrar, deve-se calcular também o momento de voltar para retirar a rede. A barra aberta franqueava a passagem de embarcações maiores, garantindo portanto mais segurança aos trabalhadores do mar de Regência, que, bom sublinhar, é uma comunidade de pesca tradicional.
 
Arnoilton Pereira Alves é um homem de 53 anos, baixo, moreno, cabelos ralos e grisalhos, pele tostada de sol, tronco e membros robustos. Fala com serenidade. 
 
Casado e pai de seis filhos, mora desde sempre numa casinha com a mulher à beira do Rio Preto, um corpo estreito que deságua no Doce e que, em épocas remotas, era usado pelos nativos como atalho para evitar o mar intratável da Boca do Rio. Entravam em Barra do Riacho, em Aracruz, e vinham pelos rios Riacho, Comboios e Preto para finalmente sair no Rio Doce. Valiam-se do Preto também para o banho e a lavagem de louça de modo a não topar com peixes bravos como cações, meros e tubarões, frequentes no Rio Doce. 
 
 O terreno é uma espécie condomínio familiar em que se reúnem quatro casinhas liricamente simples, separadas entre si pelo quintal de terra batida. Uma mata fechada cresce ao fundo. As casas são separadas do rio por um alambrado. Questão de segurança: crianças, sabe como é, podem ser aventurar entre os barcos fundeados e as muitas redes de pesca penduradas nas árvores, e a aventura pode dar muito errado. 
Começou a pescar aos 7, 8 anos, com o pai. Lembra-se com alegria dos tempos em que, em troca de cocada, biscoitos e outras guloseimas, ajudava um homem de cujo nome não se lembra (descreve porém uma figura alta e forte) a empurrar uma carroça que saía do porto entupida de robalo, o porto era na ruazinha da Associação de Pescadores de Regência (Asper), até o avião pousado no imenso descampado hoje ocupado pelo campo de futebol. 
 
O homenzarrão puxava a carroça pela frente e a molecada ia fazendo força atrás. Dentro da aeronave, as quatro poltronas de passageiros eram postas de canto para acomodar aquele mundo de peixe. “Às vezes até a poltrona que ia ao lado do piloto também era tirada”, conta, com espanto. Depois contemplava o avião tomar o céu rumo a Vitória.
 
As mesmas reminiscências de um Doce de fartura povoam as histórias de José de Sabino, 51, que acompanhou dia a dia o fechamento da barra até pensar que estava sonhando quando a realidade se consumou. “A pesca vai sumir”, vaticina. 
 
Na ensolarada manhã de terça-feira (8), o pescador e a mulher analisavam contas de telefone na mesinha da varanda rodeada no alto por mandíbulas de tubarão pregadas nas colunas de sustentação do telhado. Com a pesca minguando, a sorte do casal é a renda extra oriunda do aluguel dos cinco quartos que administram no fundo da casa.
 
“A gente não precisava disputar com o mar”, diz. A pesca era feita na área da foz do rio mesmo. Costumava sair às 16h com o pai, um homem severo, após todo um dia que começara às cinco da manhã na roça para cultivar de milho, quiabo, feijão, arroz, continuara na escola e terminava dentro do barco.
 
A labuta no mar se estendia até o fim do dia. Mas valia pena: três lances de rede bastavam para encher o barco com quilos e quilos de peixe. “Principalmente robalo”, diz. Sem uma atividade comercial organizada e estabelecida, o escambo era prática comum na Regência de quarenta anos atrás. Sabino conta que trocava peixe por café, querosene, açúcar; Arnoílton conta que assim adquiria farinha, abóbora, melancia.
 
Há 23 anos educador ambiental do Projeto Tamar e secretário da diretoria do Comitê da Bacia Hidrográfica do Barra Seca e Foz do Rio Doce, comitê do qual é um dos fundadores, Carlos Sangália explica que o Doce, como parte do processo de formação de sua planície costeira, sempre carreou sedimentos, minerais, argila, areia, sementes, em direção à foz. 
 
“O rio sempre jogou essa areia pro mar e o mar sempre foi brincando com essa areia, jogando aqui, colocando lá, tirando de um lado, colocando no outro, de acordo com a mudança de posição de onda, da maré, das correntes marinhas. Só que agora o rio perdeu força e o mar está represando ele”, diz ele, que acompanha o rio desde a primeira descida ecológica do Rio Doce em 1991, movimento que iria originar o comitê. 
 
A Prefeitura de Linhares apresentou ao Instituto Estadual do Meio Ambiente (Iema) um projeto de unir os bancos de areia ao norte para redirecionar o fluxo para a barra sul. A solução aguarda autorização do órgão estadual.
 
Uma das principais consequências desse problema é a intrusão de água do mar no rio, anomalia que já causa problemas sociais e ambientais. Com o rio fraco, a água do mar invade rio adentro com força pela barra norte. O abastecimento hídrico da vila, por exemplo, está comprometido. Sangália conta que as crianças da escola municipal estão levando água de casa; os donos de pousada relatam reclamações de hóspedes tomando choque, já que a água salgada é boa condutora de eletricidade. 
 
Ele dá um exemplo da dimensão desse processo de invasão salina. Um fazendeiro com terras próximas ao Canal Caboclo Bernardo, que leva água do rio para a ex-Aracruz Celulose (atual Fíbria), contou que seu gado estava rejeitando sal, componente da alimentação. O motivo da rejeição foi descoberto após análise e comprovação de que a água do canal, que o gado bebia, já registrava teor maior de sal. O canal está a três quilômetros da foz. Há registros, no entanto, de que a água salgada chega a oito quilômetros da foz.
 
A longo prazo, alerta Sangália, a situação pode causar uma mutação do ecossistema do rio. “O que a gente vê agora é entrar muita água do mar, principalmente na barra norte. E não só água entrando, mas como toda a cunha salina do lençol freático. Com o passar das décadas, pode surgir um ecossistema mais de manguezal, principalmente se não abrir mais uma boca pro sul”, alerta.
 
As recentes e dramáticas histórias da agonia do Rio Doce, estampadas em jornais e matérias plenas de boas intenções, estranhamente silenciaram uma calamidade ambiental: a transposição das bacias do Rio Doce para o Rio Riacho feito em 1999 pela Aracruz Celulose para abastecimento da fábrica C, em Aracruz, que deu origem ao Canal Caboclo Bernardo.
 
O nome de batismo do canal é uma agressão abjeta à vila de Regência, que tem no caboclo, em verdade um índio botocudo, seu maior herói. Em setembro de 1887, o simples pescador salvou 126 passageiros do navio Real Marinheiro. Foi condecorado pelo Império.
 
O processo é um lamaçal do início ao fim. Começou com por irregularidades, via conivência dos poderes municipal e estadual, e acabou por alterar todo o comportamento hídrico da região.  
 
Em novembro de 2013, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região condenou a poluidora a realizar e bancar o Estudo e Relatório e Impacto Ambiental (EIA/Rima) do projeto. A ação civil pública foi movida inicialmente pela Associação Capixaba de Proteção ao Meio Ambiente (Acapema) e depois assumida pelo Ministério Público Federal (MPF).  
 
A transposição das bacias atingiu principalmente as aldeias indígenas Tupinikim. O Rio Comboios, antes utilizado para agricultura de subsistência, pesca e pastoreio, ficaram secos e contaminados. Os pescadores de Vila do Riacho e Barra do Riacho também sentiram o golpe, com o agravamento dos problemas da redução dos estoques de pescado e o estreitamento da Boca da Barra, efeito da queda da vazão do Rio Riacho, limitando o acesso ao mar pelas embarcações de pesca artesanal na maré baixa. 
 
A violência ambiental da Aracruz Celulose contra o Rio Doce reproduz o histórico de atrocidades que ao longo do século XX devastou a Floresta do Rio Doce, uma das mais ricas do mundo em diversidade de árvores e espécies de animais, para abrir espaço à agricultura, à cupidez de madeireiros sedentos por peroba e jacarandá e a pastagens. Sem cobertura vegetal, o solo naturalmente erodiu-se.
 
O canal é mais uma história entre outras de uso indiscrminado da água do rio, mais especificamente promovidas pelo agronegócio capixaba, sobretudo as culturas de cacau, coco e mamão, na região do Baixo Rio Doce (Linhares), e, mais a oeste, com café, eucalipto e gado, e pelas atividades de mineração, hidrelétricas e indústrias de transformação.
 
“Pegar robalo hoje é um troféu”. Dona Lurdes, 69, já viveu da riqueza do Rio Doce mas, hoje, vive da pousada que abriu há 15 anos na Avenida Principal para receber trabalhadores do Terminal da Petrobrás em Regência (cuja desativação foi exigida pela Justiça em 2012). Nascida em Fundão, chegou à vila em 1976 junto com o pai, pescador. 
 
Buscava um pedaço de terra para ela. Soube por um amigo que lotes eram distribuídos gratuitamente em Regência para ocupar a então acanhada vila. Conseguiu um e trouxe o pai. De Linhares, vieram um bom pedaço de lona e algumas toras de madeira: assim ergueram o precário barraco em que viveram por dois anos. Quando a casa de tábuas foi erigida na Rua da Praia, trouxe a mãe, o primeiro marido e o filho.
 
Eram necessárias duas ou três viagens para descarregar o pescado. Saíam para a Boca do Rio à tarde, colocavam a rede e voltavam mais à noite para buscar os peixes. A labuta a seguir era para salgar os peixes, a energia elétrica não chegara a Regência. Pouco mais tarde Lurdes iria adquirir a primeira geladeira da vila, uma tecnologia ainda a querosene, mas não para armazenar o pescado – este vinha em tamanho volume que não caberia – mas para armazenar gelo. Ela já abandonara a pesca e montara um boteco no terreno onde mais tarde nasceria a pousada.
 
O testemunho dos dias de fartura lhe permite agora comparar solenemente o robalo a um troféu; a alma se enche quando fala das moquecas de robalo com banana da terra que fazia nos bons tempos.

Mas se os dias de fartura foram auspiciosos, os tempos de míngua são debochados. Que o diga Arnoílton. Ele se dirige a um pequeno quarto da edificação sem reboco erguida à parte no terreno e abre a porta de um dos três refrigeradores horizontais que repousam no recinto. “Olha, novinho!”, diz, apontando com ar estupefato o eletrodoméstico. De fato, a máquina ainda preserva uma alvura luzidia e recende a coisa nova. 

 
Fora comprada há apenas 20 dias para substituir a outra de 15 anos de uso no armazenamento do pescado; a terceira não opera há tempos. Arnoílton juntou os filhos para ajudar na empreitada de 10 prestações de R$ 267. A primeira venceu no último dia 10; os peixes não vieram. O próximo dia 10 já se avizinha; e os peixes ainda não vieram. 
 
Quem diria que, em Regência, um dia o freezer chegaria antes do peixe. Quem diria.

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