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Reportagem especialTudo azul

Texto: Henrique Alves
Fotos: Reinaldo Carvalho/Ales
 
O deputado estadual Cláudio Vereza (PT) foi acometido por dois pequenos lapsos na audiência pública sobre o pó preto realizada quarta-feira (11) no plenário da Assembleia Legislativa. Pequenos, mas significativos. Um aconteceu ao prólogo; o outro, ao epílogo. 
 
“Eu, com toda a experiência de plenário, me esqueci de falar de que se trata esta audiência”, refez-se, um tanto sem graça, o próprio proponente da coisa. Quando lembrou da mancada, Vereza já tinha dado entrevista para TV, já tinha iniciado a audiência destacando a peculiar data em que caíra, lembrando antes da ruína das Torres Gêmeas em 2001, os 40 anos do golpe militar no Chile, já tinha apresentado a mesa.
 
Só após as breves palavras do deputado Hércules Silveira (PMDB) – divulgando dados tétricos como os R$ 21 milhões gastos no Espírito Santo apenas com internações no Sistema Único de Saúde (SUS) por doenças respiratória e, por fim, se desculpando pela ausência em razão de outro compromisso – alguma coisa acudiu Vereza de que todos estavam ali àquela hora por alguma razão. Ok. Acontece.
 
Quatro horas depois, outro lapso. Todos os componentes da mesa – a secretária de Estado de Meio Ambiente, Diane Rangel; o diretor-presidente do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), Tarcísio Foëger; o gerente de Meio Ambiente da Vale Romildo Fracalossi; e gerente de Meio Ambiente da ArcelorMittal, Guilherme Correa de Abreu – tinham tecidos suas considerações finais.
 
Vereza então encaminhou: “Creio que nós podemos terminar por aqui…”. Já passava das 22h, a audiência já extrapolara seu teto. Mas outro deputado presente, Gilsinho Lopes (PR), interveio. “Deputado”. “Pois, não”. “Só o representante da SOS Ambiental tá querendo a palavra”. “Ah, sim, desculpa. Bem lembrado, Gilsinho”. 
 
Faltavam as últimas palavras do único representante da sociedade civil naquela pomposa mesa, Marcos Delmaestro, membro da SOS Espírito Santo Ambiental. Delmaestro não perdeu a oportunidade: “Eu acho que essa Casa identificou o que o povo falou aqui referente à CPI do Pó Preto. Nós queremos a instalação dessa CPI. Nós queremos a transparência, nós queremos o diálogo”. 
 
Aí Vereza, após outras ponderações às quais retormaremos mais adiante, finalmente pôde encerrar os trabalhos. Beleza, acontece.
 
Entre um lapso e outro, não foi muito difícil entender por que a mineradora Vale e a siderúrgica ArcelorMittal, os grandes verdugos dos pulmões capixabas, confirmaram presença na audiência pública em questão. O debate iniciou-se às 18h e concluiu-se poucos depois das 22h. A Vale e a Arcelor atuaram muito bem.
 
A secretária Diane Rangel iniciou efetivamente a audiência com a palestra “Histórico dos 13 anos de Monitoramente e Plano Estratégico de Qualidade do Ar”. Quando Vereza apresentou a secretária, festejou: “Alegria, Diane, você presente”, completando que ao primeiro contato ela atendera ao convite.
 
A generosa disponibilidade da secretária explica-se pela sua palestra. E sua palestra explicou a generosa disponibilidade.
 
Com pouco mais de um minuto, ela mandou: “Às vezes, falar da poluição em Vitória é uma coisa muito difícil”. Ô. Dificílimo. Mas um bem-ajambrado sistema de apresentação em slide socorreu-a. 
 

Foram 22 minutos de: apresentação da evolução do crescimento de Vitória (representada, no telão, por mapa verde e azul com tracinhos vermelhos); evolução da população de Vitória e da Grande Vitória; uma cronologia da implantação do Complexo de Tubarão, permeada com o advento de ações e normas em níveis estadual e federal; apresentando ações, cerca de seis, de monitoramento da qualidade do ar.

 
Finalmente, ela se mostrou uma otimista: “Ou seja, nós viemos num crescendo de controle ambiental. E sempre observando o quê? A melhoria contínua”. 
 
Um minuto depois, chamou Tarcísio Foëger para tomar parte na sua exposição. Propôs um jogral: “Eu gostaria, Tarcísio, que depois a gente fizesse um jogral: eu falo e você complementa”.
 
O homem do Iema não se fez de rogado e entrou na brincadeira:
 
“Todas as formas destacadas de controle da poluição são as melhores que se têm no mercado. Cada equipamento citado aí é o equipamento adequado para o controle devido para aquele tipo de fonte: a gente tem chaminés, pátio de estocagem. Os métodos e os equipamentos exigidos para a Vale e para a Arcelor são os exigidos em qualquer lugar do país e do mundo”, declamou.
 
A secretária devolveu: “A gente tem uma situação muito singular: nós somos talvez o único lugar do mundo em que se tem duas empresas de grande porte situadas muito próximas à área de ocupação residencial. Isso não acontece em outros lugares do mundo”. 
 
Diane prosseguiu, perguntando: “Como podemos avançar?”. Óbvio que se referia às ações de monitoramento, que, a julgar pelo “avançar”, ocupavam um bom patamar. Aí revelou-se no telão o famigerado Inventário de Fontes da Grande Vitória 2009/2010 realizado pelo Iema. 
 
“E aí temos o resultado do inventário. Esse inventário foi muito questionado pela academia e por alguns órgãos, porque os resultados são diferentes de qualquer outro lugar, tanto que a gente vai refazer, atualizar esse inventário agora”. 
 
Segundo o estudo, a poluição cabia à ressuspensão de vias (provocada pela movimentação de veículos), com 68,2% da culpa. A Vale apareceu com 15,8%; a ArcelorMittal, 6,1%; o veículo, cerca de 3%. Por que diabos os resultados desse inventário “são diferentes de qualquer outro lugar”?
 
Enfim, ela passou o microfone ao colega de jogral. Tarcísio declamou por sete minutos. “As exigências que o Iema realiza em seus licenciamentos ambientais em nada devem a nenhum órgão ambiental do país. E as exigências que nós fazemos às indústrias existentes no estado são sempre as melhores tecnologias vigentes no mercado. Ok?”, disse, a certa altura.
 
Em meia hora de jogral, ficou devidamente explicado porque a Vale e a Arcelor acolheram o convite para a audiência na Assembleia. 
 
A cada ponderação questionável, não se ouvia quaisquer burburinhos ou mesmo aquele solitário e silencioso risinho irônico que se veria em outro contexto – se audiência fosse realizada em qualquer outro lugar que não ali.  
 
Diane e Tarcísio encontraram uma audiência respeitosa. Os semblantes recendiam circunspecção, como se governo e empresários estivessem revelando a mais casta das verdades. Uma meia hora que transcorreu docemente, sem maiores sobressaltos. Apenas quando o telão pareceu acusar problema, saindo do ar, alguém gracejou: “É o pó preto!”. 
 
Não que os espectadores tivessem a obrigação e o dever da conduta deselegante.  Mas quem frequenta o mundo das audiências públicas sobre temas candentes – sobretudo após as Jornadas de Junho, vide as audiências sobre a licitação do Sistema Transcol ou os debates sobre a Praça do Cauê – sabe que a coisa fervilha num saudável confronto de ideias. 
 

Não foi o que se viu na audiência de Cláudio Vereza. As cobranças e os questionamentos – muitos, vários, inúmeros – ocorreram. Mas nada que violasse a candura virginal que recobre os discursos de sustentabilidade da Vale e da ArcelorMittal. 

 
Estas levaram uns bons sopapos; às vezes, dolorosos. Dizer o contrário seria ignorar a simples presença de entidades ambientais (como, a Associação Nacional dos Amigos do Meio Ambiente, Anama; o Conselho Popular de Vitória, CPV; a Associação dos Amigos da Praia de Camburi; AAPC; a SOS Ambiental, ente outras). O problema é que alguma coisa na Assembleia deixa a queda mais suave. 
 
Na sua vez, o membro da SOS Ambiental, José Marques Porto, despejou um mundo de questionamentos sobre Diane, Tarcísio, a Vale e a Arcelor. Precisou se desculpar por ler o documento que tinha em mãos tão desembestadamente. Pulou páginas para respeitar o tempo. Ao final, as demais entidades levantaram mais e mais questões. 
 
Os representantes da Vale e da Arcelor, no entanto, refestelados nas rechonchudas cadeiras da Assembleia, mostravam tranquilidade. Enquanto as dúvidas de Marques Porto enchiam o plenário e vazavam para os corredores e galerias da Assembleia, na mesa o cara da Arcelor patinava o indicador pela tela um celular. Lá embaixo, o da Vale balouçava-se na cadeira.
 
Após Tarcício, falou a Vale, representada por seu gerente de Meio Ambiente Romildo Fracalossi. Melhor: na verdade, quem representou a mineradora na audiência não foi o Romildo. Foi um vídeo. 
 
A exposição da Vale durou 12 minutos. Aos três, disse Romildo: “Eu gostaria de apresentar aos senhores um vídeo que mostra um pouco desses controles ambientais que foram instalados no Complexo de Tubarão e que reduziram significativamente as nossas emissões. Por favor”.

O vídeo durou nove minutos.

 
Um produto tecnicamente impecável. Sabe as peças publicitárias que a Vale insere nos intervalos do Jornal Nacional? Igual: narrativa leve, edição ágil, fotografia cinematográfica. Os planos abertos, deslumbrantes, apresentavam montanhas de minério como se fossem a Floresta Amazônica; funcionários de riso largo e olhos brilhantes depunham como se labutar na Vale fosse flanar pelas ruas de Paris.
 
Não era uma mineradora. Era, antes, a Disneylândia da sustentabilidade.
 
Próximo: gerente de Meio Ambiente da ArcelorMittal, Guilherme Correa de Abreu. Ante o talento da vale para a sétima arte, deu pena da Arcelor. Foi uma apresentação burocrática, enfadonha, com slides confusos, coalhados de palavras e números, tingidos por tracinhos e pontinhos coloridos (um vermelho aqui, um verde marca-texto acolá…). 
 
Pelo menos a Arcellor falou mais que a Vale. Foram cerca de 20 minutos – e só slides. Abreu destacou as tecnologias e os milhões gastos pela siderúrgica com fins ambientais. Bocejo. Ao final, chamou a atenção da audiência para uma foto:
 
“Esta é uma foto de 1981, do local onde está instalada a ArcelorMittal Tubarão. Eu fiz uma referência embaixo, com uma linha tracejada vermelha, que é onde está nosso escritório central. Em 81, quando o projeto de Tubarão foi implantado, as leis eram outras, a forma de trabalho era outra e vocês observam que a área foi totalmente removida do local. Esta é uma foto clara de que realmente isso aí aconteceu de fato para a implantação do projeto como um todo. E agora a situação que a gente tem hoje.”
 
De uma foto aérea que desagradava pela aridez passou a outra em que resplendia o verdor da mata exuberante do cinturão da Arcellor. Pronto. Assim terminou a exposição da Arcelor: pavoneando seu talento para a jardinagem.
 
 
Na sua vez, a SOS Ambiental, antes de Marques Porto tomar a palavra, também apresentou um vídeo. Em comparação ao da Vale, era pior em tudo: roteiro, edição, fotografia, trilha sonora. Mas respeitava a verdade. Os blockbusters publicitários da Vale transformam pó preto em gotas de chocolate.  
 
A audiência terminou após o lapso de Vereza com o membro da SOS Ambiental. Antes, porém, o deputado desabafou. 
 
Por todas as quatro horas de audiência, os ouvidos do petista foram espicaçados por solicitações de abertura da CPI do Pó Preto. Ele ponderou: “Instrumento, ferramenta, você usa de acordo com o que você acha melhor. Eu acho melhor audiência pública, uma série de audiências públicas, sérias como esta que aconteceu aqui – duvido que alguém questione se essa audiência foi séria ou não?”
 
Todos nos lembramos: quando a Casa se debatia em torno da criação ou não CPI do Pó Preto, o deputado, como coordenador da bancada do PT, orientou a votação dos companheiros no sentido contrário ao anseio das ruas e às bandeiras petistas. A audiência é menos um ato de solidariedade aos pulmões capixabas do que uma estratégia de recuperação de sua um tanto avariada cútis política. 
 
Um sofismático Vereza encerrou a conversa: “CPI é que nem audiência: pode dar resultado, pode não dar resultado. Já houve uma sobre poluição: não deu resultado. Já houve uma sobre eucalipto: não deu resultado. Já houve CPIs sobre a Terceira Ponte: não deram resultado. Então, não é a ferramenta que determina o resultado. E a seriedade do jeito que a coisa vai sendo tocada”. 
 
De novo: “Duvido que alguém questione se essa audiência foi séria ou não?”. Ô. Este repórter foi duas vezes interpelado por um segurança da Casa: “Da onde você veio? Onde você estava? Você estava lá em cima?”. Isso é brincadeira. Séria foi a audiência.

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