Superintendência contesta suspensão da titulação deferida por liminar em favor da empresa
Do território quilombola de Linharinho, 89% estão sob posse da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose). A informação é da Superintendência Estadual do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra/ES), responsável por conduzir o processo administrativo de titulação federal da comunidade, uma das mais de 30 que compõem o território quilombola tradicional do Sapê do Norte, localizado nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, no norte do Espírito Santo.
O processo de Linharinho é um dos mais avançados no Sapê, já tendo sido concluído o seu Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) e, com base nele, publicada a portaria que “reconhece e declara como terras da Comunidade Remanescente de Quilombo de Linharinho, localizada no município Conceição da Barra, no estado do Espírito Santo”, uma área de 3,5 mil hectares.
A portaria foi publicada em maio de 2024, o que permitiria o processo de retirada de ocupantes não quilombolas – inclusive por meio de indenização, comprovada a regularidade da posse – para regularização do pleno uso das terras pela comunidade. Uso esse, importante ressaltar, que é de caráter coletivo, sem conformação de propriedade privada, ou seja, assim como nos assentamentos de reforma agrária, bem como nas Terras Indígenas e outros territórios de comunidades e povos tradicionais, o território quilombola não pode ser fracionado em lotes e vendido por nenhum de seus beneficiários. Um quilombola não é proprietário de um sítio ou um lote dentro do seu território ancestral. Ele tem o direito de viver nele, assim como todas as suas futuras gerações, respeitando os princípios de uso e convivência estabelecidos coletivamente por sua comunidade, mas não pode vender a terra.
Essa finalização do processo de titulação, no entanto, é alvo de ação judicial por parte da multinacional, que obteve uma liminar suspendendo temporariamente a tramitação administrativa. A liminar foi concedida pelo desembargador Newton Pereira Ramos Neto, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), atendendo aos pedidos feitos por sete advogados da empresa, em recurso apresentado contra uma decisão anterior do Tribunal, em que a suspensão da tramitação administrativa foi negada. As peças referem-se ao processo referência nº 1002722-67.2024.4.01.3400, em que a Suzano solicita a “declaração de nulidade do procedimento administrativo”.
Seguindo o raciocínio dos sete advogados, Newton Pereira Ramos Neto fundamenta seu voto em supostas fragilidades do RTID, apontadas em um relatório de auditoria contratada pelo Incra. Ocorre que, conforme o próprio magistrado afirma, ao citar trechos da decisão anterior, contrária à empresa, questões importantes dessa disputa judicial estão postas. Entre elas, o fato de que o relatório da auditoria foi rejeitado pelo Incra e o RTID foi posteriormente validado pela Procuradoria Federal Especializada da autarquia e, por isso, “está em conformidade com a legislação aplicável, não sendo o caso de interferência do Judiciário na ausência de flagrante ilegalidade”.
Outro ponto ressaltado é que “não houve cerceamento de defesa”, pois a empresa teve assegurado seu direito ao contraditório e ampla defesa dentro do processo administrativo. Ademais, afirma, “a publicação da Portaria de Reconhecimento [com base no RTID] não acarreta, de imediato, a perda da posse ou da propriedade [por parte da Suzano]”.
Finalmente, ressalta que “a continuidade do processo administrativo visa resguardar os direitos da comunidade quilombola”, aspecto este que Newton Pereira Ramos Neto contextualiza afirmando que a disputa judicial em tela “envolve, essencialmente, a coexistência de dois direitos constitucionais, ambos dotados de igual relevância: a demarcação de terras em favor das comunidades quilombolas (…) e o direito de propriedade (…)”.
Acerca dos direitos constitucionais quilombolas, o magistrado recupera argumentação anterior de que “a delimitação do território quilombola observou critérios técnicos, históricos e culturais, em conformidade com a Constituição e tratados internacionais” e que “o risco de dano grave e irreparável recai sobre a comunidade quilombola, que aguarda há anos a regularização de seu território”.
Ainda assim, baseia-se no entendimento de que “é notória a existência de um dissenso dentro da própria autarquia [Incra] acerca da regularidade do feito [o RTID], circunstância que demanda uma análise mais aprofundada nos autos, a fim de garantir a adequada verificação da legalidade e legitimidade dos atos administrativos praticados. A discordância exposta não se trata de meras formalidades, mas da própria essência do ato praticado, requisitos necessários e, portanto, de extrema relevância”.
Datada do último dia dois de abril, a liminar, no entanto, ainda não foi devidamente despachada para as partes, segundo a superintendente do Incra/ES, Penha Lopes. “Não fomos comunicados oficialmente da decisão e assim que formos, vamos tomar as medidas judiciais cabíveis. A gente reafirma a validação da RTID, o processo administrativo precisa seguir seu curso regular”, declara.
Em paralelo à disputa judicial e ao processo administrativo, a Superintendência publicou também o Edital nº 843/2025, com chamamento público para compra e venda de terras que estejam dentro do território de Linharinho. A superintendente informa que um proprietário já havia manifestado no passado interesse na venda. Há ainda um outro pequeno proprietário rural identificado e algumas pequenas posses de quilombolas. “O edital é uma possibilidade jurídica para que os proprietários de terra que queiram, possam consolidar seu interesse de vender a área para o Incra. É uma forma também de começar a atuar na regularização até que o processo administrativo seja retomado. Inclusive a Suzano também pode ofertar alguma matrícula de imóvel”, explica Penha Lopes.
A respeito das matrículas de imóveis sob domínio da Suzano, porém, há que se considerar um outro processo judicial em curso, a Ação Civil Pública nº 0000693-61.2013.4.02.5003/ES, impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF/ES) e o Incra contra os réus Aracruz Florestal S.A. (atual Suzano, ex-Fibria), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Estado do Espírito Santo. A ACP obteve uma sentença favorável às comunidades quilombolas em 2021, determinando a nulidade de dezenas de matrículas da então Aracruz Florestal. O processo tramita de forma favorável às comunidades quilombolas, colocando portanto todos ou muitos dos terrenos em posse da Suzano dentro de Linharinho inaptos para venda para o Incra, visto que tal posse é, segundo a Justiça até o momento, criminosa, resultado de fraude.