Doze anos exatos separam a posse do economista Paulo César Hartung Gomes (PMDB) no primeiro mandato como governador do Espírito Santo e a chegada para o terceiro mandato nesta quinta-feira (1). No entanto, as semelhanças ficam por aí. Se na primeira vez que subiu as escadarias do Palácio Anchieta, no início de 2003, Hartung era vista como uma espécie de “salvador da pátria”. Hoje, ele carrega as cicatrizes de uma disputa eleitoral, que trouxe o futuro governador capixaba para o rol dos políticos comuns.
Em seu primeiro discurso de posse, Hartung – então filiado ao PPS – conclamou a sociedade para a luta contra o crime organizado, que foi a sua principal bandeira e escudo durante os oito anos de governo, e contra o que chamava de “desmonte vergonhoso da máquina pública”. O governador se uniu a entidades da sociedade civil organizada, como a Ordem dos Advogados do Brasil no Estado (OAB-ES), Igreja Católica e sindicatos. Esses atores foram imprescindíveis para chancelar esse “novo Espírito Santo” da propaganda oficial.
Não foi a toa que uma das marcas que tentou imprimir à sua primeira gestão fica evidente no famigerado bordão: casa arrumada. Nunca que se falou tanto nisso. Para isso, Hartung teve uma infinidade de circunstâncias favoráveis, como a antecipação de quase R$ 300 milhões em royalties do petróleo, que garantiu o saneamento da folha salarial do funcionalismo público, e o desaparecimento de qualquer tipo de questionamento à sua administração, seja pela classe política, seja pelas instituições – graças ao seu arranjo institucional, que ameaçava com a pecha de retrocesso àqueles que se colocavam contra o “novo” modelo de política.
Ao longo dos oito anos da primeira gestão de Hartung não se pode desconsiderar que o Estado se beneficiou do bom momento econômico do mundo e do País, no governo Lula. Mas é claro que houve uma mudança de cenário, por exemplo, o orçamento quase triplicou no período, saindo de R$ 4,2 bilhões, em 2003, para R$11,6 bilhões no último ano da primeira Era Hartung. Os indicadores sociais tiveram melhora razoável, como a erradicação da pobreza (graças aos programas sociais do governo Federal) e na área da Educação. No entanto, as áreas de saúde e segurança pública pouco ou nada avançaram.
Na primeira, as imagens de corredores superlotados e pacientes sem atendimento só não foram mais exaustivamente exibidas na mídia pela censura ao trabalho de imprensa local, que era proibida de entrar nos hospitais. Hoje, os celulares e suas “câmeras ocultas” acabaram se encarregando desta missão – vale lembrar que estamos falando de uma década atrás. Nos oito anos de gestão também não foram inaugurados novos hospitais, com exceção do Hospital Central (antigo Hospital São José), no Centro de Vitória, cujas obras são alvos de investigação hoje por suspeita de corrupção.
Na área da segurança pública, os índices de homicídios atingiram patamares de guerra civil, aliás, nunca se matou no Estado como em 2009. Naquele ano, foram 58,3 assassinatos por grupo de cem mil pessoas, o maior índice do País. Sem contar que o governo Hartung não foi capaz de implantar sequer um plano de segurança – o último havia sido o Pro-pas, na gestão do antecessor José Ignácio Ferreira.
Dentro deste segmento, a única marca de gestão de Hartung foi o episodio das masmorras, que levou o Espírito Santo – e o Brasil – para julgamento da Organizações das Nações Unidas (ONU) pela violação dos direitos humanos de detentos do sistema prisional. Vale destacar que a cena de presos esquartejados, “servidos” literalmente em pedaços dentro de marmitas, custa a sair da lembrança de quem acompanhou essa tragédia de perto. Aliás, a crise acabou se tornando uma oportunidade para a contratação sem licitação de mais de meio bilhão de reais em presídios pré-moldados, episódio que acabou passando ao largo dos órgãos de controle.
A impunidade na primeira Era Hartung não se resumiu aos casos dos presídios, mas também em várias realizações da gestão de PH. Com o fim do governo vieram à tona outros escândalos, como o posto fantasma em Mimoso do Sul – obra que consumiu mais de R$ 25 milhões e que não saiu da fase de terraplanagem – e a corrupção em contratos na Secretaria da Justiça (Sejus). Apesar da equipe hartunguete ter sido mantido pelo sucessor de Hartung, o caso acabou ficando na conta de Renato Casagrande – que concordou em fazer um governo compartilhada com o antecessor, composição política considerada hoje pelo socialista como o seu grande erro.
Essa confissão de Renato Casagrande, feita em entrevista exclusiva dada ao jornal Século Diário no último fim de semana, pode servir como ponto de partido para a análise desta segunda Era Hartung, que se inicia agora. Após um debate eleitoral de verdade, longe dos arranjos do tempo da “unanimidade bonapartista” – termo cunhado pelo ex-prefeito de Vitória, Luiz Paulo Vellozo Lucas, que era aliado, virou adversário e retornou como aliado de Hartung, o novo governador sofre a ameaça de enfrentar uma oposição real neste terceiro mandato.
Se antes o problema do Estado era a desorganização da máquina pública, o governo vai muito bem obrigado. Apesar da tentativa de criar um cenário de crise nas finanças públicas, o comportamento de Hartung e sua futura equipe de governo se assemelham mais ao discurso eleitoral do que uma análise fria e precisa sobre os desafios da nova administração. A nova secretária da Fazenda, Ana Paula Vescovi, já prevê um resultado fiscal negativo para 2015 com a queda no preço do petróleo e de commodities, como o minério de ferro. Vale destacar que, nos seus oito anos de governo, o peemedebista deu ênfase a esses tipos de projeto, deixando de lado a diversificação da economia capixaba.
Nas áreas essenciais ao cidadão (saúde, segurança e educação), o Estado elevou a sua capacidade de investimentos nos últimos anos. Em 2010, as despesas totais com essas áreas foi de R$ 4,73 bilhões, enquanto a gestão Casagrande deverá fechar o ano de 2014 com gastos na ordem de R$ 6 bilhões – já que os dados totais ainda não estão totalmente consolidados. Diferentemente da última gestão, Hartung terá a disposição novos hospitais, ampliação do efetivo das policiais, queda no índice de homicídios e indicadores positivos na educação.
Outro destaque é o avanço nos projetos de mobilidade urbana, que estão quase todos prontos para serem licitados, uma vez que o tema deve ser uma demanda cada vez mais comum da população. Aliás, a Terceira Ponte deverá ser uma dor de cabeça ao novo governador, sobretudo, após a retorno da cobrança do pedágio na última segunda-feira (29). Por mais que tente atribuir a suspensão da cobrança, em abril passado após suspeitas de irregularidades no contrato de concessão, à uma manobra eleitoral de Casagrande, o peemedebista vai ter que se posicionar sobre o assunto.
Mas não existe algo tão simbólico quanto à derrocada da velha bandeira de combate à corrupção no novo contexto. Se naquela época o discurso de crime organizado acabou emplacando – mesmo que ninguém tenha sido acusado nominalmente pelo governador –, o mesmo não pode ser dito nesta nova gestão. Hartung chega ao Palácio Anchieta carregando várias acusações de malversação do dinheiro público e sem ter como explicar um patrimônio familiar milionário, que o mesmo ocultou de sua declaração de bens entregue à Justiça Eleitoral.
Não há ninguém que desconheça que a mulher de Hartung, a primeira-dama do Estado, Cristina Gomes, fez viagens com dinheiro público sem que as motivações fossem explicadas. Assim como não há como discordar que o governador tem uma mansão (agora não mais) secreta nas montanhas capixabas, assim como a esposa é administradora de uma empresa familiar que cuida dos imóveis da família. Figuram na empresa, a mãe, irmão, filhos de Hartung, mas só o governador não aparece na sociedade. Estranho não?
Essas são as verdadeiras cicatrizes que se revelam com a nova subida às escadarias do Palácio Anchieta. Ao passo que o agora ex-governador Renato Casagrande se prepara para exercer o papel de oposição ao peemedebista. Não como mero opositor, mas como defensor do legado de seu governo – alvo desde a campanha políticas das investidas do núcleo hartunguete. Casagrande atribui as críticas reiteradas à justificativa pelo não-cumprimento das promessas eleitorais do adversário.
Resta saber qual será o novo escudo de Hartung, no caso de eventual fracasso, uma vez que os desafios podem ser diferentes de outrora, mas desta vez, ele deixa de ser “intocável”. O Espírito Santo mudou e PH terá que ir muito além de um simples abraço para reafirmar o legado da casa arrumada.