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‘Há um desejo enrustido de transformar socioeducação em sistema penal’

Após 14 anos da denúncia da Unis à OEA, avanços essenciais ainda não foram alcançados

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Sinases

Quatorze anos após casos de maus-tratos e mortes de três adolescentes na Unidade de Internação Socioeducativa (Unis) de Cariacica serem levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), da Organização dos Estados Americanos (OEA), avanços considerados fundamentais ainda não foram alcançados. O militante do Movimento Nacional de Direitos Humanos no Espírito Santo (MNDH/ES), Gilmar Ferreira, atribui o cenário a um “desejo enrustido de transformar socioeducação em sistema penal”.

A afirmação do ativista se baseia o fato de que, ainda hoje, há nas unidades o uso de algemas e de instrumentos considerados menos letais pelos agentes de segurança. Além disso, aponta, as estruturas “são arcaicas”, semelhantes a presídios.

“Quando falamos em socioeducação, não estamos falando de adultos e punição nos moldes do sistema penal. Para nós, qualquer tipo de armamento é letal, depende de como se usa. É impossível conceber na perspectiva do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] e do Sinase [Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo] características parecidas com o sistema penal. Se o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] não intervir, vai gradativamente transformando em presídio”, alerta.

Gilmar, no entanto, aponta dois avanços. Um foi a aprovação, em 2020, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do Habeas Corpus Coletivo 143.988, que determina o fim da superlotação em unidades socioeducativas. A decisão passou a valer para todo o Brasil e ultrapassou as expectativas, ao limitar em 100% a lotação das unidades socioeducativas, conforme estabelece o ECA. O outro foi a Resolução 252, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que trata das “diretrizes nacionais para a segurança e proteção integral de adolescentes e jovens em restrição e privação de liberdade no Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo”. O documento conta com 86 artigos. Um deles, o 69º, proíbe o uso de armas letais e menos letais por profissionais dentro do sistema socioeducativo e em atividades externas com a presença dos socioeducandos.

Os avanços e aquilo que ainda falta avançar no que diz respeito às unidades socioeducativas do Espírito Santo foram debatidos no CNJ na última terça-feira (3) entre membros da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (UMF/CNJ), representantes de entidades públicas e da sociedade civil. O objetivo foi tratar da adoção de providências para o cumprimento das medidas provisórias determinadas pela Corte IDH ao Brasil em relação à Unis.  

Os avanços elencados foram a criação da Delegacia Especializada do Adolescente em Conflito com a Lei para atender situações de flagrante de ato infracional 24h por dia, todos os dias da semana, e a posse de três peritas do Mecanismo Estadual de Prevenção e Erradicação da Tortura no Espírito Santo (Mepet/ES). A posse será no próximo dia 16, no Palácio Anchieta, Centro de Vitória. O Mecanismo, que era uma reivindicação muito anterior à ação da Corte, teve sua criação aprovada na Assembleia Legislativa somente em outubro de 2023.

Contudo, foi apontado que alguns problemas permanecem, como a necessidade de reformulação do Manual de Rotinas, Classificação de Risco e Procedimentos de Segurança, especificamente no que diz respeito ao uso da força de segurança, o que inclui uso de algemas e de instrumentos menos letais, indo ao encontro da avaliação feita por Gilmar. Outros problemas apontados foram baixa qualificação dos agentes, dificuldade no acesso à educação elevado tempo de permanência dos jovens e o racismo, já que 95% dos socioeducandos são negros.

Coordenadora da área de Violência Institucional e Segurança Pública da organização Justiça Global, uma das peticionárias do caso Unis, Monique Cruz se disse preocupada com o longo período de espera pela conclusão do caso perante a Corte e a falta de avanços reais, uma vez que privilegiam a segurança em detrimento ao acesso a direitos.

Atualmente, há 563 adolescentes em unidades socioeducativas do Espírito Santo, de acordo com dados do Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo (Iases). O instituto conta com 557 agentes socioeducativos efetivos e 850 servidores em designação temporária que atuam como agentes.

Denúncias

Os casos de tortura e mortes no sistema socioeducativo foram levados à Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2010 pelas entidades não governamentais Justiça Global e Centro de Direitos Humanos da Serra (CDDH/Serra), em parceria com a Pastoral do Menor e com o apoio da Clínica Internacional de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard. As violências vieram à tona em 2009, entre elas, crimes de tortura, abuso sexual, superlotação, condições insalubres e maus-tratos. As técnicas de tortura eram consideradas “semelhantes às utilizadas pelos Estados Unidos no Iraque e durante a ditadura militar no Brasil”.

Dois anos depois, a Corte solicitou ao Estado que adotasse medidas necessárias para erradicar as situações de risco e proteger a vida e a integridade pessoal, psíquica e moral das crianças e adolescentes privados de liberdade na unidade. Outra medida era para que os representantes dos internos participassem do planejamento das ações, como o atendimento médico e psicológico dos socioeducandos, e fossem informados sobre a execução das medidas.

Desde então, a Unidade Socioeducativa precisa prestar relatórios que comprovem o cumprimento das medidas solicitadas pela Corte Interamericana, de quatro em quatro meses. Após o envio, entidades estaduais de direitos humanos apresentaram um parecer sobre o relatório, com a própria versão do tratamento recebido pelos socioeducandos nas instituições. Em 2021, a Corte convocou novamente o Estado brasileiro para explicar o descumprimento de medidas efetivas de proteção à vida e à integridade na Unis de Cariacica.

A situação foi uma das pautas de uma audiência virtual ocorrida em junho daquele ano, resultado da ação de 14 anos atrás. Além dos problemas na unidade capixaba, o Estado brasileiro teve que explicar o descumprimento de medidas em complexos penitenciários de Pernambuco, Maranhão e em um instituto penal do Rio de Janeiro. De acordo com informações da Justiça Global, as denúncias se referiam “à crescente militarização do sistema socioeducativo do Espírito Santo, práticas de tortura e maus-tratos, e apresentam questões sobre o grave cenário de crise sanitária causada pela pandemia de Covid-19”.

Um dos problemas apontados durante a pandemia foi a estratégia de “isolamento respiratório” destinada a internos com sintomas gripais. “Esse mesmo lugar usado hoje para o isolamento de adolescentes com sintomas gripais já foi usado no passado como espaço de isolamento para o castigo”, informou a organização na ocasião.

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