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Gentrificação na Curva da Jurema: ‘A elite não pode ter vista para os pobres’

Frequentadores apontam elitização da praia, historicamente popular, para atender ao mercado imobiliário

As mudanças ocorridas na praia da Curva da Jurema, em Vitória, têm ganhado repercussão nas redes sociais. Por isso, Século Diário foi ao local conhecer essa realidade mais de perto e percebeu que caminhar por lá sem notar as mudanças feitas é praticamente impossível. Os quiosques, outrora mais simples, deram lugar a outros, mais sofisticados, e, consequentemente, mais caros.

Curva da Jurema. Foto: Elaine Dal Gobbo

Agora já não se encontra com tanta facilidade grupos de banhistas que se divertem com a bola ou outros objetos trazidos de casa, mas é visível, em espaços grandes da faixa de areia, quadras de beach tennis e canoas Va’a, atividades pagas. Academia, café, lojas de roupa, tudo isso agora faz parte do cenário.

Em um quiosque, uma senhora, acompanhada de um rapaz, pede o cardápio, mas é informada de que não pode comer ali porque não é autorizado consumir no local portando uma caixa de isopor. E a dela, escrito vende-se chup chup, foi motivo para que, independentemente de pedir o cardápio como uma cliente qualquer, não pudesse usufruir dos serviços.

Foto: Elaine Dal Gobbo

Com a roupagem de revitalização, reurbanização, melhoria, para muitos essas mudanças podem parecer positivas, mas para outros, principalmente moradores das periferias que há anos veem na praia da Curva da Jurema uma atividade de lazer a custos baixos, trata-se de um processo de elitização e apropriação do espaço público.

A jornalista Mônica Oliveira, por exemplo, morou em Vitória durante 15 anos e sempre frequentou a praia. Agora reside em Brasília e, sempre que visita o Espírito Santo, a Curva da Jurema é parada obrigatória.

Mônica morava na região da Grande São Pedro. “Eu morava na periferia, e a praia mais próxima dos bairros da periferia em Vitória é a Curva da Jurema. É a praia que a população de São Pedro frequenta. Sempre que estou aqui, vou até lá. É uma referência para mim, referência de afetos, de lembranças da cidade”, lembra.
Entretanto, Mônica lamenta que, em relação à Curva da Jurema, ”quem jamais a esquece não pode reconhecer”. Na última vez que esteve no Estado, em dezembro último, percebeu que a praia não é mais tão acolhedora como antes. “Vi umas tendas e quis sentar para tirar uma foto, mas um funcionário do quiosque disse que não podia. Agora, nem todo espaço é meu, tem espaços que não me acolhem mais. Eu conseguia acessar todas as faixas de areia sem nenhum problema, mas dessa vez alguém chegou para mim e disse ‘você não pode ir ali'”, queixa-se.
As tendas às quais Mônica se refere estão dentro do cercado com corda ao redor dos quiosques, e também as que são disponibilizadas fora dele, ambas em parte da faixa de areia. Porém, quem pensa que somente quem é cliente pode acessar as tendas está enganado, pois o espaço não é destinado para todo e qualquer cliente, mas somente àqueles que podem fazer a consumação mínima de R$ 200,00 em dias de semana e de R$ 300,00 aos sábados e domingos, podendo, inclusive, fazer reserva. Outra opção são as mesas de madeira, com guarda sol, consideradas mais simples e cujo valor é de R$ 100,00 em qualquer dia da semana.
Tendas. Foto: Elaine Dal Gobbo

A Curva da Jurema, recorda Mônica, era onde ela recebia um “combo de identificação”. “É uma referência turística, mas conseguia ter uma relação com a cultura popular da Capital. Eram várias periferias juntas, um caldeirão. Várias culturas, estilos musicais. Você chegava lá e concluía: o capixaba popular é isso aqui”.

“A elite não pode ter vista para os pobres”


O porteiro Henrique Gonçalves de Jesus, acompanhado do amigo, o motorista de aplicativo Paulo Fraga,  observa e comenta as mudanças na praia. Abordado pela repórter, ele não hesita em falar sobre o tema. “A elite não pode ter vista para os pobres”, concluiu, atribuindo as alterações na Curva da Jurema à construção do condomínio de luxo Reserva Vitória, atrás do Shopping Vitória e ao lado da praia.
Perspectiva da fachada do condomínio. Imagem: Divulgação

Apresentado em setembro último, o condomínio contará com dois empreendimentos: o Ilha Vitória e Ilha de Trindade Ocean Front Residence, ao lado do Parque Cultural Reserva de Vitória, inaugurado em dezembro passado, com espaços de lazer e obras de arte a céu aberto, em uma área de 16 mil m², construído pela iniciativa privada e cedido para a Prefeitura Municipal de Vitória (PMV).

Henrique, frequentador assíduo da Curva da Jurema, afirma que hoje se sente intimidado quando está no local.

“Sempre que venho, trago minha cerveja na caixa. Daqui a pouco não irão permitir mais, terei que consumir aqui, mas uma cerveja que custava R$ 8,00 agora é R$ 16,00. O consumo ficou difícil. Daqui a alguns dias a gente não vai mais poder frequentar a praia, vai ter que buscar outra, mas não sei qual. Se eu não posso sentar numa mesa porque não tenho condição de pagar R$ 16,00 em uma cerveja eu me sinto intimidado. Se não posso sentar em uma rede porque não estou consumindo, eu me sinto intimidado”, desabafa.
Paulo também lamenta as mudanças. “Tem a Curva da Jurema que foi e a que está sendo. Eu via gente de vários bairros, de bairros pobres, que vinham para cá. Com o tempo, vai ser gente de uma classe mais alta que vai frequentar. Parte da areia está tomada pelos quiosques, como se fosse privado”, diz.
Gentrificação

O professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Kleber Frizzera classifica o que está acontecendo na Curva da Jurema como um processo de gentrificação, ou seja, “transformação de centros urbanos através da mudança dos grupos sociais ali existentes, onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas”.
Assim como Henrique, Kleber acredita que a gestão municipal “está fazendo uma ‘limpeza” para atender a interesses imobiliários”. “Há um esforço para transformar a área para outro tipo de público. O comprador do imóvel não vai querer que ao lado tenha uma praia popular. Os preços na Curva da Jurema certamente estão mais caros, o tipo de consumo está diferente, então se expulsa as pessoas pelo preço, por certas imposições, é como se o pobre tivesse que ficar no morro, não podendo usufruir das belezas da cidade”, diz.
O professor da Ufes também faz críticas ao destacamento da Polícia Militar (PM), instalado no local. “Colocaram um destacamento da PM, com diversas viaturas, uma vez passei por lá e tinha nove. É um excesso de visibilidade da segurança como se o local fosse uma catástrofe nesse quesito. Passa a ideia de que não vai ter música, dança, práticas relacionadas à cultura popular. É intimidador”, afirma.

Kleber aponta ainda que o destacamento é “imenso”, sem nenhuma janela transparente que deixe os transeuntes verem o que acontece em seu interior. “É uma política de segurança pouco visível, pouco transparente. Se não querem que as coisas sejam vistas, se fecha. Por que fechar um destacamento? Você fecha penitenciária. Conceito de equipamento público fechado é uma política de segurança que não é transparente. Os objetos arquitetônicos mostram sua face, suas intenções, então têm que ser transparentes”, defende.
Destacamento da Polícia Militar. Foto: Elaine Dal Gobbo

Kleber acredita que haverá um processo de resistência à gentrificação. “As pessoas passarão a levar suas próprias bebidas no isopor, começarão a surgir vendedores ambulantes para atender esse pessoal que já não é mais atendido pelos quiosques”, diz.

Mônica Oliveira concorda em partes. Para ela existirá sim um processo de resistência, mas que pode esbarrar na crença na meritocracia. “Muitas vezes a pessoa pobre reconhece quem tem dinheiro como alguém que se esforçou e merece estar naquele espaço, aí se ausenta dele por achar que não deve estar ali. Falta formação, falta conscientização. Muitos pensam que o patrão é patrão porque trabalhou igual a ele, e não porque ganhou herança”, diz.

Pandemia
O arquiteto André Abe aponta que a pandemia da Covid-19 trouxe a classe média e a classe média alta para a Curva da Jurema, evitando deslocamento para as praias de Guarapari. “O pessoal que frequenta Guarapari descobriu que não precisa ir até lá para se divertir na praia, para levar o cachorro para passear, para levar as crianças para se divertir”, diz, destacando que agora que a Curva da Jurema tem grupos de canoa e outras atividades esportivas do tipo, a classe média pode passar a pensar que “não é só Copacabana que pode ter isso”.
André afirma que trata-se de uma tentativa de integração urbana de um espaço no qual se passou a ter interesse imobiliário. “Se não fizer essas mudanças, não vai dar para vender imóveis que custam R$ 4 milhões”, diz. Entretanto, ele enxerga aspectos positivos. “É uma apropriação no sentido de as pessoas passarem a usar mais essa praia, a descobrir mais essa praia, mas isso deve ser feito dentro de um certo limite”, diz.
Ele destaca a necessidade de as novas atividades esportivas serem bem administradas. “Tem que administrar bem, caso contrário, um determinado grupo toma o espaço. A canoa já está ocupando um espaço grande na areia. Também tem que garantir a preservação da vegetação”, defende.
Edital de Obras
As mudanças na Curva da Jurema não param por aí. Nessa quarta-feira (19) a gestão de Lorenzo Pazolini (Republicanos) lançou o edital de obras de reurbanização na região. A iniciativa faz parte de um pacote de R$ 1 bilhão de investimentos em várias áreas, até 2024. Na Curva da Jurema, especificamente, o investimento será de R$ 5 milhões, contemplando reparo da ciclovia; implantação de paraciclos e remodelação das áreas de estacionamento, incluindo vagas para ponto de táxi, destinadas a idosos e pessoas com deficiência, bem como de embarque e desembarque de carga e descarga.
Perspectiva da praia após reurbanização. Imagem: PMV

As obras também vão incluir a criação de novas áreas verdes, a instalação de novo mobiliário urbano e a criação de novos acessos ao calçadão. Será realizado, ainda, o alargamento e novo piso do calçadão e da ciclovia, criando novas áreas de paisagismo, além de iluminação com cabeamento subterrâneo.

O trecho de rua em frente aos quiosques terá seu piso trocado e nivelado, para circulação segura e redução da velocidade dos veículos. O projeto também contempla faixa elevada em todo percurso.


‘Gostamos do que vimos e esperamos que de fato seja construído’

Lino Feletti, da Amacentro, acredita que reurbanização de ruas no Centro formará espaço de convivência mais amplo


https://www.seculodiario.com.br/cidades/gostamos-do-que-vimos-e-esperamos-que-de-fato-seja-construido

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