Há cerca de duas semanas representantes de entidades sindicais e da sociedade civil protocolaram na Assembleia Legislativa o pedido de impeachment do governador Paulo Hartung (PMDB).
Sustentada em 43 páginas, a peça denuncia Hartung por crime de responsabilidade por ter realizado renúncias fiscais que ultrapassaram a casa do bilhão (isso ao ano). A pedalada fiscal está configurada porque o governador abriu seu “saco de bondades” aos felizardos empresários sem prévia autorização do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) ou sem estar escorado em lei estadual específica, que só seria aprovada às pressas pela Assembleia este ano. Coincidentemente após o governador sentir no ar o “cheirinho” de impeachment que vinha de Brasília.
Encerrado numa hermética caixa-preta, o pacote de incentivos de Hartung está na contramão da transparência: o contribuinte, que é quem paga a conta no final, não sabe quais são as empresas beneficiadas ou tampouco o valor concedido a cada uma delas. Se soubesse, talvez o contribuinte não concordasse em destinar o dinheiro dos seus impostos para empresas que despejam pó preto em seus pulmões ou que estejam envolvidas em casos de corrupção ou mesmo as que não cometam crimes ambientais ou financeiros, mas que também não devolvam contrapartida alguma à sociedade.
Embora os pacotes de incentivos estejam sendo questionados na Justiça e no Tribunal de Contas, boa parte da classe política desdenhou do pedido de impeachment. A repercussão do documento na Casa, no dia em que foi protocolado pelas entidades sindicais, ficou restrita ao registro de dois deputados: Sérgio Majeski (PSDB) e Euclério Sampaio (PDT). Somente os dois parlamentares prometeram analisar a peça e se manifestar posteriormente sobre o pedido. A chamada grande imprensa capixaba também deu espaço ínfimo ao pedido de impedimento do governador, induzindo o leitor a acreditar que a demanda dos autores do documento está fadada ao fracasso.
Não estão errados quanto ao prognóstico. Há evidências de sobra para sustentar essa tese. O presidente da Casa, deputado Theodorico Ferraço (DEM), deu sinais de que estaria disposto a barganhar o arquivamento do pedido em troca de sua recondução ao comando do Legislativo pela quarta vez consecutiva.
A justificativa para engavetar o pedido é estapafúrdia, mas isso também é o que menos importa. O caso do impeachment de Dilma deixou claro que o julgamento é político e não técnico. Ferraço alega que a polêmica sobre a legalidade dos incentivos já está sob análise do Tribunal de Contas do Estado (TCE-ES). A tentar justificar que a Assembleia não deve interferir numa questão que já está sendo investigada pela corte de contas, Ferraço contraria uma das prerrogativas primárias do Legislativo: a fiscalização do Executivo.
Na verdade, o grande aliado de Ferraço para engavetar o impeachment sem desgaste para eles e os colegas deputados é o próprio precedente de impedimentos de governadores no Brasil. O mesmo País que impichou dois presidentes eleitos (Collor e Dilma) nos últimos 25 anos, tentou afastar um governador há mais de 50 anos.
Em setembro de 1957, o então governador de Alagoas, Muniz Falcão foi afastado num processo de impeachment literalmente sangrento, como descreveu à época o repórter do Correio da Manhã, Márcio Moreira Alves, que deixou a Assembleia alagoana com uma bala na perna e o Prêmio Esso de Jornalismo na mão. Mesmo baleado, ele passou um telegrama para o diário carioca para registrar: “Impeachment de sangue em Alagoas”.
O repórter se referia à “bancada da cana de açúcar”, que não aceitava as ideias “revolucionárias” do governador. Falcão queria aumentar os impostos dos usineiros para repassar mais recursos para educação. Contrariados, os usineiros quiseram tirar o governador na marra. O embate com os empresários da cana resultou na morte do deputado Humberto Mendes, cunhado do governador, e mais quatro feridos. A tentativa de golpe foi corrigida graças à intervenção do governo federal. Carregado nos braços do povo, Falcão retomou o comando do Estado.
No caso do impeachment capixaba, Paulo Hartung faz o papel de Robin Hood às avessas: tira dinheiro dos cofres públicos, que poderia ser revertido em investimentos em saúde, segurança e educação, para dar às empresas.
Pelo andar da carruagem, Hartung poderá continuar sentado tranquilamente sobre a “caixa-preta” dos incentivos. Não será essa Assembleia subserviente de Ferraço a quebrar a escrita e dar andamento a um processo de impeachment depois de mais de meio século. Sem contar que, desta vez, ao contrário do que ocorreu em Alagoas em 1957, o Espírito Santo teria a chance de protagonizar um processo legítimo de impeachment, não um golpe.