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Sete notas mudas

Não mais que de repente, Marina resolve aprender a tocar piano. Não que ambicione fazer desta arte um ofício, não está mais em idade de começar uma carreira. Só mesmo pra preencher o tempo, visto que de repente caiu no limbo da terceira idade – enviuvou, aposentou, precisando achar armas pra lutar contra os dragões do Alzheimer e da solidão. Os dois filhos têm suas próprias vidas, hoje morando em meridianos diferentes dessa aldeia global chamada mundo.
 
Não quer ser um peso para eles. Claro que faz outras coisas pra preencher o tempo…  mas por que mentir para si mesma? O piano era um sonho quase tão velho quanto ela mesma. Na infância, a vizinha dava aulas de piano. Era a professora de música da escola. Ficava ouvindo o dedilhar das teclas atravessando os limites da cerca e invadindo as janelas… tão bonito! Quando  toda a vizinhança reclamava dos acordes dissonantes dos alunos, Marina era a única que gostava de ouvir.
 
Queria aprender, mas a  mãe dizia que que o dinheiro não sobrava para tais futilidades. Pudera, seis filhos, pai funcionário da prefeitura, mãe do lar. A professora casou e se mudou pra local não sabido,  com certeza foi atormentar outras crianças e outros vizinhos.  Marina foi a única que sentiu sua falta. Quando cresceu  tentou várias aulas de música, mas o único instrumento que podia comprar era  uma flauta, e jamais conseguiu aprender a tocar nem Carioca da gema.  
 
Por que não toca violão? Sugeriam as amigas ao ver sua frustração. Por que não toca guitarra? sugeria o namorado. Quando virou marido e teve condições de pagar o curso e o piano, não concordou que ela aprendesse a tocar piano, nem sugeriu  qualquer outro instrumento. “Não tem mais nada pra fazer?” Tinha, mas por que  tocar piano não poderia estar entre elas? “Não tem qualquer utilidade prática. Conheço muito piano encostado,  alimentando as traças…”
 
Um dia os filhos já crescidos e resolvidos em suas próprias  vidas lhe mandaram um presente – Surpresa! Um piano foi entregue no apartamento,  tão grande que precisou passar pela janela do nono andar, com a vizinhança toda assistindo e aplaudindo. “Presente antecipado de natal. Quando chegarmos, queremos ouvi-la tocar o jinglebell”. Mas nem teve tempo de procurar quem ensinasse. Mal pôs os pés em casa e deparou com a novidade entulhando a sala, o marido chamou os carregadores de volta. “Devolve pra loja”.
 
Inúteis os apelos, as ameaças, as lágrimas, as greves culinárias e de sexo – o belo e reluzente piano voltou pra loja de onde veio, com os vizinhos outra vez assistindo à lenta descida de seu sonho, desta vez sem aplausos. Com o crédito trocou a geladeira. Tava precisando, e por que não admitir? Era muito mais útil. Outra vez o sonho de tocar piano não conseguiu soltar as amarras a que nos atamos na vida.  Agora, de repente, foram-se as amarras, e ficou apenas o vazio que as pessoas deixam ao partir.
 
Comprou um teclado Yamaha para treinar em casa, escolheu a escola, a professora,  e logo estava  infernizando os ouvidos dos vizinhos com o dó-ré-mi-fá-sol-lá “sem dó” dos iniciantes… Dó de não ter aprendido quando jovem; ré, se fosse possível voltar atrás no tempo; mi, devia ter pensado mais em mim mesma; fá, que nada na vida é fácil; sol,  que traz sempre um novo dia; lá, lugar de olhar é pra frente;  si… A professora casou e se mudou pra local não sabido. Veio substituí-la o Si, apelido do Sidney, também viúvo, também sozinho…

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