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Lei Rubem Braga completa 30 anos no ocaso

Uma das pioneiras no país, lei de cultura de Vitória não financia projetos desde 2015 e não terá novo edital em 2021

Novo selo da Lei Rubem Braga, lançado junto a editais de 2020

No próximo dia 5 de junho, completam-se 30 anos da sanção da Lei Rubem Braga em Vitória, a segunda lei municipal de fomento à cultura do Brasil, sancionada seis meses depois da primeira, criada em São Paulo (SP). A data, que poderia ser motivo de comemoração para a sociedade capixaba, tornou-se alvo de preocupação para a classe artística e demais agentes interessados na cultura.

Um abaixo-assinado começou a circular nas redes nessa sexta-feira (21), cobrando respostas da prefeitura sobre os atrasos na seleção de projetos inscritos em 2020 e a liberação de recursos para novo edital neste ano. “A lei teve uma importância muito grande para Vitória e está sendo tratada com um desprezo que é incompreensível”, diz o cineasta Ricardo Sá, integrante do Conselho Municipal de Políticas Culturais (Comcultura) e criador do abaixo-assinado.

“A gente esperava que fosse vir um presente de comemoração dos 30 anos com um volume de recursos, justamente para escoar a demanda represada durante quase cinco anos sem edital”, lamenta. Porém, parece que o que vem é o contrário. Ao invés de mais recursos, a lei balzaquiana terá menos do que o determinado por lei. Segundo informou em nota a Secretaria Municipal de Cultura (Semc), no ano em que o Projeto Cultural Rubem Braga completa três décadas, ‘não será feita a publicação de um novo edital à medida que o último ainda encontra-se em vigor”.

A última notícia que se tinha era de que a Semc, pressionada pelo Comcultura, havia solicitado à prefeitura o desembolso de R$ 2,6 milhões para a Lei Rubem Braga, conforme assinalado na própria legislação, que prevê como valor anual a média do que foi investido nos últimos 10 anos em que ela esteve em atividade. Essa quantia solicitada conseguiria atender ao R$ 1 milhão previsto em 2020 que ainda não foi pago e sobraria R$ 1,6 milhão para um novo edital.

Mas a afirmação da Semc de que não haverá novo edital indica que ordens superiores na gestão do prefeito Lorenzo Pazolini (Republicanos) já vetaram a quantia estipulada pela legislação, permitindo supor que disponibilizará apenas o valor que a gestão municipal deve aos projetos inscritos no ano passado no edital. “Se o valor for inferior ao previsto na lei, a prefeitura precisa apresentar uma justificativa”, cobra Sebastião Ribeiro Filho, o Tião Xará, atual presidente do Conselho Municipal de Política Cultural (Comcult). No entanto, a informação oficial sobre os recursos que estarão disponíveis para 2021 para a lei ainda não foi divulgada.

Após quase seis meses, tendo a cultura agora sob comando efetivo de Luciano Gagno, ex-subsecretário e ex-interino da pasta, a gestão Pazolini ainda não liberou sequer os R$ 50 mil necessários para contratar os pareceristas já selecionados desde o ano passado para avaliar os projetos da Rubem Braga 2020. A Semc afirma que o requerimento para tal foi aberto e segue em análise no Comitê de Controle dos Gastos Públicos da PMV. Só após a contratação dos pareceristas é que os projetos serão avaliados, sendo que o valor disponibilizado para cada linguagem artística no edital ainda precisará ser indicado pelo conselho.

O que esperar então da liberação do R$ 1 milhão prometido para os projetos inscritos em 2020? Não foi dada previsão pela atual gestão. “Estamos vivendo um momento de pandemia, em que todos sabem que os artistas e produtores culturais estão passando dificuldades, sem emprego, às vezes sem ter o que comer. É necessário um esforço para agilizar os processos. Mas não se percebe isso da atual gestão, que fica pedindo tempo como se a situação estivesse sob controle”, diz o escritor José Roberto Santos Neves, vice-presidente do Comcultura.

Ricardo Sá também lamenta a demora para que se conclua o processo. “O que me deixa mais chocado, revoltado, é a falta de respeito da gestão pública com as pessoas que se inscreveram, investiram seu tempo para escrever um projeto, que é super complicado e cheio de exigências. Como cidadão, tem direito a ter uma resposta do governo municipal para que este simplesmente cumpra seu papel”.

Mais de 1.800 projetos apoiados

Vale lembrar que entre 1991 e 2015, a Lei Rubem Braga viabilizou a realização de 1.840 projetos culturais na Capital, num investimento total de R$ 36,88 milhões ao longo dos anos. Porém desde 2016, quando a lei começou a passar por reformulações, não foram publicados editais. Só depois de aprovado o novo projeto de lei foi lançado um edital, em agosto de 2020.

Segundo divulga um documento da própria PMV sobre a lei, um estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) encomendado pelo Ministério da Cultura mostra que para cada R$ 1 investido em projetos culturais, R$ 1,59 retorna para a sociedade por meio da movimentação financeira da cadeia produtiva que gira em torno da cultura. “Não é só o artista que é prejudicado, é toda essa cadeira econômica”, alega Ricardo Sá.

No ano passado, houve 127 projetos inscritos, sendo que 78 deles foram habilitados. Eles totalizam um valor de mais de R$ 3 milhões, mas terão que disputar o R$ 1 milhão previsto no edital pela gestão de Luciano Rezende (Cidadania), se e quando a gestão Pazolini liberar tal valor em recursos.

O presidente do Comcult, Tião Xará, critica o passivo deixado pelas gestões de Rezende por ter cinco dos oito anos sem que houvesse contratação de projetos. “Para onde foram os cerca de R$ 12 milhões que deveriam ter sido investidos na Lei Rubem Braga nesses anos?”, pergunta Ricardo Sá. Mas o panorama não parece animador sob o comando de Pazolini. “Estou decepcionado com o prefeito, que não respondeu à solicitação para receber o conselho que queria falar sobre a importância da Lei Rubem Braga para o município”, diz Tião, que requereu e reiterou o pedido para uma comissão ser recebida por Pazolini.

Histórico de uma lei que marcou as políticas de cultura

Homenageando o escritor cachoeirense Rubem Braga, considerado um dos maiores cronistas brasileiros em todos os tempos, a lei foi criada durante a gestão de Vitor Buaiz, primeiro prefeito do PT eleito em Capital, em paralelo com Luiza Erundina em São Paulo, que também criaria uma lei municipal de fomento cultural.

A dissertação “Políticas Públicas Culturais: Cidade de Vitória -ES (1991-2008), apresentada por Julia Duarte de Souza para obtenção de diploma de mestre em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Estado (Ufes), registra que o período que antecedeu a elaboração e publicação da lei foi de muitos diálogos com diversos setores da classe artística para a construção da mesma, tendo como um dos articuladores o jornalista Rogério Medeiros, então vice-prefeito da Capital.

Para José Roberto Santos Neves, a Lei Rubem Braga foi um “divisor de águas” na política cultural do Espírito Santo. “Ela repercutiu muito positivamente no cenário cultural, proporcionou muitas obras e lançamentos, e criou um mecanismo de financiamento que democratizou e profissionalizou a seleção de projetos culturais”, considera.

Por muitos anos, a Lei Rubem Braga de Vitória foi a principal ferramenta do tipo funcionando no Espírito Santo. Só em 2009, a Secretaria de Estado da Cultura (Secult) começaria a lançar editais anuais de fomento a projetos culturais. Outras leis municipais, com valores inferiores, surgiram muito tempo depois, como a Lei Chico Prego na Serra (1999), Lei Vila Velha Arte e Cultura (2007) e Lei João Bananeira em Cariacica (2015). A Lei Rubem Braga de Cachoeiro de Itapemirim surgiu um mês depois da homônima de Vitória, mas passou por inconstâncias no lançamento de editais, solucionadas definitivamente desde 2009.

O mecanismo adotado em Vitória foi de isenção fiscal. Inicialmente, os projetos inscritos e aprovados obtinham um bônus que poderia ser trocado por valor referente a até 20% do devido por empresas em impostos como ISSQN e IPTU, que passariam a financiar os projetos culturais. Nos 25 anos em que houve edital, a média foi de mais de 73 projetos financiados por ano. Em alguns anos chegou-se a ultrapassar os R$ 3 milhões em investimentos.

Em 2015, entretanto, no edital que antecedeu a paralisação, foram 223 projetos inscritos e apenas 13 habilitados. A burocracia que levou à eliminação da maioria dos projetos foi uma das reclamações que acompanharam os agentes culturais em sua relação com a aplicação da lei. Em 2020, na volta dos editais, esse número também foi alto, quase 40% dos inscritos foram eliminados por não cumprir algum requisito.

Mas mesmo para os aprovados, outros problemas afligiam os produtores de arte e cultura. O primeiro era a troca do bônus, que os obrigava a ir bater nas portas das empresas para buscar apoio. “Era muito complicado. Você aprovava o projeto, mas na verdade dependia do aval de uma empresa. As obras mais contestatórias sempre tiveram mais dificuldade de trocar os bônus”, lembra Ricardo Sá.

Outra questão era a prestação de contas. “A secretaria não tinha condições e estrutura para cobrar e fiscalizar os projetos. A lei é maravilhosa, o problema está na aplicação dela”, afirma a produtora Leandra Moreira. Essa falta de estrutura gerou uma série de inconvenientes aos realizadores, que eram cobrados erroneamente, mas também permitiu que projetos ficassem inadimplentes, devendo prestar contas à sociedade pelo uso do dinheiro, ou efetivar sua devolução aos cofres públicos.

Enquanto “arrumava a casa” e reformulava a lei, a prefeitura optou por paralisar os editais a partir de 2015, o que terminou com casos na Justiça e fazedores culturais com nome na dívida ativa. Mas o tempo de reformulação durou mais que o esperado. A nova proposta para a lei apresentada em abril de 2019 saiu da Câmara de Vitória com uma emenda para incluir “Cultura Religiosa” como uma das novas categorias, o que desagradou a classe artística e ao então secretário Francisco Grijó. A emenda acabou vetada por Luciano Rezende, mas atrasou em mais de seis meses a publicação da nova lei, que veio com sete principais mudanças.

A mais importante delas foi o fim do sistema de troca de bônus intermediado por empresas, substituído do repassar direto ao empreendedor. Também foi ampliado o número de áreas culturais contempladas de oito para 19, criada comissão de análise de projetos composta por avaliadores externos de notório saber e remunerados, e reduzido o tempo de comprovação de moradia em Vitória.

Mas quando o novo edital já tinha data de lançamento marcado para 2020, veio a pandemia de Covid-19, que postergou novamente a data, incluindo ameaça de corte no valor total prometido por conta da crise sanitária e econômica, o que atrasou novamente o lançamento até que a totalidade antes prometida, de R$ 1 milhão, fosse liberada.

Com o edital lançado em agosto com prazos apertados para finalizar antes do fim da gestão de Luciano Rezende, um ataque hacker prejudicou o sistema online da prefeitura por mais de 10 dias e foi alegado como fator para atrasar ainda mais a conclusão do edital da Rubem Braga. A lista dos projetos inscritos que foram habilitados a seguir concorrendo foi divulgado no dia 7 de dezembro, mas não houve tempo para contratação dos pareceristas que avaliariam os projetos já selecionados.

Depois disso, chegou-se ao imbróglio atual. Mudou a gestão e a atual alega que a anterior não deixou recursos empenhados para a Lei Rubem Braga, o que é negado pela mesma. No jogo de empurra, se vão nove meses desde o lançamento do edital e cinco desde a habilitação de projetos sem que tenha sequer dado início à avaliação dos mesmos por parecerista.

É nesse passo arrastado e maltrapilho, maltratado pela gestão pública, que caminha essa senhora Lei Rubem Braga, mãe da política cultural moderna do Espírito Santo, rumo aos 30 anos sem festa de aniversário. O que escreveria o talentoso cronista cachoeirense ao observar essa triste cena que leva o seu nome?

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