Sexta, 03 Mai 2024

O homem que virou orquídea

O homem que virou orquídea

Texto: Henrique Alves

Fotos: Rogério Medeiros



Sabiá da crônica. Rubem detestava o apelido. “Prefiro ser um urubu, ave maior e mais triste”, grunhia. Houve um período em que o jovem Ivan Lessa - filho de Orígenes e Elsie Lessa e então novo companheiro dos bares da vida do cronista - assim o aclamava: “Salve o sabiá da crônica!”. Ao que Braga devolvia: “Sabiá? Vira-bosta da crônica, isso sim!”.
 


O amigo Sérgio Porto, notando a harmonia entre o canto da ave e a prosa do Braga, deu-lhe a alcunha. Poucos sabiam do mar, de pássaros, dos ventos, das estrelas, de rios ou plantas como o filho de Raquel Coelho Braga e Francisco Carvalho Braga, nascido em 12 de janeiro de 1913. 
 
Quando menino, um dos grandes prazeres do Rubinho era passar a noite da mata, coisa que fazia com os amigos. Não havia coisa melhor que despertar de madrugada para desfrutar aquele aroma fresco de mato, o cheiro de terra molhada.
 
Rubem viveu uma infância típica de criança do interior: correr pra lá e pra cá pelas ruas, fugir das boiadas, jogar bola, pescar piabas, mergulhar no Itapemirim. 
 
Sem falar no paraíso particular da ampla casa da família Braga. Ali o menino trepava as árvores todas. Muitas mais tarde seriam tratadas como entes queridos em suas crônicas: o pé de fruta-pão, de cajá-manga, de abiu e “da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude”. 
 
Aqui, Braga presta dois tributos numa só crônica: à saboneteira e ao cajueiro que se destacava atrás de sua casa, no alto de um morro. Braga conta que instou com seu amigo Carybé a subir o morro para ver o cajueiro “como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido” (Cajueiro, setembro, 1954).  
 
Mas um escritor não vive de amor à natureza. E aí avulta o detalhe do Braga: a escrita. Ainda hoje, ninguém sabe direito o que vem a ser a crônica, se jornalismo, se literatura. Por via das dúvidas, um rebento da união de ambos.
 
Com Rubem Braga, no entanto, esse papo foi diferente. Encontramos nele, antes de tudo, literatura. A arte da palavra. Rubem confere brilho ao frívolo, torna permanente o fugaz, veste o singelo com elegância. Enfim, dá nobreza ao papo de botequim. 
 
A prosa leve, apurada, bem humorada - embora por vezes triste, resignada e autoirônica - fez daquele homem casmurro um dos pontos altos da moderna literatura brasileira. Quem se quedaria impassível ante sua cruzada atrás de uma simples borboleta amarela? 
 
“Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas – as casas, os veículos ou se vendo –, só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel.” (A Borboleta Amarela, setembro, 1952). 
 
O mar também foi outro parente muito querido do Braga, que, além de cronista, era excelente nadador. Tudo parece ter começado no início dos anos 20, quando seu pai, Francisco Braga, “descobriu” Marataízes. A partir de então... Melhor que o próprio explique.  
 
“Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza.” (Mar, julho, 1938).
 
Interessante ver que essa crônica foi publicada em numa época muito dura para Rubem Braga. Mesmo com 20 e poucos anos, o cronista e jornalista já era uma celebridade. Dois anos antes, publicara seu primeiro, e muito bem acolhido, livro, O Conde e o Passarinho
 
Aqui, na crônica homônima, das mais célebres, confessa que entre o conde e o passarinho, prefere o que canta e voa. “O conde não sabe gorjear nem voar.” (O Conde e o Passarinho, fevereiro, 1935).
 
Os anos 30 foram penosos política e financeiramente para Braga. Getúlio Vargas não lhe deu trégua - Braga o repugnou pelo resto da vida. Entre 1930 e 1940, o cronista morou no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre, sempre importunado pelo ditador gaúcho. 
 
Quando em 1936 Vargas declarou estado de guerra, o nome de Rubem Braga sequer poderia aparecer nos jornais. Acossado, recorreu a pseudônimos. O aperto financeiro - que, diga-se, viveu em muitos momentos da vida - foi particularmente mais agudo naquele período. 
 
Em 1970, Rubem Braga vira uma orquídea. É o que diz Carlos Drummond de Andrade numa crônica: “Entre as desesperanças da hora, e à falta de melhores notícias, venho informar-lhes que nasceu uma orquídea. Nasceu, isto é, foi batizada. Seu nome de batismo é o do cronista Rubem Braga.” (Nasce uma orquídea, Jornal do Brasil, 1970).
 
A vida inteira Rubem Braga foi devoto da natureza. Fiel e fervoroso devoto. O sentimento do mar, das plantas e dos bichos nasceu com ele. Era conhecedor profundo dos ventos e ornitólogo amador. 
 
A mítica cobertura na Barão da Torre, em Ipanema, seu lar a partir dos anos 60, ganhou um jardim de Burle-Marx - que Braga logo alterou, substituindo as plantas decorativas pelas frutíferas.
 
Mesmo com o êxito jornalístico e, sobretudo, mesmo sendo um dos grandes personagens da Ipanema daqueles anos, o homem da roça sobreviveu dentro dele, pedindo, ansiando por uma vida simples, longe de tudo, no meio do mato. 
 
Não à toa Braga foi grande amigo de Dorival Caymmi, outro enamorado do mar. Cultivou também a afável amizade de dois poetas apreciadores da vida simples: o amazonense Thiago de Mello e o mato-grossense Manoel de Barros. Este, certa vez, ao ver o pomar de Braga, não se conteve: “Uma jabuticabeira, no céu de Ipanema!”.
 
Em finais dos anos 50, Braga faz um apelo por uma causa digna: 
 
“Apelo para os amantes de passarinhos brasileiros que tiverem algum espaço e algum dinheiro: escrevam para o Dr. Augusto Ruschi, Santa Teresa, Estado do Espírito Santo, peçam a ele instruções para criar passarinhos. Não é triste criar apenas pássaros mais canoros, mais engraçados e mais amigos do homem que estão ameaçados de acabar para sempre? Escrevam ao Ruschi; ele ficará danado comigo, mas, apaixonado como é por essas coisas, não terá coragem de negar ajuda a ninguém”. (Passarinho, fevereiro, 1959)
 
A energia que o naturalista capixaba Augusto Ruchi empregava na proteção ao meio ambiente tinha ampla aceitação internacional. Para ele e para a Europa, a Mata Atlântica era uma criação magnífica; o cientista não se curvava e denunciava desmatadores com um destemor impressionante. 
 
Mas, novidade, no Espírito Santo Ruschi sofria sevícias morais terríveis: certa imprensa capixaba tentava fazer dele a figura de um embusteiro, desdenhando suas pesquisas, dizendo que ele vendia beija-flor, e outras coisas do nível, próprias destas paragens.
 
Em 1970, Augusto Ruschi descobre uma nova espécie de orquídea e a batiza Physosiphon Bragae Ruschi. Mais que imprimir o nome de Rubem Braga na ciência botânica, o tributo foi antes um gesto de gratidão. 
 
Rubem Braga foi um protetor público da militância ecológica de Augusto Ruschi. Com seu prestígio, deu impulso às lutas, ideias e campanhas do naturalista. A amizade começa nos anos 40 e, a partir de então, o cronista mostraria para o Brasil quem era aquele homem que vivia enfurnado nas matas de Santa Teresa. 
 
Em 1977, por vias pouco democráticas, o então governador biônico e hoje deputado estadual Élcio Álvares (DEM) tentou se apropriar das terras da Reserva de Santa Lúcia, em Santa Teresa. A rudeza de Élcio, parece, subestimou o homem dos beija-flores. 
 


Numa entrevista de janeiro de 86 à Folha de S. Paulo, Ruschi relembra a violenta contenda com Élcio: “Aquele safado quis destruir a estação biológica de Santa Lúcia para favorecer amigos seus, industriais. Queriam plantar palmito lá. [...] Os jornais do Espírito Santo, comprometidos com o bandido, se omitiram”.
 
As fotos desta matéria registram a vinda de Rubem ao Espírito Santo para fazer aquilo que fizera por toda a vida e ainda o faria: dar projeção ao trabalho e aos ideais do pesquisador capixaba. Então na TV Globo, onde entrara em 75, Rubem veio fazer matéria para o Hoje (o atual Jornal Hoje). 
 
Na edição dedicada ao cronista da coleção Grandes Nomes do Espírito Santo, o músico Afonso Abreu, sobrinho de Rubem, conta que nunca vira o tio chorar. Nos anos 60, Abreu morou por alguns meses com ele na Barão da Torre.
 
No dia 5 de junho de 1986, junto a uma cachoeira, Augusto Ruschi foi enterrado no ventre da Reserva Santa Lúcia. Rubem veio e ficou no Hotel Vitória Palace, na Praia da Canto. Pela manhã, Abreu o encontrou sentado sobre a cama e flagrou os olhos marejados. Mais tarde, seguiram para a cerimônia.
 
“Fui uma última vez a Santa Teresa me despedir do amigo que morreu. Ele quis ser enterrado bem dentro da mata que tanto amou, junto a uma cachoeira. Seu corpo ficou ali, entre orquídeas e bromélias”. (Adeus a Augusto Ruschi, 1988).


Sobre o amigo, consciente da importância de sua causa, Rubem fez um prognóstico: no século XXI, todos os capixabas seriam esquecidos. Inclusive ele, Rubem Braga, um dos principais escritores brasileiros do século XX. O único nome que sobreviveria ao tempo seria o de Augusto Ruschi.

 
Um câncer de laringe nos levou Rubem Braga, que completaria 100 anos no próximo sábado (12). A doença foi diagnosticada no início de 1990, num exame de rotina. Ele recebeu a notícia sem dramas nem alarmes. Recusou tratamentos. Morreu de insuficiência respiratória às 23h30 em 19 de dezembro de 1990 num quarto do Hospital Samaritano, em Botafogo (RJ). O corpo foi cremado e as cinzas lançadas no Rio Itapemirim.
 
Se Ruschi teve a alma alçada aos céus por beija-flores, Rubem deve estar fazendo algo parecido com o que fez em 1973, quando levado a Lisboa pela editora portuguesa Livros do Brasil. 
 
Com amigos, foi a uma exposição de Rodin, mas... sumiu. Que Rodin, que nada. Só mais tarde o encontraram: estava nos extensos jardins do local da mostra, tentando identificar um pássaro cujo canto ignorava. Esse era o velho Braga.
 
Obs.: Merece referência o livro ‘Rubem Braga – Um Cigano Fazendeiro do Ar’, de Marco Antonio de Carvalho, do qual a maior parte das histórias desta matéria foi extraída. Obra volumosa, mas de mui agradável leitura. Vale a pena.

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