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‘Quem vai mandar seus filhos pra uma roleta-russa?’, perguntam pesquisadores

Já morreram de Covid no Estado 17 crianças, adolescentes e jovens, e apenas 17% tinham comorbidades

Marcelo Camargo/Agência Brasil

“Se acontecesse um acidente numa vã escolar com 17 óbitos, seria uma tragédia nacional. Mas a gente teve 17 óbitos na faixa escolar no Espírito Santo e essas famílias estão invisibilizadas. Estatisticamente é muito pouco, mas é uma roleta-russa. Eu não quero colocar meu filho nessa roleta- russa!”. 

A ilustração de alerta é feita pelo doutor em Matemática e professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Etereldes Gonçalves Junior, membro do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), que assessora cientificamente o governo do Estado na tomada de decisões sobre a gestão da crise da Covid-19.

O apelo é feito com base na análise dos dados – feita por cientistas do NIEE, que também conta com pesquisadores do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN) – referentes à população capixaba em idade escolar, disponibilizados no Painel Covid-19 e nos dois inquéritos sorológicos realizados pelo governo do Estado.

O primeiro joga luzes sobre o comportamento do novo coronavírus (SARS-CoV-2) nas pessoas de zero a 19 anos, e o segundo, na faixa etária de 2 a 22 anos. Em síntese, o estudo mostrou que apenas 17% das crianças, adolescentes e jovens que morreram em decorrência da Covid-19 possuíam alguma comorbidade e apenas 23% tinham deficiências. Metade das vítimas infantis e juvenis da Covid-19, portanto, não estava enquadrada em qualquer grupo de risco para a doença.

Em uma live realizada pela Pró-Reitoria de Extensão (Proex) da Ufes, com mediação da chefe da Divisão de Gestão da Informação da Proex, Claudia Rangel, o matemático fez esse questionamento, ao lado da doutora epidemiologista Ethel Maciel, também professora da Ufes e integrante do NIEE.


Esses 17 óbitos correspondem, num universo de três mil mortes, uma letalidade baixa, mas ainda assim é preocupante, ressaltou Etereldes. “Toda vida importa, mas a morte de um jovem causa ainda mais comoção e tristeza nas famílias e indignação”.

“É muito contraditório”, argumenta Ethel. Em um dia, relata, o Estado apresenta os dados do inquérito epidemiológico, no qual grande parte dos positivos são jovens na idade dos universitários, e no outro dia, é dada autorização para o retorno do ensino superior. “É difícil defender”, lamenta a epidemiologista.

“Estamos falando de mais de um milhão de pessoas que integram a comunidade escolar. E a gente não sabe o grau de exposição. É preciso conhecer a real situação dessa população, para tomar qualquer decisão de forma segura”, reforçou Etereldes.

O estudo mostra outro dado alarmante: além de 35% das pessoas testadas positivamente nessa faixa etária, segundo o Painel, serem assintomáticas, apenas 26% apresentaram febre, o que mostra a baixa eficácia da medição de temperatura para identificar estudantes suspeitos de contaminação. “Não adianta verificar febre, isso funciona para menos de 30%. É preciso que se entenda isso”, salientou Ethel.

Comportamento
Os dois cientistas apresentaram outros estudos que os embasam na defesa de que não há ainda no Espírito Santo nem as condições epidemiológicas apontadas pela Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) como indicadoras de controle da pandemia, nem mesmo evidências de que o conjunto das escolas públicas e privadas capixabas tenha estrutura necessária para o cumprimento integral dos protocolos de biossegurança estabelecidos pela Portaria 1-R conjunta das secretarias de Estado da Saúde e da Educação (Sesa/Sedu).

Um terceiro agravante, explanou Ethel Maciel, é o comportamental, já apontado pela OMS como preocupante, mesmo entre o público em idade universitária, que, teoricamente teria maturidade suficiente para cumprir os protocolos de distanciamento e higiene no retorno das aulas presenciais.

“A OMS está chamando atenção: esse grupo está se movimentando mais na cidade, estão tendo mais dificuldade na adesão [aos protocolos escolares], por questões comportamentais. Liberar [as aulas presenciais do ensino superior] sem um estudo minimamente para te indicar quantos suscetíveis [quantas pessoas ainda não tiveram contato com o vírus e não estão imunizadas] têm nesse grupo, acho muito prematuro. É uma roleta-russa, como disse Etereldes, é querer pagar pra ver”, criticou. 

Esse grupo de 18 a 29 anos, complementa Ethel, tem sido responsável, segundo a OMS, “pela manutenção da pandemia”. É um grupo que está se aglomerando, está fazendo festas clandestinas, inclusive no nosso Estado, com música ao vivo, coisas que a gente não esperava”, relata.

Curvas epidemiológicas
Etereldes ressaltou o fato de o Espírito Santo já ter percorrido metade da descida da curva de casos ativos, o que é bom e é confirmado pela redução da taxa de transmissão (Rt), que está há quatro semanas abaixo de 1. Mas no interior, apesar de também estar em geral abaixo de 1 há três semanas, houve uma subida do índice nas duas últimas semanas, havendo duas microrregiões com Rt preocupante – noroeste com 1,46 e nordeste com 1,36 – e duas outras que oscilam um pouco acima e um pouco abaixo de 1, que são a litoral sul e a central-serrana. “O Rt no interior pode ficar acima de 1 nas próximas semanas se essa tendência não for alterada”, alertou. 
E mesmo quando o Rt menor que 1 estiver consolidado em todas as microrregiões, essa condição não é suficiente para entender a pandemia sob controle, nem para a reabertura de escolas. Essa é apenas uma das oito condições, listadas pela Fiocruz, que precisam ser atendidas para que seja possível reabrir escolas de forma segura.

A outra é a redução da transmissão comunitária para menor que um caso novo por dia por 100 mil habitantes, o que, considerando a população capixaba, aponta para menos de 40 casos por dia. “Hoje estamos longe disso, são mais de 600”, informou Etereldes, acrescentando que a condição de redução de óbitos também está distante.

As demais referem-se à disponibilidade de leitos hospitalares, que o Espírito Santo tem caminhado para atingir, bem como a capacidade de testagem, isolamento e monitoramento de todos os positivos e seus contatos próximos, além da realização do diagnóstico de pelo menos 80% dos casos no território.

“Esse conjunto de condições significa que chegou numa fase da transmissão em que o risco é muito baixo, com um número muito baixo de pessoas ativas, em que 100 pessoas transmitem pra menos de 50. Assim, se houver um surto, não vai haver um descontrole”, explica.

Privilégio velado
Uma vez atingindo as condições epidemiológicas, o passo seguinte é abrir de forma escalonada, com vigilância epidemiológica (testagem, acompanhamento dos contatos dos positivos) e, principalmente, com garantia de cumprimento integral dos protocolos de biossegurança. “Os protocolos têm que ser exequíveis”, enfatizou. E exequíveis, ressalta, “também em questão de igualdade”.

“Colocar regras que só um conjunto de privilegiados pode cumprir é não querer dizer que vai ser feito como no Rio de Janeiro, que deixou só as escolas particulares abrirem, mas ter essa situação como consequência “, expõe.

“Nem governo progressista quer o ônus político de dizer ‘eu quero abrir só as particulares’, mas o ônus prático, da vida real, vai ser esse. Você vai ter as particulares, e nem todas, somente aquelas das classes mais privilegiadas, conseguindo de adequar aos protocolos, aprofundando as desigualdades que já são abissais”, denuncia.

Outro ponto importante é a responsabilização. “Não pode fazer como em lugares como o Amazonas, em que os pais são responsabilizados pelo risco da contaminação do filho. Os protocolos sanitários são ótimos! Mas e a responsabilização sobre o seu não cumprimento? Vai ser do secretário?”, questiona, ressaltando a importância, para a população capixaba, da postura do governador Renato Casagrande (PSB) de dialogar com os cientistas e permitir o acesso da universidade a dados qualificados gerados pelo Instituto Jones para a produção de “relatórios transparentes e honestos”. “A gente tem sido mais ouvido do que não ouvido”, reconhece, apesar das críticas às decisões políticas tomadas em discordância com as evidências científicas.

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