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‘Repercussão nacional da misoginia do TJES vai ser muito ruim’

Professora da UFF Carla Apolinário defende formação de juízes em Direito Antidiscriminatório, que tornou-se obrigatório em concursos

Divulgação

O Espírito Santo tem chamado atenção pela incidência de episódios de machismo e misoginia dentro do Tribunal de Justiça (TJES). A avaliação é da professora e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) Carla Apolinário.

“Quem atenta hoje contra a Lei Maria da Penha [Lei nº 11.340/2006], atenta contra uma coletividade muito grande, não só de vítimas, mas de órgãos e instituições organizadas para a efetividade dessa lei. Por isso que a gente rapidamente começou a olhar pro Espírito Santo, como uma situação diferenciada, que passou a ser um problema para todos nós. É importante que eles [juízes, desembargadores e outros operadores do Direito no Tribunal] saibam que está todo mundo de olho e que a repercussão nacional disso vai ser muito ruim”, afirma a acadêmica carioca, que também coordena a Clínica Jurídica LGBTQIA+, fruto de uma parceria entre a UFF e a Prefeitura de Niterói, que além dos atendimentos jurídicos especializados à população vulnerável, oferece cursos de formação e capacitação em Direito Antidiscriminatório e outras diversidades.

A crítica ao machismo violento do Judiciário capixaba, afirma Carla Apolinário, na verdade foi uma percepção unânime entre os pesquisadores ativistas, conselheiros e operadores do Direito que participaram do Simpósio “Violência Institucional e Revitimização da Execução da Lei Maria da Penha”, realizado no último dia 23 em comemoração aos 15 anos do Fordan, projeto de extensão da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). No evento, especialistas de diferentes estados do país fizeram suas análises jurídicas sobre casos acompanhados pelo Fordan, que explicitam a reprodução, nos órgãos de Justiça, da misoginia que gera a violência doméstica e familiar contra a mulher.

“Um dos primeiros problemas nos casos do Espírito Santo é a reprodução das agressões, pelas instituições que têm atribuição legal de proteger as mulheres, reproduzindo, nos documentos oficiais, o discurso misógino, elitista e machista típico da violência de gênero”, relata. Enquanto isso, alerta, “o principal bem jurídico tutelado pela Lei Maria da Penha, que é a vida e o bem-estar dessas mulheres, está em risco”.

Arquivo pessoal

O cerne do problema, para Carla, “parece ser de compreensão da complexidade da Lei Maria da Penha”. Por isso, é preciso disponibilizar formação acadêmica especializada sobre violência – de gênero, sexual, racial, étnica e religiosa – e, para quem já se formou, é preciso que os tribunais qualifiquem seus profissionais. “Juízes, desembargadores, servidores (serventuários) e terceirizados dos setores administrativo e de infraestrutura dos Tribunais devem receber formações e capacitações periódicas em Direito Antidiscriminatório”, aconselha, com base na experiência da Clínica Jurídica.

Antenado com essa demanda real também nos demais tribunais do país, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu tornar tais conteúdos obrigatórios nos próximos concursos para juiz. Na 93ª Sessão Virtual, realizada no final de setembro, os conselheiros aprovaram por unanimidade o voto do ministro Luiz Fux para alterar a Resolução CNJ 75/2009 e incluir, no rol de disciplinas obrigatórias: Direito Digital, Pragmatismo, Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental, Agenda 2030 e o Direito da Antidiscriminação.

“Juízes serão obrigados a ter esses conhecimentos se quiserem ser aprovados nos concursos. Essa mudança na magistratura vai certamente provocar efeito em cascata na formação em Direito na graduação”, comemora Carla Apolinario, ressalvando que essa primeira medida precisa vir acompanhada da capacitação periódica de quem já atua. “O paradigma dos direitos humanos, o padrão de reconhecimento de Direitos Humanos, é sempre no sentido da progressividade, avançar em termos de reconhecimento de demandas específicas e de aprofundamento do bem-estar social. É um campo muito dinâmico e que demanda permanente atualização”, informa.

A “capacitação permanente” vai ser crucial “para evitar decisões díspares entre juízes que tiveram essa formação e os que entraram antes desse conteúdo, tornando todos esses profissionais antenados e atualizados com o mundo social em permanente em transformação”.

Relatos reais

Durante o Simpósio do Fordan, Carla e outros especialistas ouviram cinco relatos de mulheres vítimas da violência do Judiciário capixaba, num processo que o projeto de extensão compreende como “revitimização”.

“Essas mulheres estão com a vida em risco e os órgãos que deveriam proteger não estão fazendo o seu dever de casa. Nesse sentido, o projeto trabalha com a ‘revitimização’ e a violência institucional. Essas mulheres tiveram suas violências domésticas e familiares potencializadas pelo Judiciário”, explica a coordenadora do Fordan, Rosely da Silva Pires.

Fordan

Nos relatos, as mulheres receberam codinomes relativos à Lei Maria da Penha: Maria Vitória, Maria Joana, Maria Beatriz, Maria do Socorro e Maria Clara.

Maria Vitória escolheu esse codinome, conta Rosely, porque acredita que vai vencer. O relato começa na delegacia, onde foi feito o primeiro boletim de ocorrência “Ela disse que foi muito mal tratada, chorou muito no atendimento, se sentiu ‘como um cachorro'”. Na segunda vez, tentou o boletim online, mas não aceitaram, então ela foi novamente à delegacia. “Lá, o delegado avisou que ele é que não tinha aceitado o boletim e que ela precisava fazer outro. E ela novamente foi tratada de qualquer jeito. Pediu que no boletim fosse caracterizado crime de homofobia, mas o atendente colocou ‘aquilo que quis’, ficando caracterizado apenas como conflito familiar”.

Maria Joana conta uma situação semelhante: foi agredida por um familiar por sua condição LGBTQIA+, mas na delegacia, o delegado não caracterizou na Lei Maria da Penha e não solicitou a medida protetiva. Mesmo com as fotos e o exame de corpo de delito, minimizou o relato de Maria Joana e registrou se tratar de conflito familiar.

“Nos dois casos, foi fundamental a orientação do Fordan, que as encaminhou ao Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública Estadual, onde foram atendidas como crime de homofobia”.

Para Maria Beatriz, a intervenção do Fordan conseguiu acelerar a obtenção da medida protetiva. Na delegacia, a informação era de que o documento demoraria cinco dias. “Mas o agressor ficava vigiando a casa dela, já cumpria condicional, descobrimos isso. Então acionamos nossa rede de apoio na primeira agressão e ela conseguiu a protetiva no dia seguinte”.

Maria do Socorro foi acompanhada por uma advogada do Fordan na delegacia, após o marido tentar esfaqueá-la pelas costas e os cinco filhos. “A delegada queria enviá-la para outra delegacia quando ela foi registrar o boletim de ocorrência, mas a advogada conseguiu intervir e ficaram ali mesmo. Depois, a delegada queria ouvi-la sozinha, a advogada argumentou e conseguiu ficar ao lado dela”, conta Rosely. A urgência de Maria do Socorro é pela liberação da pensão alimentícia. “Ela precisa sair de casa para se proteger da violência, mas como vai conseguir sobreviver, com as cinco crianças?” O Fordan tem condição de oferecer psicólogo, aulas de arte para as crianças, e uma equipe de saúde. “Mulher preta, pobre, da periferia, onde a miserabilidade é algo muito sério”, alerta a coordenadora.

Maria Clara esperou quase um mês pela medida protetiva. O boletim de ocorrência foi registrado em julho e só liberado 24 dias depois, em agosto. Período em que fez vários outros boletins, pois a violência do ex-marido continuava, nas redes sociais e presencialmente, seja no trabalho ou vigiando a residência dela a partir de uma pracinha próxima. A criança com menos de seis anos, filha do casal, também foi alvo de mais uma violência, de alienação parental. “Ele pegava a criança na creche, cometia violências contra a babá”.

Um agravante, destaca Rosely, é que 18 dias após o registro do boletim de ocorrência, Maria Clara foi encaminhada para um centro de apoio multidisciplinar, onde foi submetida a uma “análise psicológica para saber se estava equilibrada ou se a violência doméstica não era apenas um conflito dela com o ex-marido”. O laudo psicológico orientou pela liberação da medida protetiva, o que levou ainda seis dias.

“Quando esses órgãos não dão a medida protetiva, quando não tipificam dentro da Lei Maria da Penha, quando não tipificam como crime de homofobia, quando não atendem a mulher na integralidade dela, estão aumentando o processo de vulnerabilização dessa mulher”, aponta Rosely, citando outro caso, acompanhado pelo Fordan e noticiado em Século Diário, da professora, mestre em Artes e pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Rosemery Casoli.

“A Justiça deu a ela mais um agressor além do ex-marido: o advogado e irmão dele. A OAB [Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Espírito Santo] disse que iria abrir um processo disciplinar contra o advogado, mas até hoje não temos essa posição. Não sabemos por quanto tempo vamos conseguir manter Rosemery em segurança”.

Rosemery agredida pelo advogado e irmão do ex-marido – mais um agressor que a Justiça lhe deu. Foto: Redes Sociais

Rosely destaca que essas mulheres denunciaram a violência de todas as formas possíveis: na delegacia, junto aos familiares e nas redes sociais, exatamente como é orientado que se faça. No entanto, a promessa não foi cumprida e a proteção não aconteceu. “O que faltou pra essas mulheres? Faltou que os órgãos entendessem que um direito fundamental lhes estava sendo negado, que é o direito à vida”.

Concordando com Carla Apolinário e os demais presentes no Simpósio, a coordenadora do Fordan expõe uma análise jurídica dos advogados do Fordan e afirma com veemência “a dificuldade desses órgãos de compreender a complexidade que envolve a violência sobre essas mulheres”.

Os crimes contra honra, problemas na separação de bens, casos de Direito de Família…”são todos aspectos de uma violência institucional, porque desintegra essas mulheres”, sublinha. “Como não há trocas de informações entre os órgãos [delegacia, Tribuna, Ministério Público] e entre as Varas da Justiça, elas vão se sentindo mais vulneráveis. Às vezes a violência doméstica vai aparecer na disputa patrimonial, na disputa pela guarda dos filhos”, explica.

A exceção, no Espírito Santo, tem sido a Defensoria Pública, constata Rosely. “É um órgão que passa por sérias limitações orçamentárias, mas é quem atende a mulher preta, pobre, LGBTQIA+. É quem oportuniza a essas mulheres ter um advogado sem pagar. A Defensoria é quem tem estado junto conosco, feito os encaminhamentos. É com a Defensoria que a gente tem conseguido salvar as vidas dessas mulheres”, afirma.

Nas periferias das cidades, em especial, é preciso haver essa “integralidade” da análise e das ações dos diversos órgãos. “É gritante! Tem que liberar a medida protetiva imediatamente, a pensão alimentícia, para que essa mulher não tenha dificuldade de se manter longe do agressor”, reivindica.

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