Quinta, 25 Abril 2024

'Como fazer a locomotiva do mundo seguir sem passar por cima dos seres vivos?'

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A menos de um mês de completar sete anos, o crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce é tema de mais uma produção audiovisual brasileira: o longa "Lavra" – documentário híbrido, onde uma personagem ficcional interage com personagens e situações reais. 

O filme mostra a jornada da geógrafa Camila, emigrante de Governador Valadares, interpretada por Camila Mota, atriz do Teatro Oficina. Na trama, ela retorna dos Estados Unidos para sua terra natal, quando o Rio Doce foi contaminado pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais.

Camila então segue o caminho da lama tóxica que varreu povoados do mapa e matou 19 pessoas, deparando-se com paisagens, comunidades e pessoas devastadas: Governador Valadares, Baguari, Território Krenak, Ouro Preto, Itabira, Paracatu de Baixo, Bento Rodrigues...e também visita Serro e Conceição do Mato Dentro, hoje no centro da atuação predatória de outra mineradora. 

Nesse percurso, outra barragem da Vale se rompe, em Brumadinho, também em Minas, matando cerca de 300 pessoas. Nesse momento, "ao ver a tragédia de perto, ela sente-se pela primeira vez atingida e se envolve com movimentos de resistência", destaca Lucas Bambozzi, diretor do filme.
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Ele conversou com Século Diário, na expectativa de confirmar uma agenda de lançamento da obra em território capixaba. A primeira exibição já confirmada será na segunda edição do DOC Regência, que acontece de 18 a 20 de novembro, na vila de Regência, localizada na foz do Rio Doce, em Linhares, onde a lama de rejeitos chegou quinze dias depois de romper a barragem em Mariana. 

A mostra de cinema, não competitiva, marca essa data fatídica, mas também inclui produções sobre outro crime provocado pela Vale, em Brumadinho, em janeiro de 2019. As inscrições estão abertas na internet, para quem quiser exibir suas produções, até o dia 30 de outubro. 

Além de Regência, Lucas conta que também está sendo viabilizada uma estreia em Vitória, ainda sem data confirmada. O filme tem 1'41 de duração. A produção é da Trem Chic Cine Video Lab, produtora que tem como um dos sócios o videoartista Eder Santos, e o roteiro, de Christiane Tassis. 

O filme teve sua World Premiere em 17 de novembro de 2021, no prestigiado IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdã), considerado o maior festival no gênero. Selecionado entre os 985 filmes inscritos para o Festival de Brasília, participou da Mostra Competitiva, nos dias 8 e 9 de dezembro, sendo premiado na Categoria "Melhor Som" e "Fotografia".

Foi exibido no One World Festival, na República Tcheca, dedicado a direitos humanos, na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes, no disputado Hotdocs de Toronto, no 26º Festival de Cine de Lima, e segue sendo convidado para importantes festivais pelo mundo. Na 11ª Mostra Ecofalante, em 2022, recebeu o prêmio de melhor longa-metragem pelo público, atestando o impacto que vem causando nas pessoas.

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A seguir, um pouco da conversa com o diretor, Lucas Bambozzi:

Século Diário: Vou começar pelo final, destacando algumas frases do encerramento do filme: "Como podemos nos aliar para resistir a tanta devastação?"; "Como fazer a locomotiva, a máquina do mundo, seguir sem passar por cima dos seres vivos?"; "O povo constrói, a Vale destrói!". São frases que convocam o telespectador a se unir aos movimentos da sociedade civil em defesa dos direitos dos atingidos pelo crime da Samarco/Vale-BHP contra o Rio Doce e de outras tragédias cotidianas da mineração, que desenham uma "geografia da danação". Que tipo de ação você gostaria que o filme suscitasse entre os que o assistem?

Lucas Bambozzi: Essa pergunta faz parte da estrutura do filme. Quando ocorreu o desastre, a tragédia, a gente se perguntou: fazer o quê? Há vinte anos faço trabalhos em contextos de conflitos, buscando diálogo sobre o que não é muito explícito. Mas não é sempre que a gente pensa em fazer um filme. Muitas vezes é um pequeno vídeo, uma instalação, algum trabalho na web, mais imediato. Então por que fazer um filme? Em 2015/2016, o audiovisual estava com um público em ascensão, se tornando uma mídia não de massa, mas bastante privilegiada, com bastante capilarização, tanto em salas maiores quanto em pequenas e em festivais. Mas, especialmente, é porque é uma obra que anda sozinha, o diretor não precisa estar junto, como numa instalação, que eu preciso ir lá montar. A ideia então de fazer um filme era essa, de que induzisse a discussões e tomadas de consciência e, daí, para a ação. 

A história é uma narrativa que transita entre a ficção e o documentário e entre outros gêneros também, roadmovie, arte, porque tem uma camada mais plástica e experimental, que não é ficção nem documentário (e eu não acho que ficção e documentário são antagônicos). Mas tem uma estrutura narrativa que ele chama para uma ação, pega pela mão. A personagem vai entendendo as questões envolvidas e vai se transformando em função disso. E essa transformação, quando se passa com qualquer indivíduo, é muito potente. Não é um panfleto, uma indução: 'tem que fazer isso'. Muitas vezes isso funciona quase como um choque, mas acho que funciona melhor quando a pessoa vai se dando conta, vai se indignando, entendendo as forças envolvidas, e pode se tornar uma força de luta, de replicação dessa luta, uma forma de replicar, de multiplicar essa luta. 

Esse inimigo contra quem não é claro na vida contemporânea. A mineração não vai acabar, cada vez mais os equipamentos as tecnologias são dependentes de minérios, muitas vezes minérios raros, que nem levem a destruição de montanhas inteiras, mas a disputas de poder, a interferências políticas, a ações de poder do capital e nações inteiras a fazerem atrocidades.

Esse inimigo no filme é colocado dessa forma, não é colocado como uma coisa clara. Há uma consciência de que por trás da mineradora tem o consumo, o modo, estilo de vida contemporâneo, o capitalismo. É difícil hoje dizer se somos contra o capitalismo. Dá para ponderar quais aspectos do capitalismo são mais nocivos e precisam mudar ou que essa forma de mineração tem destruído comunidades inteiras e precisa ser repensada.

O filme acaba retratando movimentos sociais de apoio a comunidades e atingidos. Esses movimentos sociais, muitos deles, não são antidesenvolvimentistas, não querem acabar com a mineração. É uma narrativa que os defensores da mineração dizem que não é possível, então temos que acabar com eles, os movimentos sociais. Mas os movimentos têm uma ponderação, entendem que o que tem que ser revisto é o modo de mineração, não só na extração, mas na manutenção e reparação do dano causado.

E onde, também, a gente retrata no filme Conceição do Mato Dentro e Serro, que não estão na lógica do Quadrilátero Ferrífero, que nos tempos de estudos na ditadura, era a pujança de Minas e desenvolvimento do país. É uma região de ecoturismo muito sustentável. Era muito sustentável. Muito potente, com cachoeiras das mais incríveis do país. A Anglo América, parte canadense e parte australiana, instala um mineroduto que leva o minério diretamente para o Espírito Santo, mas sequestrando um rio! Como a União permite que um rio que é útil para inúmeras comunidades e cidades, seja usado por uma única companhia? Dizem que está sendo feito um represamento para que o fluxo de água não deteriore, mas a gente sabe que a fiscalização é frouxa, que quem fornece os dados sobre esse mecanismo é ela mesmo, quem dá o atestado que está tudo bem. A gente sabe que o atestado da Vale em Brumadinho foi comprado. Então a postura irresponsável e corrupta continua. Tanto estadual quanto da União.

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No Espírito Santo, a tragédia prosseguiu pelo leito do rio, contaminando a Foz e o mar. A contaminação persiste e não há segurança no consumo do pescado, conforme concluiu a Aecom. Somos o Estado da moqueca. Que tipo de reparação/indenização pode ser possível imaginar para uma perda física e simbólica dessa magnitude?

O Espírito Santo se mantém nessa rota da lama. Até Abrolhos. Essa limpeza das calhas do Rio Doce, o assoreamento que era um comprometimento da Samarco, não aconteceu. O que existe é uma espécie de 'deixa que a natureza se restaure', o que não é verdade. Muito tempo, muitas vidas. Eles se valem da ignorância da situação. Esse aspecto no filme está colocado a partir de uma personagem, a Joelma, agricultora familiar, que plantava numa ilha e vendia produtos orgânicos, e a vida dela ficou de cabeça para baixo. Ela continuou tentando plantar depois de dois anos, mas tem que retirar o rejeito para encontrar uma terra ainda fértil embaixo. São crostas de trinta centímetros de rejeito. Ela vem fazendo o que o poder público não fez, o que a Samarco não fez, que é esse restauro do ambiente. É muito crítico isso.

A solastalgia é uma síndrome ligada a grandes catástrofes, em que a pessoa não reconhece o ambiente. Ela olha pro rio e se sente mal. Ela vê o rio, mas ele está tão diferente, que produz uma angústia profunda. Ou como Drumond vendo o Pico do Cauê, que virou uma cava. Se Itabira é caracterizada por esse pico e ele não existe mais, o que é isso agora? É a falta da paisagem. A paisagem e o ambiente se transformam de maneira tão violenta, que levam a um não reconhecimento. A solastalgia está ligada também a própria Camila, a atriz teve que sair de uma vila que ela morou por trinta anos, por especulação imobiliária, viu mudar tudo, não tem mais a vila nem o modo de vida dela.
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Um momento importante do filme, que consta também no trailer, é quando Ailton Krenak diz que "o sonho é a nossa rota de invenção de outros mundos para além desse que nós estamos vendo desaparecer". Como essa posição dialoga com a ação que você espera acontecer mediante a denúncia e conclame feito pelo filme?

Uma das definições prévias, é que o filme não seria um documentário com falas de especialistas. O Ailton até se tornou especialista em meio ambiente, mas ele não está ali por isso. É um personagem que parte de Valadares, uma das pessoas que moravam na cidade e foram para os Estados Unidos, em busca do sonho americano. Ele troca o sonho americano por um outro tipo de sonho, mais voltado para um senso de pertencimento. Um valadarense nos EUA é um pária, sofre preconceito, fica guetizado. Não é um sonho dele, a pessoa embarcou por uma sedução. O Ailton está ali porque está em Resplendor, próximo a Valadares, é tão atingido quanto a Joelma agricultura familiar que está ali. O Rio Doce passa dentro do território Krenak, carregado de minério todos os dias na porta da casa dele, ele não escapa do barulho do capitalismo associado ao trem, dessa industrialização meio torta, decadente, feita sem revisão histórica. Ele está ali como alguém que de alguma forma comenta o caminho que a personagem está seguindo. Nos últimos quatro anos, se tornou uma pessoa muito importante. 

Uma perspectiva de vida, uma possibilidade de continuar acreditando em algo, colocar a vida em movimento a favor da vida e não da morte. Não se deixar neutralizar pela falta de perspectiva. Quando alguém conta para ele que o sonho acabou, ele acha um absurdo, porque o sonho da pessoa acabou, o dele não. Porque sonhar e viver é a mesma coisa. E não à toa, o pensamento do Ailton se encontrou com o neurologista Sidarta Ribeiro. A ideia de sonhar e viver não é dissociada. Escuto isso desde a faculdade, li o livro de Luis Buñuel, Meu Último Suspiro, em que ele alerta o leitor de que o que vai contar ali talvez não tenha acontecido, porque está com a memória ruim, velho, com mais de 80 anos, então é para o leitor considerar que o que está contando tem o mesmo estatuto do que aconteceu, dos fatos, mas que para fins da literatura e do que ele quer dizer, não faz diferença.

A fala do Ailton ecoa com o filme com a necessidade de manter o sonho vivo, como um motor interno de crença na vida.

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