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Comunidade empreende primeira retomada quilombola em São Mateus

Suzano replantou eucaliptais dentro de áreas certificadas da comunidade. Moradores substituem por alimentos

Divulgação

A comunidade de Nova Vista, em São Mateus, norte do Estado, empreende a primeira retomada quilombola do município, numa área certificada pela Fundação Cultural Palmares e em processo de titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e que há muito é reivindicada para recuo dos monocultivos de eucalipto da Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), inclusive como ponto central das negociações tratadas na Mesa de Resolução de Conflitos Fundiários, coordenada pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH).

Seguindo os passos de retomadas já realizadas no município vizinho de Conceição da Barra desde 2017, o objetivo é abrir espaço para plantios de alimentos dos moradores, que sofrem há décadas com os impactos do deserto verde da multinacional dentro de seu território, além da perseguição e violências que as sucessivas empresas de segurança patrimonial impõem a cerca de 40 comunidades que integram o Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, que se estende também por Conceição da Barra.

“Aqui nós temos um problema seríssimo, muito gravíssimo com essa empresa. Nós aqui não temos córrego, secou tudo. Jogam veneno por drone, mata nossas criação, cachorro morre, galinha, pato, ganso, abelha. A gente não pode ir de uma comunidade para outra, que segurança aborda a gente. Eles colocaram gelo baiano, cerca de viva nas estradas, para a gente não ter acesso aos terrenos. Não pode pegar um galho de pau pra cozinhar no fogão a lenha. É dramático, essa empresa é um problema na nossa vida, da nossa comunidade”, relata Nilson Firmes Barcelos, da Associação Quilombola Nova Vista.

A decisão de fazer a retomada se deu em reunião da Comissão Quilombola do Sapê do Norte no dia 7 de outubro, onde as famílias avaliaram a impossibilidade de aceitar a proposta de recuo dos eucaliptais apresentada pela Suzano dias antes. “Ela quer ceder 130 hectares para a comunidade, mas isso não atende às necessidades”, afirma Nilson. Em outros 390 hectares, complementa, a proposta é que recebam novo plantio de eucaliptos, e que, em troca, a Suzano pagaria o equivalente a R$ 405 mil por ano em “benefícios”.

Além disso, o eucaliptal ficaria sob responsabilidade da comunidade. Ela quer que a gente seja responsável, se alguém colocar fogo ou furtar, a responsabilidade é nossa”, destaca Nilson.

A proposta mínima da comunidade, afirma, é que os 520 hectares sejam entregues sem novos plantios de eucaliptos, para que os moradores possam recuperar o solo e as nascentes, com plantio de nativas, frutíferas e lavouras. “Mas ainda assim é um problema para encaixar todo mundo, talvez a gente precise de mais”, avalia.

Divulgação

As ações em campo pela retomada se iniciaram nesse sábado (14). “O ‘galerão’ está animado, graça s Deus. Jesus Cristo está abrindo essa porta, todo mundo disposto a trabalhar, a voltar a ter água, a ter as nascentes novamente. Eu penso nos meus filhos, nos meus netos, nos netos de outros companheiros também. Penso neles amanhã”, celebra Nilson.

Em mutirão, os moradores iniciaram plantios de mudas de coqueiros e instalação de placas de identificação da comunidade Nova Vista e de duas legislações que respaldam a luta pela regularização dos territórios quilombolas.

A primeira é o Decreto nº 4887/2003, que regulamenta o processo de titulação em âmbito federal e que teve sua constitucionalidade confirmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018. Outra é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estabelece a consulta livre, prévia e informada a todos os povos e comunidades tradicionais, mediante qualquer obra ou empreendimento que possa impactar seus territórios. Os protocolos de consultas das comunidades quilombolas do Sapê do Norte estão em vias de finalização, uma ferramenta importante para forçar o cumprimento desse direito pela Suzano e outras empresas e mesmo órgãos de governo que usurpam o território sem qualquer diálogo com as comunidades.

Reprodução

Segurança patrimonial

Nilson conta que parte dos plantios feitos nesse primeiro dia foram arrancados ou cortados por facão à noite, mas foram replantados no domingo (15). “Até agora não cortaram de novo”, relata, na noite dessa segunda-feira (16). Os responsáveis pelo vandalismo? Não é possível saber, afirma. Um registro, no entanto, que é preciso ser feito, é a presença constante da atual empresa de segurança patrimonial que presta serviço para a Suzano, o Grupo Souza Lima.

Nas redes sociais, membros da retomada postaram um vídeo onde alguns seguranças da empresa abordaram os quilombolas durante o plantio, numa ação que afirmaram ser parte de seu serviço de patrulhamento. “Eles estão seguindo a gente o tempo todo”, afirma Nilson, referindo-se a uma rotina que vem de bem antes da retomada.

“Eles afrontam a gente, ameaçam. Eu trouxe a EDP esses dias para fazer um serviço, extensão de rede na comunidade Nossa Senhora da Penha, onde minha prima reside, e o segurança ameaçou o técnico, disse que se ele não saísse da área, faria uma besteira. Tem muita gente aqui que abandonou as terras por causa dessas coisas”, relata.

João do Angelim, liderança da comunidade de Angelim 1, em Conceição da Barra, faz coro ao companheiro. “A empresa do grupo Souza Lima sempre aparece. Eles têm câmera de segurança dentro das comunidades. Sobrevoam o território direto, aplicam veneno no eucalipto”, elenca.

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A retomada, afirma João, é uma das estratégias de luta mais efetivas com que as comunidades contam. “A legitimidade dos territórios é das comunidades. As retomadas são uma forma de pressionar a agilidade do governo federal, do Incra, da Fundação Palmares. É também uma ofensiva contra a Suzano Papel e Celulose, que continua plantando eucaliptos transgênicos no território, continua contaminando água, negando direitos, pressionando. A forma como abordam as pessoas, com cachorros presos em caixas, que causam terror nas comunidades, é muito difícil lidar. A Suzano tenta cooptar nossas lideranças, investir dinheiro nas comunidades para frear o povo, mas a gente está numa condição de pobreza. A gente quer plantar e não tem água, as nascentes estão todas secas, só tem três córregos, muito longes um do outro”.

Nilson reforça: “Nós não temos uma gota d’água nesses córregos. Agora, se a gente pedir um carro-pipa pra Suzano, eles não dão. Nós estamos montando essa retomada porque é direito nosso, nós fomos roubados! Como que eu roubo uma moto de alguém que me roubou e eu é que sou preso? É o que acontece aqui. A Suzano tirou nossa terra e a gente vive essa ditadura dela a vida toda. A revolta que eu tenho, que está no meu coração, é como se eu tivesse um padrasto que me bateu demais quando eu era criança e até hoje eu tenho essa mágoa”, lamenta.

Ação Civil Pública

Sobre o próprio pai, Nilson conta que ele foi expulso de sua terra no final da década de 1950. “Eu tinha uns sete anos. Ela [Aracruz Celulose] falou que se ele não saísse da terra, ia passar com corrente em cima da casa, do pomar, de tudo. Hoje tem terra ao lado de nós em nome de uma pessoa que trabalhou na empresa na época, só que ela nunca possuiu terra aqui, todo mundo sabe. A empresa usava funcionário dela pra colocar terra em nome dela”, descreve.

Ao sair, seu pai recebeu “uma gratificação” e algumas promessas. “Prometiam que a pessoa com aquele dinheiro depositado na Caixa Econômica, ia comer o resto da vida e ter emprego para os filhos e netos. Pessoal foi pra São Mateus, passou um sufoco, não tinha água, era um chafariz só na rua. Meu pai pediu a terra ao Damaceno Pinha e ele trouxe nós de volta pra roça, num pedacinho de lote. Até hoje nós vive nesse pedaço. O que eu adquiri depois é de um hectare, mas meu pai e minha mãe viveram dentro de um lote, morreram com essa mágoa no coração”.

A história da família de Nilson é a de muitos quilombolas e foi tema da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Aracruz Celulose, realizada pela Assembleia Legislativa em 2002 e que investigou os processos irregulares de obtenção de terras pela empresa. O esquema incluía “laranjas”, a maioria seus próprios funcionários, e muita violência contra famílias quilombolas, prática muito comum também contra indígenas, durante a Ditadura Militar, conforme demonstrou a reportagem Aracruz Celulose teria usado prisões arbitrárias para obter terras indígenas na ditadura, publicada pela Agência Pública, como parte da série especial “Empresas cúmplices da ditadura”.

A investigação serviu de base para a abertura de uma ação civil pública pelo Ministério Público Federal (MPF) em 2013, em que é pedida a anulação das matrículas de imóveis registrados em nome da então Fibria, a suspensão de financiamentos à empresa para negócios em São Mateus e Conceição da Barra, por parte do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além da indisponibilidade dessas matrículas por parte dos cartórios de registro de imóveis da região e do pagamento de uma multa de R$ 1 milhão pela Suzano às comunidades.

A primeira decisão judicial foi favorável às comunidades, assinada pelo juiz Nivaldo Luiz Dias. O caso subiu para a segunda instância, estando sob análise dos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), sob o número 0000693-61.2013.4.02.5003.

Acompanhamento

A retomada de Nova Vista é feita com apoio da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e já foi comunicada ao Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH). Os demais órgãos legalmente responsáveis pela proteção dos territórios quilombolas – como SEDH, MPF e Defensorias Públicas da União e do Estado (DPU e DPES) – também o serão, por meio de relatório em elaboração.

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