Domingo, 28 Abril 2024

'Empresas e Estado têm que respeitar as comunidades, as casas, os corpos'

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Divulgação/Fase ES

Uma leitura possível da crise climática em curso é entender que o modelo de desenvolvimento baseado na Revolução Industrial de 150 anos atrás é biocida e precisa urgentemente de uma revisão profunda de seus paradigmas. Nesse debate mundial, os povos tradicionais se erguem, a cada edição anual da Conferência das Partes (COP) – órgão máximo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima – como referências incontestes para apontar o caminho que possa tirar a sociedade da rota atual e evitar que o aquecimento do planeta ultrapasse a marca de 1,5ºC.

São nos territórios dos povos indígenas, por exemplo, juntamente às áreas protegidas por unidades de conservação de proteção integral, que as florestas estão mais protegidas no Brasil, país estratégico no tabuleiro climático global. A essência da eficiência e eficácia dos povos originários em salvaguardar o clima, a biodiversidade e a vida de modo geral, está, fundamentalmente, em suas cosmovisões, que se materializam em organizações sociais e práticas culturais que garantem uma convivência com a floresta que não se tem notícias de ter existido nos países do hemisfério norte.

Mas, apesar de todas as evidências – basta ir aos territórios para ver – e estudos que traduzem essa realidade em dados e teses científicas, os direitos constitucionais e originários dos povos e comunidades tradicionais, aí incluídos quilombolas, camponeses, pescadores artesanais, para citar os mais presentes no Espírito Santo, continuam sendo diuturnamente negados pelos governos, que insistem em pavimentar a rota dos grandes projetos industriais, insustentáveis por natureza e que correm em ritmo acelerado em direção ao precipício climático.

A realidade do Estado é exemplar para entender essa contradição civilizatória. E o projeto de mineração do sal-gema no norte capixaba, que tomou força há quatro anos, logo após o início da tragédia em Maceió, desponta como possivelmente mais um capítulo dessa série histórica. Os argumentos a favor da exploração, conforme o "embaixador capixaba do sal-gema", o secretário estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Felipe Rigoni (União), circulam basicamente em torno das promessas de técnicas mais avançadas do que as empregadas no Nordeste, e da profundidade maior das jazidas capixabas.

'Natureza não é matemática'

Se tais características garantem de fato que tragédia semelhante à de Alagoas se repita aqui, é uma pergunta que somente estudos geológicos rigorosos podem responder. Nesse sentido, a doutora em Geologia e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Luiza Bricalli , explica que antes da extração de sal-gema de uma região, deve ser realizado um diagnóstico geológico da área, caracterizando três aspectos: "características geotécnicas do material (permeabilidade, densidade, resistência, compressibilidade e a expansibilidade); presença de cavidades na região (natural ou antrópico); e feições estruturais na região (falhas e fraturas)". Em seguida, prossegue, "deve-se utilizar tecnologias modernas para extração do sal-gema".

Segundo a especialista, "a natureza não é matemática" e, "quando se trata de processos de subsidências [afundamento de solo] e instabilidades de terrenos, pode-se apontar áreas susceptíveis a esses acontecimentos, ficando difícil afirmar 'se' e 'quando' exatamente irá ocorrer, seja essa área afetada por fatores naturais e/ou antrópicos". Ela ressalta ainda que "no caso específico da extração de sal-gema, mesmo utilizando as mais modernas tecnologias, deve-se adotar alguns procedimentos técnicos essenciais: estudo prévio de falhas geológicas ativas na área; análise e monitoramento do material antes, durante e após a extração; monitoramento da cavidade aberta e verificação do correto 'preenchimento' da cavidade; monitoramento geofísico (abalos sísmicos) no local".

Manguezal e restinga

Obviamente que, pelo fato de não haver um adensamento populacional como o da capital alagoana, permite pensar que, havendo afundamento de solo no norte do Estado, após um período de 40 anos – ou mais ou menos –, não serão desalojadas e atingidas tantas dezenas de milhares de pessoas – fala-se em cerca de 60 mil, em cinco bairros –, mas e os impactos no solo, nas águas, na biodiversidade da área explorada? Quem pagará essa conta?

As 11 áreas leiloadas pela Agência Nacional de Mineração (ANM) em 2021, estão localizadas dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra. A unidade de conservação foi criada em 1998, com 7,7 mil hectares e protege "extensa faixa de restinga em bom estado de conservação, 12 km de praias desertas, além de um vasto manguezal associado à foz do rio São Mateus, um dos principais motivos de sua criação", conforme explica o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema).

"A unidade é caracterizada pela presença de comunidades tradicionais e suas incríveis manifestações culturais, seja através das festividades, ofícios artesanais ou da culinária. Entre as espécies da fauna ameaçadas de extinção já registradas na área, podemos citar a onça-parda, o gato-do-mato e o ouriço-preto", prossegue a autarquia, descrevendo ainda detalhes dos ecossistemas e diversidade cultural protegidos.

O zoneamento da APA permite áreas de mineração, desde que devidamente autorizadas. O que se sabe, por enquanto, é que as empresas vencedoras do leilão estão em fase de pesquisa em oito das 11 áreas leiloadas. Três delas foram retiradas desse processo, por recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a pedido das comunidades quilombolas onde as áreas estão localizadas.

Valendo-se da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário há mais de 15 anos, as comunidades quilombolas afirmam que não querem mineração de sal-gema em seu território e o modelo de desenvolvimento ecocida que arrasa o planeta há um século e meio. Em alto e bom tom, apontam que querem recuperar suas florestas e águas, destruídas por mais de 50 anos de monocultivos de eucalipto da Suzano Papel e Celulose (ex-Aracruz Celulose e ex-Fibria) e cana-de-açúcar e quase igual período de exploração petrolífera.

Também querem seu território devidamente demarcado e titulado, conforme aguardam as dúzias de processos que ficaram paralisados por mais de uma década no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – já que
a vitória no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a ação que alegava inconstitucionalidade no Decreto federal nº 4887/2003, que regulamenta a titulação dos territórios quilombolas ocorreu no Brasil pós-impeachment de 2018 – e só em 2023, voltam lentamente a caminhar. Querem expressar sua cosmovisão, materializando em seu território, suas práticas ancestralmente modernas – parafraseando o pensador indígena e novo imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Ailton Krenak - de convívio social e usufruto dos bens naturais (que é bem diferente de exploração de recursos naturais).

Caso encerrado?

"Estamos pensando no bem viver do nosso território Sapê do Norte", resume a educadora quilombola Olindina Cirilo Nascimento Serafim, integrante da Comissão Quilombola do Sapê do Norte. A organização, conta, elabora uma manifestação oficial na qual reafirmará sua posição contrária ao sal-gema. "Vamos providenciar um documento, solicitando que não haja leilão dos blocos do sal-gema nas comunidades do Sapê do Norte, que já foram mapeadas e têm processos abertos pelo Incra".

Para o MPF, o caso é considerado encerrado e o procedimento aberto em 2021 foi arquivado, conforme consta na Promoção de Arquivamento – Inquérito Civil nº 1.17.003.000138/2021-69 e PR-ES-00014262/2023 – assinada em maio passado pela procuradora da República Elisandra de Oliveira Olímpio, a que Século Diário teve acesso.

No documento, o órgão ministerial relata que "o presente procedimento foi instaurado a partir de matérias jornalísticas publicadas em setembro de 2021 pelo jornal eletrônico Século Diário, com relatos sobre o leilão para permissão de pesquisa e concessão de lavra das jazidas de sal-gema no município de Conceição da Barra, ao mesmo tempo em que as Comunidades Quilombolas cujos territórios se sobrepõem às áreas de exploração concedidas não teriam sido consultadas a respeito da possível exploração mineral".

Segundo o documento, a retiradas das áreas em territórios quilombolas ocorreu em atendimento à Recomendação nº 1/2021, enviada em outubro de 2021 à ANM, suspendendo os trâmites do leilão nessas áreas, "bem como de todo e qualquer processo envolvendo procedimentos de disponibilidade de áreas para exploração de sal-gema, que possuam sobreposição com posse de comunidade quilombola ou com territórios quilombolas em processo de demarcação no norte do Espírito Santo; e (b) realize atos para apresentação de consulta prévia, livre e informada aos afetados membros de comunidade quilombola, conforme prevê a Convenção 169 da OIT".

O MPF relata ainda que, após o atendimento à Recomendação, "a empresa Pedras do Brasil Comércio Importação e Exportação Ltda, na condição de vencedora do leilão e interessada na pesquisa e exploração das áreas, apresentou manifestação, solicitando fosse homologada a proposta vencedora". Em resposta, "o MPF esclareceu que não houve manifestação pela existência de impeditivo legal absoluto para a exploração das áreas. Recomendou-se, tão-somente nessa fase inicial, que fosse observada a necessidade de consulta prévia a comunidades tradicionais da área antes de qualquer autorização de atividades no local, conforme prevê a Convenção 169 da OIT e segundo precedente claro da Corte Interamericana de Direitos Humanos".

Em agosto de 2022, "José Augusto Castelo Branco, vencedor do leilão em relação a uma das áreas suspensas em razão da Recomendação do MPF apresentou manifestação", reiterada em dezembro do mesmo ano. "Em ambas as oportunidades, o requerente sustentou que o entendimento do MPF não estaria correto e, em outras palavras, pediu fossem retirados os termos da recomendação ministerial". A resposta do MPF foi assertiva: "o MPF mantém-se firme na tese de que a atividade de mineração em território de comunidades de remanescentes de quilombos demanda observância da Convenção 169 da OIT, com necessidade de criação de mecanismos de consulta livre, prévia e informada dos quilombolas".

Em novembro do mesmo ano, o MPF realizou ainda uma reunião com representantes da ANM, quando obteve, "mais uma vez, a informação de que as área suspensas em razão da recomendação ministerial foram definitivamente retiradas do Edital. Acrescentou-se que a Agência estudava a adoção de Protocolo para viabilizar a consulta livre, prévia e informada com as comunidades tradicionais em áreas a serem à mineração".

Com base nesses fatos, o MPF entendeu que "a irregularidade inicialmente constata foi corrigida com a acatamento da Recomendação do MPF pela ANM. As áreas oferecidas no município de Conceição da Barra/ES para pesquisa e exploração de sal gema que continham, em seu interior, parcela de território quilombola foram retiradas do leilão. Tais áreas somente serão novamente oferecidas quando definido o protocolo que atenda à Convenção 169 da OIT. A questão, portanto, foi solucionada".

Respeito

A respeito do protocolo de consulta nos moldes da OIT 169, o coordenador da ONG Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional no Espírito Santo (Fase/ES), Marcelo Calazans, afirma a importância do documento, tanto que a entidade – ao lado de defensores públicos, movimentos de direitos humanos, professores e assessorias de organizações da sociedade civil – auxilia as comunidades do Sapê do Norte a construírem seus protocolos, a exemplo do trabalho já feito com outras comunidades quilombolas e indígenas em outros estados onde a ONG atua. Mas, ressalta: "a priori, não é necessário existir um protocolo de consulta formal, escrito, impresso, para que as comunidades sejam consultadas, conforme a Convenção 169 da OIT, da qual o Brasil é signatário".

Com base na Convenção, reforça, "o Estado e as empresas que nele se instalam e operam, têm a obrigação e o dever de consultar as comunidades, e não de qualquer forma. A consulta tem de ser prévia, no tempo necessário para a decisão comunitária; informada, com detalhamento dos riscos e danos e em linguagem acessível à comunidade; livre, com direito ao não consentimento. Então, uma audiência pública do Iema [Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos] ou do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], uma audiência de aprovação de EIA/Rima [Estudo e Relatório de Impacto Ambiental], ou uma mesa de resolução de conflitos não configuram e nem substituem o que se entende por Consulta na Convenção 169".

O passado de usurpação de seu território é um dos motivos do empenho na construção dos protocolos. "A experiência histórica recente, (do final dos anos 60 e início dos 70), da chegada das empresas nos territórios quilombolas do Sapê do Norte é das mais trágicas. Assim testemunham as dezenas de anciões e anciãs quilombolas, como também indígenas, pescadoras e campesinas. Foi tudo na base da violência, da ameaça, os correntões derrubando a Mata Atlântica, as milícias intimidando as famílias, a grilagem de terras por laranjas da empresa, tudo com o apoio direto do Estado ditatorial. Difícil na época saber onde terminava o Estado e onde começava a empresa. Muitos de seus tecnocratas e diretores foram também gestores e administradores do Estado, a começar pelo próprio governador Gerhardt (1971-1974), um dos principais responsáveis. O relatório final da pesquisa da Unifesp/UFF/MPF, sobre os crimes da Aracruz Celulose na ditadura militar demonstra e documenta muitos desses crimes da chegada", relata Marcelo.

A expectativa é concluir os trabalhos no primeiro semestre de 2024, uma demonstração da vitalidade e vanguardismo do povo quilombola na defesa de seu território e de uma cosmovisão que pode inspirar soluções para além de suas fronteiras. "Por todo Sapê do Norte, embora brutal a violência, as comunidades quilombolas fortalecem a resistência. As empresas e o Estado têm de aprender o 'beabá' da consulta. Não foram educados a respeitar as comunidades, as casas, os corpos. Terão de aprender com Dona Ivone Lara, 'a pisar nesse chão devagarinho", poetiza.

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