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Espírito Santo: um porto a cada 15 km de litoral?

Campanha Nem Um Poço a Mais denuncia que empreendimentos podem dizimar praias capixabas 

Nos últimos anos, nos gabinetes de governo e nas páginas de jornal, têm circulado diversos anúncios de novos projetos portuários no litoral do Espírito Santo. Segundo um levantamento feito pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase/ES) em 2019, além de 11 portos operando, seriam 10 novos licenciados ou em processo de licenciamento, e outros oito previstos. Se todos esses processos fossem adiante, o Espírito Santo teria em média um porto para cada menos de 15 km de litoral, com consequências socioambientais graves.

De lá pra cá, o número só cresce. Somente o Instituto Estadual de Meio-Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) possui, atualmente, 20 processos de licenciamento de portos em curso, sem falar nos que vêm sendo feitos a nível federal. Impulsionados pelo boom da extração de petróleo e gás no Espírito Santo e favorecidos pela Nova Lei dos Portos (12.815/2013), que estimula os investimentos privados no setor portuário, os anúncios ao mesmo tempo acendem um alerta e inspiram desconfiança.

“Eu realmente acredito que essa pseudo expansão ou anúncio de expansão da infraestrutura portuária no Espírito Santo atende exclusivamente aos interesses do capital improdutivo. Não tem nada a ver com qualquer lógica de desenvolvimento ou crescimento da economia capixaba”, analisa Arlindo Villaschi, professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e doutor em Economia pela University of London, na Inglaterra.

Para ele, é um grande equívoco que o governo do Estado e as lideranças políticas capixabas não se pronunciem contra essa expansão portuária, que não interessaria nem mesmo ao desenvolvimento do Espírito Santo.

“Do ponto de vista do crescimento econômico, têm efeito de curtíssimo prazo, quando são construídos. Depois geram muito pouco emprego. O efeito multiplicador por meio de tributos é muito pequeno, além de promover uma propaganda absolutamente falsa do papel disso no desenvolvimento e crescimento do Estado”, contesta, alegando que há um “oba-oba” das autoridades políticas e empresariais a nível municipal e estadual, como se esses projetos fossem redimir a economia capixaba ou gerar um novo ciclo de desenvolvimento.

Ao mesmo tempo em que alguns novos portos privados se preparam para a instalação, outros não saem do papel. É o caso do C-Port, porto de logística anunciado para ser instalado na turística Praia da Gamboa, em Itapemirim, sul do Estado, em que a empresa responsável desistiu do empreendimento para reforçar sua atuação no Rio de Janeiro. Agora, tenta vender o projeto para outros investidores.

O caso joga luzes ao possível caráter especulativo de alguns desses anúncios que vêm sendo feitos nos últimos anos. “Pode acontecer de empresas serem criadas e solicitarem licença ambiental sem ter condições financeiras de construir. Depois de conseguir a permissão, abrem capital da empresa, vendem na bolsa de valores. Nesse caso, o que se está vendendo é a licença ambiental, um comércio ‘legalizado’ de licenças”, diz o geógrafo Alessandro Chakal.

Os anúncios dos empreendimentos, aponta, também provocam especulação em torno dos terrenos que os rodeiam. As alterações legais em vistas a instalações portuárias abrem caminho para valorizar as áreas que pouco valiam financeiramente por serem antes protegidas, que podem ser liberadas para outros usos, mesmo que os portos prometidos não se realizem.

Vista aérea da região em que será construída o Porto Central em Presidente Kennedy, onde há riqueza de patrimônio histórico e natural. Foto: Luciano Cajaíba

Zonas sacrifício

Em plena pandemia do coronavírus, quando há maior dificuldade de articulação dos grupos sociais atingidos pelas propostas, os projetos caminham a pleno vapor para tentar se consolidar.

Um anúncio feito em junho passado é a confirmação de permissão federal para a instalação do porto da Imetame, grupo empresarial que iniciou no ramo da metalmecânica, mas expandiu para áreas como rochas ornamentais, energia e petróleo.

O local é Barra do Riacho, uma antiga vila de pescadores em Aracruz, norte do Estado, que talvez seja a melhor expressão no Espírito Santo do que alguns pensadores críticos e movimentos sociais vêm caracterizando como “zonas de sacrifício”. Elas são produzidas pelo capitalismo transnacional, em óbvia aliança com o Estado, quando vários empreendimentos se superpõem num mesmo território, gerando inúmeros impactos socioambientais.

Além do monocultivo de eucalipto e seu beneficiamento com a megaindústria da atual Suzano, surgida como Aracruz Celulose da década de 1960 e ex-Fibria, também há o impacto de empreendimentos petroleiros, metalmecânicos e portuários. No entorno está o Portocel, que exporta sobretudo celulose, o estaleiro Jurong, e os projetos portuários da Imetame e Nutripetro. Além da população de pescadores artesanais que vêm perdendo seu território e condições de reprodução da vida, os projetos também impactam o único território indígena do Espírito Santo, que alberga várias aldeias Tupinikim e Guarani.

Empresa Imetame prepara a instalação de mais um porto no entorno de Barra do Riacho, vila de pescadores sacrificada pelo desenvolvimento capitalista. Foto: Divulgação

A instalação do porto da Imetame também provocou manifestação contrária de surfistas que frequentam o local, já que o empreendimento inviabilizaria a prática do esporte em áreas de ondas privilegiadas. Até Filipe Toledo, o Filipinho, um dos mais destacados surfistas brasileiros, atualmente número 3 no ranking mundial, fez um vídeo sobre a questão (veja aqui).

Alessandro Chakal questiona que apesar dos anúncios de “progresso”, riqueza e oportunidades anunciados a cada novo empreendimento, não é bem esse o resultado apresentado após a consolidação destes. A maioria dos empregos divulgados se dá apenas no período de construção e obras, com uso de mão de obra barata e pouco qualificada, que nem sempre fica com a população local, já que centenas ou milhares de pessoas são atraídas pelas oportunidades de trabalho e se instalam na região, aumentando a necessidade de serviços públicos como moradia, educação, saúde, saneamento básico, transporte, assistência social, que ficam a cargo do município e do Estado em geral.

Os problemas sociais aparecem durante e depois da instalação dos projetos. Após alguns anos, com o fim das obras, os trabalhadores migrantes ficam desempregados. “Muitas vezes gera-se um caos social, cria-se uma favelização nestas regiões. Aumenta a violência, o tráfico, a prostituição e a exploração de menores. O prejuízo social incide sobretudo nas camadas mais pobres, sobre as mulheres negras de periferia. Isso não é colocado na ponta do lápis nem cobrado pelos órgãos de controle”, critica.

Porto ou paraíso?

Além do porto da Imetame em Aracruz, outro projeto que vem avançando é o porto Petrocity, na região de Urussuquara, em São Mateus, um paraíso litorâneo do norte capixaba, onde águas doces e salgadas se encontram, com rica biodiversidade.

Uma nota de repúdio publicada em 2020 pela Campanha Nem Um Poço a Mais e as dezenas de entidades que a compõem (leia aqui) criticou a assinatura de contratos que autorizam a instalação do Centro Portuário de São Mateus pela Petrocity Portos. “A autorização para instalar o Petrocity, divulgada na mídia regional, contraria o processo de licenciamento ambiental do órgão estadual (Iema), que já indeferiu duas vezes os Estudos e Relatórios de Impacto Ambientais (EIA/Rima) apresentados pela empresa”, diz a carta, apontando a tentativa de federalizar o licenciamento como estratégia para burlar as negativas a nível estadual.

Parte da praia onde será instalado o PetroCity, no litoral sul de São Mateus, no norte do Espírito Santo. Foto: Ricardo Sá

Entre os possíveis problemas apontados pela carta estão: remoção violenta de famílias que vivem no entorno do empreendimento; criação de áreas de exclusão da pesca artesanal, praias, mangues e restingas; destruição do pescado e mariscos e contaminação dos ecossistemas costeiros; excessiva demanda por água e energia; violência contra as mulheres, com a chegada de muitos homens de fora para a construção; raros e precários empregos para a população local; a farsa dos projetos de compensação, que sempre retardam e nunca compensam; pressão sobre os equipamentos de saúde e segurança nas cidades e vilas; e novas doenças que chegam com os que vêm de fora.

“Em tempos de pandemia e de colapso do clima do planeta, enquanto em todo o mundo se debate a diminuição da produção/consumo de petróleo e a necessária transição energética, Bolsonaro atropela o licenciamento, a democracia e a participação das comunidades e povos tradicionais. Tal como o presidente, o Petrocity é uma ameaça à saúde e à vida”, alerta a nota.

O crime socioambiental da Samarco, Vale e BHP que destruiu o Rio Doce, também atingiu o litoral de São Mateus e os manguezais da região próxima ao local de instalação do porto, deixando os moradores entre a cruz e a espada.

Adecy de Sena, líder comunitário e atualmente vereador do município, considera que tudo isso coloca a comunidade numa situação delicada. “Tínhamos muito caranguejo, peixe, muita fartura, fazíamos o Festival de Caranguejo. Naquela época, este empreendimento traria muito impacto. Mas hoje não temos mais nada, acabou tudo. Com o que vamos sobreviver? Precisamos nos pegar em alguma coisa. Até para solucionar a situação da nossa juventude. Para que eles estão estudando hoje? Quem vai usufruir do porto serão nossos filhos e nossos netos, porque vai ser a substituição do mangue que nós não temos mais hoje para sustentá-los”, diz, resignado, em declaração no documentário Campo Grande é meu cantinho, de Ricardo Sá.

O clima é de preocupação entre os moradores. “Eu tive a oportunidade de conhecer outras regiões que têm porto, e vi que são regiões que se desenvolveram de forma desgovernada. Vem o tráfico, a prostituição. Vem muita profissionalização dos jovens, muito emprego, mas também coisas ruins de fora. E o nosso ambiente eu não sei se ele está pronto. Tem que avaliar as condicionantes. Eu não sei se nosso meio ambiente vai sustentar toda esta gente que vem de fora”, diz Ademilson Campelo, preocupado com o real cumprimento das leis diante da instalação iminente.

Além destes, o projeto mais ambicioso no Espírito Santo é a construção do Porto Central em Presidente Kennedy, município de 10 mil habitantes no extremo sul do litoral capixaba, na divisa com o Rio de Janeiro, buscando atender principalmente às novas demandas pela extração de petróleo da camada pré-sal, em águas profundas, concentrado sobretudo no litoral destes estados. Somente para a etapa de construção, o projeto promete gerar cerca de 4 mil novos empregos na região.

O chamado “superporto” prevê a criação de um complexo industrial no modelo de condomínio portuário, onde vários investidores privados arrendam áreas para implantação de suas indústrias e terminais. A estimativa é de que a longo prazo o Porto Central possa receber até 4,5 mil navios por ano.

Sobre o tipo de empreendimento, Chakal cita exemplos de projetos similares a nível nacional como o Porto de Suape, em Cabo de Santo Agostinho (PE), e o Porto do Açu, em São João da Barra (RJ), que têm sido denunciados por gerar diversos problemas nos ecossistemas e comunidades em que se instalam, como denunciado em documentários como Território Suape e Narradores de Açu.

Além de afetar uma região que preserva o ecossistema natural de restinga, o Porto Central pretende se instalar nas proximidades de um patrimônio histórico importante: a Igreja Nossa Senhora das Neves, datada do século 17 e local de uma tradicional procissão anual que atrai cerca de 50 mil visitantes de vários lugares do Brasil.

Desenho do complexo portuário previsto para se instalar no município de Presidente Kennedy. Foto: Divulgação

 Impactos socioambientais

“Se depredaria toda riquíssima costa do Espírito Santo, rica em biodiversidade e vida marinha em nome de instalações portuárias que são absolutamente insustentáveis, porque atendem à lógica e exportação de recursos naturais não renováveis que, consequentemente, têm finitude”, alerta Arlindo Villaschi.

Se bem os empreendimentos extrativistas podem não durar mais do que algumas décadas, a destruição provocada pela instalação de portos pode ser irreversível. “Depois de seu tempo de vida, vai sobrar a carcaça de porto. Com a costa destruída e um oceano destruído, você tira qualquer possibilidade de uso para fins turísticos”, diz o professor.

O turismo, ressalta, se bem planejado, pode permitir uma economia muito mais sustentável, tanto do ponto de vista social e ambiental como em sua durabilidade ao longo do tempo. O rolo compressor do capitalismo segue, porém, tensionando os territórios.

Entre os setores mais atingidos pela construção de portos estão comunidades tradicionais, como os pescadores artesanais. “Vamos perdendo nossas áreas de pesca, porque quando implantam portos nos expulsam, não podemos nem nos aproximar do local. O setor pesqueiro tem perda do seu território e toda sociedade em geral perde acesso ao mar livre”, diz Manoel Bueno, o Nego da Pesca, presidente da Federação das Associações de Pescadores Profissionais, Artesanais e Aquicultores do Espírito Santo (Fapaes).

Nego da Pesca é liderança dos pescadores artesanais capixabas, que têm seu trabalho e modo de vida afetados pelos empreendimentos portuários. Foto: Ricardo Sá

Os portos, assim como as plataformas de petróleo, viram zonas de exclusão, na qual os pescadores não podem sequer se aproximar sob ameaça de multas e coação de seguranças privados.

Junto com a perda da capacidade de sustento, vai-se fragilizando a economia, o modo de vida e a cultura que gira em torno das comunidades pesqueiras, com suas festas tradicionais, cultos, crenças e patrimônios materiais e imateriais, além da distribuição de renda e segurança e soberania alimentar e nutricional proporcionados a partir da pesca.

Alessandro Chakal aponta também impactos na paisagem natural, incluindo zonas de preservação, além de efeitos no patrimônio histórico e cultural das comunidades dos arredores das instalações de novos portos. “Socialmente, ambientalmente e paisagisticamente, o resultado é devastação”, analisa o geógrafo, que é membro da Câmara de Patrimônio Ecológico, Natural e Paisagístico do Conselho Estadual de Cultura do Espírito Santo.

Cruzando mapeamentos, ele aponta que em muitos casos há coincidência dos locais onde provavelmente seriam os novos portos com áreas de preservação ambiental, incluindo unidades de conservação estabelecidas por lei. “Ao invés de servirem como áreas para recompor a Mata Atlântica e ecossistemas importantes associados como restinga e manguezal, estes locais estariam sendo liberados para destruição”.

Outra preocupação se dá em relação à grande quantidade de água demandada por empreendimentos industriais de grande porte, já que o estado possui problemas de escassez e poluição de seus recursos hídricos. O geógrafo aponta que, além de consumirem água e gerarem poluição, a instalação de vários empreendimentos está prevista para acontecer sobre zonas úmidas, responsáveis pela absorção e recarga de água para os rios e lençóis freáticos em seus ecossistemas.

“Por que não há um debate público em relação a tudo isso? É uma irresponsabilidade seguir adiante com tantos portos insustentáveis”, questiona o professor Arlindo Villaschi.

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