Estudo utilizou material coletado em Vitória para documentar efeitos em tempo real

Uma pesquisa inédita documenta os efeitos em tempo real da exposição ao material particulado atmosférico (PM₁₀) lançado pelas poluidoras Vale e ArcelorMittal, localizadas na Ponta de Tubarão, em Vitória, em células pulmonares de seres humanos. O estudo, assinado por 12 pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, saiu na revista Chemosphere, uma das mais conceituadas na área em âmbito internacional.
Para chegar aos resultados apresentados no artigo “Time-course detoxification of environmental metallic nanoparticles in human lung cells (A549)” (em português: Desintoxicação em tempo real de nanopartículas metálicas ambientais em células humanas), foram observados os efeitos bioquímicos no processo celular ao longo de 24 horas de exposição.
O material foi coletado em 2020 na Ilha do Boi, um dos locais mais afetados pela poluição atmosférica das grandes empresas, com o apoio da ONG Juntos SOS ES Ambiental. Uma das conclusões é de que o material particulado provoca danos irreparáveis nas células.
De acordo com a pesquisa, em apenas uma hora de exposição, nanopartículas foram encontradas no citoplasma e no núcleo das células. As células formavam vesículas para isolar os contaminantes, mas não conseguiam eliminar toda a toxicidade.
“A célula tem capacidade de armazenar esse material em vesículas, que são como bolsas, e deixar de uma forma que não fique em contato com tudo que é importante. Mas, acima de determinadas concentrações, houve morte celular. É como se a célula dissesse: tem tanta sujeira aqui, que eu prefiro morrer”, explica a bióloga Iara da Costa Souza, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), uma das autoras da pesquisa.
Os elementos cério (Ce), ítrio (Y) e titânio (Ti), presentes nas atividades metalúrgicas, foram os principais responsáveis pelos efeitos tóxicos. “São metais que ainda não tem muita regulação no mundo, só em alguns países. Em geral, no material particulado, só há regulamentação para o chumbo (PB)”, informa Iara.
Este é o primeiro estudo a documentar, em sequência temporal, os eventos de internalização, toxicidade e detoxificação celular frente a partículas atmosféricas de origem metalúrgica, com destaque para metais emergentes pouco regulados. Os estudos clínicos foram realizados na UFSCar, utilizando microscopia eletrônica de alta resolução, espectrometria de massas e ensaios bioquímicos.
Segundo Iara, será necessária uma segunda fase da pesquisa para traduzir os dados técnicos em informações práticas sobre como regular os níveis de exposição ao pó preto. Mas já é possível dizer que a exposição à poluição atmosférica proporcionada por empresas como Vale e ArcelorMittal tem efeitos diretos sobre células pulmonares, e isso, ao longo do tempo, pode gerar diversos problemas de saúde na população, principalmente em períodos adversos, como tempo seco.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2019, a poluição do ar foi responsável por um número estimado de 4,2 milhões de mortes prematuras no mundo – conforme destacado no artigo. Desse total, cerca de 37% foram atribuídos a doenças cardíacas; 18% a doenças pulmonares crônicas; 23% a infecções respiratórias agudas; e 11% a cânceres do trato respiratório.
A pesquisa publicada neste mês faz parte de um projeto realizado desde 2020, com recursos do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), e conta com a participação de pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Já foram publicados mais de 20 trabalhos.
Um outro estudo inédito, de 2019, já havia revelado que nanopartículas do pó preto são internalizadas nos pulmões. O resultado mexe diretamente com um dos principais argumentos das poluidoras, de que esse tipo de poluição é constituído por “partículas grandes”, abrindo caminho para legislações mais permissivas.
‘Regulamentação mundial é insuficiente’
Em junho, o governador Renato Casagrande (PSB) sancionou o Decreto nº 6.076 R/2025, que regulamenta a Política Estadual de Qualidade do Ar, conforme lei de março de 2024. Entretanto, o novo padrão adotado para poluição do ar, de 10 g/m2/30 dias, é considerado insuficiente para combater o pó preto, na visão de ambientalistas e movimentos sociais.
Iara Souza concorda, apontando que a regulamentação estadual aumentou o limite do material particulado sedimentável, sem considerar que fontes metalúrgicas liberam material que se dissolve em nanopartículas ao entrar em contato com a umidade do nariz, sendo facilmente absorvido pelas células, tendo em vista que a maior parte do corpo humano é constituído por água. “A legislação estadual é bem falha em não considerar as características de dissolubilidade das partículas”, conclui.
Mas, em sua opinião, não apenas no Espírito Santo a política de qualidade do ar é insuficiente, e sim no mundo todo. “A regulamentação mundial é baseada no tamanho da partícula, mas sem se importar com a fonte. Para todas as regulamentações, a fonte é importante, seja efluente líquido ou sólido. A regulamentação ambiental atmosférica é uma das poucas em que a fonte não importa”, comenta.
Atualmente, o Tribunal de Justiça do Estado (TJES) julga a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pela Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes) contra a Lei da Qualidade de Vitória, aprovada no final de 2023. O desembargador relator, Fábio Nery Brasil, votou pela constitucionalidade da lei. O desembargador Fernando Zardini, responsável pela liminar que suspendeu a legislação, mudou de posicionamento e acompanhou o voto do relator. O julgamento está suspenso por conta de pedido de vista.