Ailton Krenak reflete sobre o planeta e conta por que tem vindo ao Espírito Santo
Embora chegue depois do horário combinado com os jornalistas, Ailton Krenak não traz consigo a pressa que levam os assessores. Ainda falta algum tempo para o início do evento Desnaturada: Chamado Ancestral, que aconteceu no Parque Cultural Casa do Governador, em Vila Velha, onde nos encontramos.
Depois de uma entrevista em vídeo para um documentário, o convido para sentar e brinco perguntando pra assessora quantas horas eu tenho para entrevistá-lo. Ela diz que cinco minutos. Tenho dez perguntas que sei que o entrevistado provavelmente não gastaria menos de cinco minutos para responder a nenhuma delas. Penso em ideias para adiar o fim da entrevista, que mesmo antes da primeira pergunta parece que já começou.

É difícil definir prioridades mas como estou num jornal local, começo pelo Espírito Santo, lugar que o intelectual e líder indígena mineiro tem frequentado bastante. Pergunto porque ele tem aparecido tanto por aqui, sendo que já sei alguns dos motivos.
Ailton Krenak, como de costume, começa a resposta voltando lá atrás. “Os nossos antepassados, até começo do século 20 percorriam as altas serras de Minas Gerais em duas estações do ano. Percorriam 600 quilômetros onde é a Bacia do Rio Doce”. Fala de onde é hoje o município de Naque (MG), que no idioma nativo significa “Terra”, de onde povos originários saíam caminhando acompanhando o leito do rio até a foz do Watu, como é conhecido o hoje chamado Rio Doce.
“A gente tem que pensar o Rio Doce como um caminho onde essas famílias indígenas desciam acampando nas praias, pescando, mariscando, coletando coisas na beira do rio. Passavam seis meses fazendo essa jornada, chegavam no litoral e acampavam. Depois, quando subiam as águas dos rios, eles começavam a subir, iam pelas encostas, subindo a serra, quase pelo mesmo caminho, com pequenas paradas pela estrada”, relata Ailton, lembrando do roteiro que os chamados “botocudos” percorriam há 200 ou 300 anos atrás.
Mas vieram as fazendas, as cercas, os municípios, a estrada de ferro, as barragens no rio. Os caminhos ancestrais foram obstruídos, cortados, desaparecidos. O entrevistado fala das questões políticas envolvendo a chamada região do Contestado, na divisa Norte entre Minas Gerais e Espírito Santo, justamente onde está o território Krenak. Por muito tempo, entre as décadas de 1930 e 1960, a região tinha jurisdição ambígua, em conflito, não se sabia bem até onde ia um estado e outro. Ailton conta que havia inclusive pessoas Krenak que até se consideravam capixabas, mas transitavam também para o outro lado da divisa. “A questão de ser capixaba ou mineiro não era uma questão relevante para nós. A gente transita nesse território como um território ancestral. Do ponto de vista cultural, a região do vale do Rio Doce é um território indígena, mesmo que não seja demarcado, no nosso imaginário, é um território ancestral”, afirma.

Feito o preâmbulo ancestral, ele continua para responder à minha pergunta. “Meu trânsito por Vitória, minha circulação por Vila Velha e Vitória, são mais recentes porque eu decidi eleger Vitória como minha área de circulação para sair da aldeia e pegar um voo para qualquer lugar. Tenho uma agenda muito intensa de viagens e é mais fácil eu vir para cá e chegar em menos de 4 horas no aeroporto. Se fosse pegar um voo em Confins [aeroporto de Belo Horizonte (MG)], seriam 8 horas ou mais de viagem de carro ou trem. Aqui é meu caminho natural para chegar e sair”.
Ailton também menciona a convivência com o secretário de Cultura do estado Fabricio Noronha e a acolhida dos movimentos sociais e culturais do Espírito Santo, como motivos para vir por estas terras. “É uma acolhida tão gentil que eu me sinto totalmente à vontade com vocês. É uma acolhida muito simpática e é claro que todo mundo gosta de ser bem recebido”. Sei que há outro motivo de ordem familiar para o líder indígena estar mais por aqui, mas como ele não menciona, também não pergunto, há outras coisas a explorar na conversa.
Ele menciona a parceria com o Fabiano Piúba, hoje no Ministério da Cultura, com quem assina a curadoria do evento Desnaturada, realizado pela primeira vez em 2022, em Fortaleza, no Ceará, retomado em Vila Velha nesta semana e com planos para circular por outros estados do Brasil este ano.
Não diretamente a mim naqueles poucos minutos numa sala para entrevistas, mas a todo público presente dois dias depois, Krenak contaria que a sugestão do nome do evento causou desconforto ao colega, pois a palavra poderia soar mal porque no imaginário popular remete a filhos desnaturados, que abandonaram a mãe ou os pais. Mas o manteve mesmo assim.
“Desnaturada é uma denúncia. Sobre como nós somos mesmo aquele filho desnaturado que deu no pé. A gente deu no pé e largou a Terra na mão das corporações. Largamos a terra, o oceano e o ar que respiramos na mão de algo que já está sendo denunciado como tecnofeudalismo, um governo de lugar nenhum explorando nossos territórios, comendo a terra dia e noite enquanto nós nos acomodamos em consumir o substrato dessa matéria que é processada e processada e processada”, afirmou na penúltima de quatro rodas de conversa que participou nos três dias em Vila Velha.

O evento, me disse Krenak na sala de entrevistas, tem como objetivo discutir como nós humanos fomos nos separando da terra em nossas vidas cotidianas a ponto de uma criança crescer imaginando que a terra é suja, que não pode pôr a mão na terra ou não pode botar terra na boca. “A terra é nossa mãe…”, diz. “A natureza está virando uma abstração”, reflete em sua calma perplexidade.
A assessora já olha, se movimenta e faz gestos corporais que supõem que o tempo está perto de se acabar. Finjo não ver, como é parte do jogo. Para dar seguimento comento ao entrevistado que precisamos pensar tanto a transformação das cidades como a reabitação sustentável de campos e florestas. Krenak relata que o êxodo rural brasileiro é histórico, com grande força a partir dos anos 60 e 70 do século 20, quando a população do campo é expulsa ou empurrada para sair da terra e habitar espaços urbanos – “habitar o mundo de concreto”, em suas palavras. Lembra que hoje 80% da população do país está concentrada em cidades.
Há crianças, diz, que ainda se perguntam de onde vêm a caixa de leite, se da prateleira do supermercado ou da geladeira. Pode também não lhes parecer absurdo que ovos venham de uma fábrica e não de uma galinha. “Isso é um déficit de natureza, é uma falta de contato sensível que as novas gerações estão experimentando em relação à terra. Seria muito importante que a gente conseguisse reflorestar o imaginário das pessoas que vivem há duas ou três gerações nas cidades, para eles começarem a se sentir também filhos da terra”.

Terminada a resposta, já sabendo da pressão do tempo, uso a tática de distensão de simular estar lançando uma “última pergunta” – para depois ainda tentar engatar quantas mais forem possíveis. Tenho que tirá-la da cartola, ou para ser literal, do bloco de anotações, e penso em trazer a pergunta mais fresca, que talvez ninguém tenha feito ainda, sobre a partida de dois ícones como o Papa Francisco e o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que havia falecido na véspera do encontro. Ambos transmitiam ideias que muito dialogam com a vida e obra de Ailton Krenak.
“Eles me inspiram muito”. Diz que acompanhou o anúncio feito pelo Papa Franscisco da encíclica Laudato Si, que convoca a humanidade a pensar na questão ambiental. “Convoca para uma pacificação entre humanos e outros seres não-humanos. A centralidade do ser humano como coisa mais preciosa de tudo, pôs num plano muito desvalorizado outros organismos, outros seres. E o Laudato Si chama para uma reaproximação entre seres humanos e natureza”
Sobre o uruguaio, comenta que muita gente está comovida com a notícia. “Mas ele já tinha falado para as pessoas mais próximas que ele já deixou a mensagem que ele podia para as futuras gerações e queria descansar. Então descanse em paz, Pepe. E o Papa”. Apesar das respostas breves, ali eu ainda via um caminho para explorar muitas coisas mais com o entrevistado – que mais tarde, durante o debate, pediria uma salva de palmas em homenagem a Mujica – mas tempo supostamente não mais havia.

A assessora intervém para terminar a entrevista, dizendo que havia outros convidados por vir. Quem advoga a meu favor é o próprio Ailton Krenak – ou a nosso favor, eu e você, leitor, que certamente já deve ter tomado partido nessa disputa tácita. Ele quer seguir a prosa, diz que os outros entrevistados foram enviados mais cedo por equívoco. Questiona se tenho perguntas a eles. “Não me preparei para isso”, digo, para afirmar de forma educada que meu foco é a entrevista em que estamos. Sinto que ganhei tempo mas a euforia é fugaz.
Ailton pergunta quando começa a próxima atividade oficial, a assessora diz que é às 17h. “Estamos na hora”. Na verdade, para além das entrevistas, imagino que ainda haja outras pessoas e autoridades aguardando para falar com Krenak, enquanto um lanche sofisticado é preparado na sala e certamente não é para mim. Continuo, sabendo que a entrevista já está comprometida. Resta, agora sim, uma última pergunta. Tenho questões bastante amplas e outras bem sensíveis. Reflito por um segundo em algo em que ele possa ser assertivo e responder dentro dos limites do tempo cronológico, embora o entrevistado seja evidentemente mais adepto do tempo Kairós. Talvez seja a pergunta menos interessante para a maioria dos leitores mas é o que me resta.
Questiono sobre a COP 30, conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o clima que ocorrerá este ano em Belém (PA). É possível ter alguma expectativa positiva sobre ela sendo que as conferências anteriores prometeram muito e entregaram quase nada? Ailton Krenak comenta que viu uma entrevista do embaixador brasileiro que presidirá a COP e que o cenário não é animador, já que nem o mesmo prometeria grandes compromissos. Com o retorno de Donald Trump à presidência, o governo dos Estados Unidos, maior economia do planeta, abandonou o Acordo de Paris, tratado internacional sobre mudanças climáticas, e pode levar outros aliados com ele, esvaziando o encontro. “A conferência vai ser um balcão de negócios das corporações. Já falei isso uma vez e irritou algumas pessoas, não gostaria de ficar repetindo isso. Espero que a COP seja um bom evento pelo menos, mas ela não vai resultar no serviço que uma conferência precisa entregar para sociedade global planetária”.
A crise climática, afirma, é crescente e muito preocupante. A conferência deveria ser então uma oportunidade de novos compromissos de verdade, analisa Krenak. Mas ele cita os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que são 17 no total mas poucos estão sendo plenamente cumpridos. “Estamos devendo para a última conferência e parece que na próxima vamos chegar com um cheque vermelho”, diz, com uma metáfora antiga para um problema atualíssimo.
“E o que fazer então diante dessa situação?”, tento como ultimíssima cartada, quando as movimentações na sala se ampliam. “Quem dera se eu soubesse o que fazer. Fico preocupado com o mundo que estamos embalando para as gerações futuras”, diz Krenak.
Mal terminamos e já entra na sala um grupo de jovens acompanhado do secretário de Cultura. Um deles estende um livro do primeiro indígena imortal da Academia Brasileira de Letras para que o mesmo assine. Mesmo preocupado, Ailton Krenak segue, como pode, tentando embalar o mundo para as gerações futuras.

Numa das rodas de conversa do evento, ele diz com sua sofisticação, simplicidade e humor: “Fico tentando convocar os humanos a uma potência poética de reestabelecer a sua relação com isso que foi chamado aqui de ancestralidade. Se a gente acredita que a ancestralidade não é só uma moda, que não é só um álbum do Alok (vocês sacaram, né?), a gente vai entender que é verdade. A ancestralidade vai para além das nossas contradições culturais”.
Sua mensagem geral, diante dos atropelos do capitalismo devorador de sonhos e realidades, soa sempre mais pessimista que otimista para a maioria. Numa das rodas de conversa chega a sugerir ao público que o Homo sapiens seja incluído na lista de espécies ameaçadas de extinção, mesmo que ele fosse o único verdadeiro predador entre os animais assim classificados. Mas seu sereno pessimismo de pés fincados na terra também celebra o entorno verde do parque, admira o barulho das ondas ali ouvido em paralelo com a forte chuva que cai. Lembra que o ser humano não é espectador da natureza, ele é a natureza.
Mostra que a vida não é útil, indica que o futuro é ancestral e aponta ideias para adiar o fim do mundo. Falando sobre o uso da ayahuasca em uma das palestras, o intelectual indígena arremata: “O universo das plantas é tão maravilhoso e tão vasto que poderíamos sim nos lançar nos braços das plantas para a gente escapar dessa fissura civilizatória que a vida urbana excessivamente imprime no cotidiano das pessoas”. Ao meu lado, minha companheira diz que palavras são sementes. Ailton Krenak é um plantador (planta dor?), um reflorestador de mentes. Palavras que brotam nos corações também alimentam e curam. Ererré!