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Renova decide parar de pagar lucro cessante em São Mateus e Conceição da Barra

Posição desrespeita Deliberação do Comitê Interfederativo (CIF), já confirmada pela Justiça

Filhote de caranguejo morto no manguezal de São Mateus.
Foto: Eliane Balke

“Para você ter uma ideia, enquanto estou falando com você, o caminhão-pipa está entregando água na minha casa. Jamais a gente podia imaginar que nossa soberania da água seria retirada. E a Fundação Renova diz que não somos atingidos. A qualquer hora você pode vir e constatar com seus olhos: o manguezal está morrendo, o estuário. Com frequência vemos peixe morrendo, caranguejo, pássaros mortos na beira do rio, até as abelhas que tinham no mangue despareceram. E essas empresas, para tirar a cara delas da reta, diz que tem uma pesquisa que prova que a gente não é atingido! Mas eu não acredito que é verdadeira. As pesquisas verdadeiras feitas pela Ufes [Universidade Federal do Espírito Santo] e outras entidades que não pertencem a empresas, atestam que está tudo poluído. Mas a Fundação Renova não aceita, a Vale, a BHP e a Samarco não aceitam”.

O relato é do pescador Aliquis dos Anjos, morador e trabalhador da comunidade de Ferrugem, na região do Nativo, em Barra Nova, litoral de São Mateus, norte do Estado – um entre tantos milhares de atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, ocorrido em novembro de 2015, que despejou cerca de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, levando a destruição para mais 600 km ao longo da Bacia hidrográfica do Rio Doce, em Minas e no Espírito Santo, além de todo o litoral capixaba, do sul da Bahia e norte do Rio de Janeiro, configurando o maior crime ambiental da história do Brasil e um dos maiores da mineração mundial.


Pescador em Itaúnas, distrito de Conceição da Barra, também no litoral norte, Carlos Alberto Falcão dos Santos, o Betinho, recebeu tratamento semelhante. “A resposta só veio na véspera do término do prazo para pagar o lucro cessante. A gente tinha direito de receber lucro cessante até 2025!”, conta.

Os depoimentos de Aliquis e Betinho refletem a indignação dos atingidos em São Mateus e Conceição da Barra, que, nos últimos dias de março deste ano, foram informados pela Renova que não receberão mais o pagamento anual pelo lucro cessante, uma das formas de compensação financeira em razão da impossibilidade de continuar exercendo a atividade profissional que garantia seu sustento antes do rompimento da barragem.

Como nos anos anteriores, o pagamento deveria ter acontecido entre janeiro e março, mas ao longo do trimestre, sem notícias do dinheiro, Aliquis procurou por diversas vezes informações nos serviços de atendimento da Fundação Renova – por telefone 0800 e internet, já que o escritório na cidade foi fechado por conta da pandemia – sem qualquer resposta. A explicação só foi enviada nos últimos dias do prazo para o pagamento.

“A atendente disse que estudos realizados pela Fundação Renova no ano de 2020 não constataram nenhuma poluição na região de São Mateus e Conceição da Barra e que o lucro cessante não seria pago para os pescadores dessas duas regiões e somente Linhares e Aracruz estariam contemplados”, relata Aliquis. “Me deu um estado de nervo que eu precisei até tomar um chá pra me acalmar”, desabafa.

“Eu, na condição de pescador atingido, jamais imaginei que ela poderia uma coisa dessas com os atingidos”, indigna-se. “Nossa saúde está fragilizada, física e mental. São tantas coisas que acontecem conosco, dor nas articulações, diarreia com frequência, esquecimentos, queda de cabelo, coceiras. No passado nós não tínhamos nada disso”, conta.

Quitação geral
Betinho conta que, antes de receber a resposta, a Renova o procurou propondo um outro desfecho. “A Renova ligou pra mim antes de dizer que ia cortar, falando que era pra eu assinar a quitação total”, diz, referindo-se à forma de indenização que tem sido conduzida pelo juiz Mário de Paula Franco Junior, substituto na 12ª Vara Federal de Minas Gerais, por meio de apócrifas Comissões de Atingidos. Criadas sob a liderança de um grupo de advogados ligados ao escritório de Richardeny Luiza Lemke Ott, de Baixo Guandu, no centro-oeste do Estado, essas comissões, bem como a atuação do juiz, foram denunciadas pela Força-Tarefa do Ministério Público Federal (MPF).
Nesse processo, os atingidos precisam se cadastrar no sistema Novel, instalado no site da Renova, contratar um advogado, a quem devem pagar 10% do valor da indenização, a assinar um termo de quitação geral de direitos, ou seja, abrir mão de qualquer outro direito indenizatório que tenham direito e possam reivindicar, tanto em ações atuais em curso como em ações futuras.
“Tem gente aceitando a quitação geral. Para aceitar, precisa procurar um advogado para fechar com ele. Em Conceição da Barra teve gente que aceitou. E eles ficam contra a gente que não aceita”, conta Betinho, que percebe, em toda a movimentação da Renova e suas empresas mantenedoras, uma estratégia de minar a união dos atingidos na luta por seus direitos, estratégia já alertada pelo MPF/ES. “Isso aí é porque estão colocando atingido contra atingido. Isso tudo vai ficar contaminado muito tempo ainda, mas a Renova quer que a gente brigue um com outro e acabe desistindo de lutar pelos nossos direitos”, observa.
Aliquis também se indigna com a estratégia. “O pescador fica de fora da discussão. Estão elegendo associações para nos representar, mas, eu falo por mim: essas associações não me representam, porque eu não fui ouvido”, afirma. “No meu modo simples de ser de pescador, eu vejo que essas gigantes construíram uma rede de mentira e colocaram o nome de Fundação Renova para encobrir a verdade dos fatos, que está tudo contaminado”, repudia.

Falta embasamento técnico e jurídico
A resposta oficial distribuída pela Renova aos atingidos que tiveram o direito do lucro-cessante suspenso, compartilhada pelas redes sociais, afirma que a posição se baseia em estudos, mas sem especificar quais são e feitos por que instituições.
“A Fundação Renova tem como parâmetro as conclusões do Relatório de Estudos, apresentado em 2020, que atestam que esses municípios não sofreram impactos em razão do rompimento da barragem. Portanto, a pessoa reside e exerce atividade econômica em localidade na qual não há evidência de ocorrência de dano ambiental causado pelo rompimento da barragem. O relatório é fruto da análise integrada de mais de 50 estudos de referência sobre as novas áreas. Cabe ressaltar que os termos de acordo celebrados com a Fundação Renova preveem que os lucros cessantes somente serão pagos se existentes e em eventual futuro acordo. Sobre os casos recentes de pagamentos de lucro cessante nesses municípios de Novas Áreas, eles resultam do cumprimento de decisões judiciais que determinaram a implementação do Sistema Indenizatório Simplificado, mas não abarcam o PIM [Programa de Indenização Mediada]”.

O defensor público Rafael Portella contesta a argumentação, tanto do ponto de vista técnico quanto jurídico, fundamentando-se essencialmente na Deliberação nº 58 do Comitê Interfederativo (CIF), publicada em 2017, reconhecendo o litoral norte capixaba como atingido pelo rompimento da barragem e estendendo, assim, automaticamente, o direito dos atingidos na região acessarem os mecanismos de compensação e reparação do crime, incluindo o auxílio financeiro emergencial (AFE) e o lucro cessante.
“A posição da Renova é manifestamente ilegal”, assevera. “Primeiro, porque a Deliberação nº 58 está em vigência, não havendo nenhuma decisão judicial em contrário. Segundo, porque eventual estudo precisaria ser levado ao CIF para, desta forma, rever a Deliberação nº 58. Até o momento isso não aconteceu! Terceiro, porque as decisões judicias recentes confirmam a presunção de validade das deliberações do CIF. Portanto, a ação da Renova e das empresas deve ser vista dentro de uma estratégia maior de cortar direitos e extinguir os programas de reparação, alarmantemente na pior fase da pandemia do Covid-19 que vivem o Espírito Santo e o Brasil”, explica.

O Ministério Público Federal (MPF) também tem recebido reclamações e, segundo os atingidos prejudicados, a orientação é para que as denúncias sejam formalizadas no Serviço de Atendimento ao Cidadão (SAC), para que a questão seja devidamente registrada para análise da Força-Tarefa.

‘Não vou me calar’
Em meio a tantos atropelos, Betinho diz ter medo de perder também o auxílio financeiro emergencial. “Da minha família, só eu recebi. Somos quatro irmãos, mais o meu pai, todos pescadores profissionais. Mas só eu consegui. Não dá pra entender. É tanta coisa estranha acontecendo, que eu fico com medo de daqui a pouco perder o auxílio financeiro também”.
O sentimento de injustiça é compartilhado por Aliquis. “Nós estamos diante de um dilema que é um gigante. Estamos tentando lutar contra um gigante e nós somos um pequeno Davi diante desse Golias“, compara. “Uma empresa que tem tantos recursos e tantos profissionais poderia fazer muito diferente. Fizemos uma votação para escolher nossa assessoria técnica, por nome Adai, mas até hoje ela não foi contratada, não nos deixaram ter direito à defesa pela assessoria. E nesse novo modelo de indenização, o juiz determinou que os advogados cobrem 10% da gente”.

Apesar da situação ainda desfavorável, Aliquis afirma que os atingidos continuam em luta. “Eu não vou me calar. Eu tenho uma criança em casa. Eu tenho um filhinho, um bebê de três anos e três meses, e eu estou sendo impedido de ensinar ele a minha profissão. Nós somos de uma família indígena, meu pai é filho de uma índia. Minha avó passou toda a cultura dela indígena pro meu pai. Quando chegou a minha vez de passar pro meu filho, eu não posso. Mas eu não vou me render diante desse gigante, ele não vai prevalecer contra nós, porque o Ministério Público e a Defensoria Pública vão continuar fazendo por nós”, afirma.
“Quando a barragem rompeu, no dia cinco de novembro de 2015, Deus usou um motoqueiro que, quando viu o estouro, saiu avisando pra cidade e salvar muita gente. Infelizmente, 19 pessoas não conseguiram, o grito dessas 19 foi sucumbido garganta abaixo. Hoje eles querem nos calar como calaram aqueles 19, com lama garganta abaixo, mas não vão conseguir”, profetiza.

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