Sábado, 04 Mai 2024

No Pedro Fontes, a hanseníase virou força, sabedoria e coragem

No Pedro Fontes, a hanseníase virou força, sabedoria e coragem
Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Agência Porã
 




Dona Maria encolhe os dedos e com o pai de todos dá três batidas na porta azul-celeste. “Tio Guido!”, chama. Ninguém responde. Ela repete o procedimento, complementando: “O senhor tá dormindo?”. Agora ele responde, porém nada inteligível. Dona Maria, então, se agacha e olha pelo buraco da fechadura; sustenta-se na posição por um tempo, olho esquerdo aberto, o direito apertado, perscrutando o interior da casa. 
 
Algo ela vê, pois abre um sorriso e retoma a postura. Ouve-se um barulho de chaves e a porta finalmente se abre.  
 
O que vemos à primeira vista é um típico senhorzinho envergando todos aqueles signos e indícios de fragilidade que a velhice costuma conferir a homens e mulheres. A pele alva e murcha e a boca praticamente banguela como que emolduradas por um conjunto singelo de camisa de botão bem engomada, calça de tactel e havaianas nos dedos. 
 
A cabeça redonda traz cabelos brancos, ralos e bagunçados e um nariz achatado. O elemento destoante - e o primeiro que se nota - é o traço dinâmico e jovial dos óculos escuros. 
 
Nascido em 1922 em São Roque do Canaã, Guido Roldi é um dos moradores mais antigos da antiga Colônia de Itanhenga, erguida em 1937 em Cariacica para internação e degredo compulsório de hansenianos e cuja história foi recontada no livro Hospital Pedro Fontes - Antiga Colônia de Itanhenga, lançado este ano.
 
Na colônia, a hanseníase ainda era o mal físico que condenava o doente à extirpação social - como na França do século VIII, que considerava o leproso um “morto civil”, ou, pela mesma época, como a Igreja Católica, que o submetia a um degradante rito de exclusão. Os antepassados dos “mortos” franceses e de cristãos desafortunados ainda vagavam pelos corredores do leprosário capixaba.
 
Logo que Dona Maria entrou, ele deu o motivo da demora: dormira pouco à noite, menos que as quatro horas de sono costumeiras. Dormitava na cama quando ouviu as batidas na porta. Costuma acordar às quatro da manhã, quando ouve o terço no velho rádio que repousa sobre a mesa do quarto de dormir.
 
Às cinco, lhe trazem o  mingau e o café, cuja garrafa é abrigada dentro de uma vasilha com água sobre a pequena mesa da cozinha, para dificultar o assédio das formigas. Às 6h, liga o rádio novamente para ouvir a missa. Só retorna ao aparelho às 12h para até as 14h ouvir o Ronda da Cidade. “Eles falam tudo, onde é que morreu gente, onde é que roubou, onde matou”, diz, entre risos.
 




A aparência afável como que disfarça o homem de 92 anos, 70 vivendo em um monumento ao abandono e à solidão e 60 dos quais sob absoluta deficiência visual. 
 
Seu Guido chegou em agosto de 1943, vindo de Colatina. No trabalho como operador de máquina de pilar café, notou pequenos caroços no pé. Foi ao médico e ouviu a recomendação taxativa: que se internasse na colônia. Era uma sexta-feira. Na segunda seguinte, 9 de agosto, pisava na Itanhenga. Mas não sem os percalços da vida: “O desgraçado ainda quebrou na estrada”, pragueja, afetando ira, referindo-se ao ônibus. Estava ainda longe de Cariacica: foi andando. 
 
Em 45, casou-se com uma enfermeira da colônia. “Mas Deus levou, faleceu em 95”, diz, lamurioso, um raro momento em que uma nota triste soa em sua voz. “Uma criatura boa”, completa. A curiosidade sobre se os filhos vieram explica tal raridade. A resposta é uma luz sobre o retrato desse senhor: conjuga uma pia resignação cristã e uma espirituosa autoironia. “Não. Deus não mandou. Mas hoje talvez eles podiam até me ajudar, mas também podia me dar mais dor de cabeça, né?”.
 
Ou seja: não reclama da vida. Se ela não lhe é boa, também não lhe é de todo má. Embora a leve encerrado atrás da sólida grade de ferro que guarnece a porta da casa, não teve as entranhas físicas e morais corroídas pela solidão. Ampara-se quase sempre em uma mesma sentença, que costuma cruzar assuntos e temas variados: “O que Deus mandar pra mim tá bom”. 
 
Há, porém, a previsível ressalva: “Só reclamo porque não tenho visão”. Até hoje não sabe o que lhe causou a cegueira. Tem apenas uma suposição, um tanto vaga: tinha cerca de 30 anos quando jogava futebol no campo da colônia. O tempo fechou e veio uma chuva violentíssima. Não deu outra: do choque entre o corpo quente e úmido e a chuva intensa e fria nasceu uma gripe demolidora. 
 
Dias depois, refeito, foi com o irmão para São Roque. Na volta, sentiu as pálpebras como que apertadas. Acordou gritando de dor na manhã seguinte: os olhos, descreve, pareciam bolas de fogo. 
 
Ele reclama da visão, as rememora cenas anedóticas. Certa vez morou 11 meses na área geriátrica. Não gostou. O hospital abrigava muita gente à época, transformando chamados fisiológicos em autêntica amolação, razão pela qual, quando ia ao banheiro, era repreendido: “Não é aqui não, você tá doido?”. Hoje responde de si para si: “Uai, sem enxergar, fazer o quê?”, no cômico tom de obviedade.
 
Há poucos dias, recebeu uma visita de um grupo de Belo Horizonte. Foram mais de duas horas de papo, que o forçou a ficar plantado no pequeno banco de sua varandinha e que, ao final, lhe custou algumas dores, ficara sentado mau jeito. Eram médicos, duas doutoras e um doutor. “Ele todo engravatado. Dizem, porque eu não vi”, diz, cheio da marotice. 
 




Agricultores de Barra de São Francisco, o pai e o avô de Luiz Carlos Barbosa, auxiliar de serviços gerais do hospital, onde trabalha há 16 anos, eram hansenianos. O menino nasceu e cresceu no antigo Preventório Alzira Bley, um casarão de dois andares inaugurado em abril de 1940 para dar assistência às famílias e, sobretudo, aos filhos sadios dos internos. 
 
Chega-se ao Pedro Fontes pela Rodovia do Contorno. Os primeiros metros da estrada de chão corta um grande descampado, em que se sobressai o antigo preventório. Edificação imponentemente pálida, estertorando nas paredes gastas, telhado avariado e janelas quebradas. Ao redor, o gado pasta no mato que cresce desimpedido.
 
Hoje aos 50, Barbosa vê apenas maus-tratos e sofrimento no casarão.  Ainda assim lamenta certas mudanças: já não há a sensação de vida comunitária, os laços sociais autênticos, que havia outrora. Diz que, nos velhos tempos, o Natal já envolveria a colônia em luzes e adornos nas ruas e casas. 
 
Barbosa é um exemplo de como famílias se fixaram na área. Nos anos 70, o hospital obteve a liberação de lotes em áreas afastadas do centro da colônia para os internos construírem casas e recomporem suas famílias. A ocupação engendrou a gradativa urbanização. Daí nasceram os bairros Pica-Pau e Cajueiro, vizinhos do Pedro Fontes.  Ao mesmo tempo, a população do entorno explodiu: em frente, do outro lado do Contorno, vê-se o aglomerado precário de casas da região de Rosa da Penha, composta por 11 bairros e mais de 80 mil habitantes.
 
Hoje o Pedro Fontes opera com 40 funcionários - um deles, Dona Maria, do setor de rouparia, que nos apresentou Guido e Marcelino - e 16 pacientes moram nos pavilhões. Não recebe mais hansenianos para internação.







“A hanseníase acabou em 1970. De 70 para cá, você trata em casa. Antigamente, se constatada a doença, você tinha que se isolar. Mas, aqui, ficaram alguns sequelados, porque uns a família abandonou e outros porque a família já tinha casa aqui”, explica César Pitanga, o diretor-geral do hospital. 
 
Alguns ex-hansenianos que ainda moram na área recebem acompanhamento médico do hospital ao estilo Programa de Saúde da Família (PSF), estratégia em que uma equipe médica atende o paciente em seu ambiente.
 
Na varanda de uma das casas da antiga área doente da colônia, região na avenida central que abriga 10 unidades, Marcelino Moreira, um senhor cadeirante de chapéu e óculos de sol, observava o dia passar. 
 
Tem 83 anos e, digamos, vive dionisiacamente. Fuma e bebe - vinho “e, às vezes, uma latinha de cerveja”. A comida do hospital não lhe apetece. “Hoje em dia eles querem que a pessoa come sem sal. Não tem gosto de nada, parece que fica sem gosto de comida”, lamenta. Por isso, em nome de uma “carne bem salgadinha”, como diz, paga para cozinharem para ele. 
 
Os médicos o censuram. Mas ele não só dá de ombros como enumera com certo orgulho suas demais proezas gastronômicas - além de álcool e tabaco, adentram aquele corpo mirrado carne de porco, gordura de porco, mocotó de boi, feijoada de toucinho. “Eu sou é muito nojento pra me alimentar”.  
 




A catarata vitimou seu olho esquerdo; o direito trabalha muito parcamente. Também não tem o pé direito, amputado após chegar à colônia. Mineiro de Águas Formosas, chegou ao Pedro Fontes em 1965. Vinha de Mucurici, onde a família se instalara em 24 anos antes. O pai vendera o pedaço de terra em Minas para adquirir um maior no Espírito Santo.
 
O jovem Marcelino trabalhou em lavoura, comércio, cortando estrada, tomando conta de gado. Um dia viu sentiu um dedo do pé dormente. Ouviu do médico a mesma taxativa recomendação: que fosse para o Pedro Fontes. Ainda chegou com o pé quebrado, inchadíssimo. A solução foi amputar.
 
A deficiência física o levou à conclusão de que seria um estorvo retornar à Mucurici - “Voltar pra ficar parado?”. Mais conveniente era permanecer internado. Decisão acertada: arrumou um ofício e por 15 anos foi o barbeiro do hospital. “Fazia cabelo e barba de todo mundo, pra lá e pra cá”, diz.
 
Hoje vive no primeiro pavilhão da antiga área doente. Cada um é composto por cerca uma dúzia de cômodos e um banheiro. E cada cômodo é mais que um leito: é uma casa. No cubículo se reúnem a cama, uma cômoda, a TV, um fogão, uma geladeira e itens de valor afetivo, seja objetos religiosos ou fotografias da família.
 
O de seu Marcelino fica ao final do corredor, tomado de um lado, pela velha geladeira Brastemp, um fogão, a botija de gás e uma mesa, e do outro pela a cama de solteiro, cuja colcha, salpicada de pontos pretos, delata um mau hábito do tabagista inveterado: apagar a guimba no tecido. 
 
O hábito já lhe deixou em apuros. Certa feita, uma lufada entrou pela janela e espalhou cinzas em brasa pelo colchão. Imaginem um idoso, cadeirante, deficiente físico, deficiente visual, tentando contornar na noite profunda um princípio de incêndio. 
 
“Fui à geladeira pegar água, abri uma garrafa e ouvi um psssssss. Era refrigerante!”. Devolveu a garrafa e finalmente acertou o vidro com água. Quando os funcionários do hospital chegaram, só havia fumaça - além de um colchão encharcado de água gelada.    
 




Ainda é noite quando ele acorda. Levanta, senta na cadeira de rodas e desliza pelo corredor rumo à pequena varada, encimada pela fronde de um robusto oitizeiro, o primeiro de um renque que forma o canteiro central da área doente. Ali acende o primeiro cigarro do dia. Às 12h, quatro guimbas se espalhavam no cinzeiro da mureta. Sua autodefesa é uma peça articulada e consistente: “Tem 70 e tantos anos que fumo cigarro... e nunca morri”. 
 
Obviamente a leveza existencial de seu Guido e seu Marcelino não é regra geral na antiga colônia. Um silêncio Ainda há muita tristeza e silêncio Outro interno antigo muito elegantemente preferiu não falar conosco; contar sua história seria ressuscitar fantasmas de abandono e esquecimento.
 
Seu Guido e seu Marcelino recebem visitas regulares das respectivas famílias. Gostam também das que lhes fazem as comunidades católica e espírita. Aqui Seu Guido solta mais uma de suas frases: “Eles gostam de mim de graça”. No dia anterior, vieram os espíritas. Teve até presente.
 
Mas quando não há visitas, familiar, caridosa ou assistencial, vive cada com seus pensamentos. Seu Marcelino ainda tem a varanda, uma espécie de pequena praça particular, isto é, o local em que cria e estabelece seus laços sociais, nem que se manifestem estes através de um mero e fugaz “Oi!” ao desconhecido que passa.
 




Quanto a Seu Guido, a gente pergunta o que, fora ouvir rádio, ele faz depois que levanta. A resposta é axiomática: “Nada”. Restrições da deficiência. Não sai não porque apresente estorvos de locomoção. O coração está bem, a pressão, idem: segundo ele, a última vez medição indicou 10 por 7. Não sai porque não tem quem lhe ampare em um passeio. 
 
Daí que viva trancado: como a circulação na colônia não é restrita, nunca se sabe quem pode aparecer. Está certo que a casa, onde mora há três anos, é agradável e acolhedora em sua singeleza rústica. Lá fora, os pássaros cantam, o vento sopra, as árvores farfalham, enquanto cá dentro seu Guido se deita na cama ou se senta na cozinha. Mas está tudo bem. Se Deus assim quer, fazer o quê?

Veja mais notícias sobre Cidades.

Veja também:

 

Comentários:

Nenhum comentário feito ainda. Seja o primeiro a enviar um comentário
Visitante
Sábado, 04 Mai 2024

Ao aceitar, você acessará um serviço fornecido por terceiros externos a https://www.seculodiario.com.br/