Segunda, 06 Mai 2024

Por onde anda você?

 

Em regimes de arbítrio, tenham eles a ideologia que tiverem, uma porção lúcida da sociedade se mobiliza para se posicionar contra os abusos e lutar por aquilo que o Ocidente coloca quase no altar dos deuses: a democracia. Pessoas que têm mais de 60 anos, hoje, no Brasil, sabem muito bem o que é isso, ou não. Incluo o não porque a humanidade parece viver com uma maioria silenciosa, que fica esperando para onde a onda vai virar.
 
Cabe discutir, entretanto, se a maioria silenciosa não acaba sendo massa de manobra de uma minoria que pensa e age. Ou mesmo, na melhor das hipóteses, interpretando de forma livre os estudos socioeconômicos do italiano Vilfredo Pareto no Século XIX, se 80% silenciosos não acabam realizando os projetos de 20% ativos, que respondem por 80% do que tem de ser feito.
 
Na ditadura brasileira, a tensão social era grande não apenas entre os que defendiam o regime x os que se opunham a ele, mas também dentro dos grupos. A leitura atenta do livro reportagem “Memórias de uma Guerra Suja”, em que o ex-delegado do DOPS Cláudio Guerra conta como agiam os porões do regime militar, é reveladora sobre como agiam os agentes da ditadura mais recente e longa da história brasileira.
 
Quem não se alinhava também tinha suas diferenças, talvez frutos das próprias idiossincrasias humanas. Há uma composição de Belchior, “A palo seco”, feita em 1973, que parece expressar bem isso: “Se você vier me perguntar por onde andei/No tempo em que você sonhava/De olhos abertos lhe direi/Amigo eu me desesperava./Sei que assim falando pensas/Que esse desespero é moda em 76/Mas ando mesmo descontente/Desesperadamente eu grito em português”.
 
Naqueles tempos, importar-se poderia representar pagar o preço com a própria vida. O personagem Beto, de “Romance sem palavras”, de Carlos Heitor Cony, é revelador: “Quando penso naquele período, tento me desculpar. Se nada tivesse feito, tudo continuaria como antes, tudo seria como de fato aconteceu. Somente eu seria diferente”.
 
Não estaríamos nós, cada um de nós em nossos dias, perdendo a grande oportunidade que a vida nos concede de sermos seres diferentes no futuro? Lanço a questão a propósito de “tanta coisa acontecendo e eu, aqui na praça, dando milho aos pombos”. Um grupo de militantes capixabas está preparando um excursão de três ônibus a Brasília para protestar contra o mensalão. Palmas para eles!!! Mas tanta coisa acontecendo...
 
Por onde anda você, o Comando de Caça aos Corruptos, que lavava as escadarias da Assembleia Legislativa, vestido de dedetizador, e hoje não se importa quando, num grito isolado, um parlamentar mobiliza um terço da Casa e propõe uma CPI para apurar escândalos recentes com dinheiro público no Estado, e nada acontece? Só porque, talvez, quem sabe, não é simpático à pessoa?
 
Por onde anda você, que lavava as escadarias do Tribunal de Contas, vestido de dedetizador, e hoje não se importa quando, num gesto de independência, seu presidente resolve botar a mão na massa, e nos corruptos, e é bombardeado por todos os lados, porque, no cerne do problema, está um homem-bomba que pode implodir a si mesmo e levar junto um queridinho das massas manipuladas?
 
Por onde anda você, que lavava as escadarias do náufrago Tribunal de Justiça, vestido de dedetizador, e hoje não se importa quando, num rompante de coragem, seu presidente ousa denunciar personagens intocáveis, demonstrar que o mito tem pés de barro, e é minado em todos os campos por onde pisa, porque isso contraria a suposta unanimidade, burra, de acordo com Nelson Rodrigues?
 
Por onda anda você, por onde andam os movimentos sociais, que não se importam em perder o bonde da história, que parecem dizer “tô nem aí” porque nada disso já não parece importar, afinal, quem mandou o outro ser um ladrãozinho de sopa? A minha, a sua, a nossa cama está desarrumada e estamos querendo arrumar a casa dos outros.
 
E, por fim, por onde anda você, que tanto sonhava e que nos vendeu os seus sonhos como sendo nossos, que tinha a grande chance de mudar a sua e a nossa história, mas que aceitou o jogo e o jugo desiguais, que se deixou aprisionar pelos santos de pau oco, e hoje já quase não manda, mas é mandado?
 
E a turma do porão continua remando. E o canto da senzala continua ecoando.
 
Por onde anda cada um de nós? Nossas caras pintadas estarão no mesmo picadeiro? Será que a moralidade já não se pode instaurar e teremos de locupletarmo-nos todos, caro Stanislaw Ponte Preta? Se já não há baionetas contra nossas barrigas nem fuzis sobre nossas cabeças, então, estaríamos todos nós anestesiados ou hipnotizados? Um dia isso tudo passa e a dura realidade recairá sobre nós. E, se tudo continuar como sempre foi, pelo menos o EU tem que ser diferente.
 
 


José Caldas da Costa é jornalista, escritor, licenciado em Geografia. Escreve neste espaço, como colaborador, nos finais de semana. Contatos:

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