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‘Não há orientação do TCE para nucleação de escolas do campo’

Municípios devem considerar aspectos pedagógicos para além dos financeiros apontados pelo Tribunal de Contas, adverte Rodrigo Coelho

Tati Beling/Ales

“Não há orientação do Tribunal de Contas para nucleação”. A afirmação é do conselheiro do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE) Rodrigo Coelho, e visa retirar do órgão fiscalizador a corresponsabilidade pela decisão de fechar escolas do campo de menor porte que vêm sendo tomadas pelos municípios e governo do Estado.

“O Tribunal não opinou sobre a decisão de nuclear que os gestores têm feito. Isso é ato discricionário deles. A nucleação é uma decisão política administrativa pedagógica, que não é orientada pelo Tribunal de Contas. O máximo que o Tribunal faz é dizer para os gestores: com base na oferta e observadas as concorrências, estude a reorientação da sua rede. Mas nesses casos, há que se observar os critérios pedagógicos, o que não está sob nosso controle”, defende o conselheiro, ao comentar sua análise da última auditoria realizada pelo TCE nas escolas públicas da educação básica nos 78 municípios capixabas.


Na divulgação institucional do trabalho, o conselheiro opinou ser favorável à vinculação de escolas e redimensionamento das redes onde existem duas ou mais escolas do campo numa distância inferior a três quilômetros.

“Nesses tempos de pandemia, em que precisamos inverter a lógica sobre a oferta de insumos para o acesso à educação, e que os alunos da rede pública precisam ter acesso à conectividade, ferramentas de tecnologia, estamos trabalhando com escolas com capacidade baixa de recepção de alunos. Então talvez a vinculação deles pudesse ser redistribuída, escolas poderiam ser redimensionadas, replanejadas”, declarou Rodrigo Coelho.

Redes concorrentes

Em entrevista a Século Diário, no entanto, o conselheiro procurou enfatizar o caráter não pedagógico dos dados sistematizados pelo Tribunal. “O que fizemos no levantamento que aponta a distância entre as escolas é apontar a oferta de vagas em duplicidade, dada a concorrência das redes públicas prevista na LDB [Lei de Diretrizes e Bases]. Redes estadual e municipais, as duas têm responsabilidade de oferta no ensino fundamental”, explicou, ressaltando que, apesar da grande municipalização de escolas ocorrida recentemente, a responsabilidade pelo ensino fundamental continua sendo de ambos os entes, governo do Estado e prefeituras, de forma concorrente.

“Entendíamos que precisávamos comparar a capilaridade e a distribuição das escolas nas redes que concorrem e evidenciar a informação sobre as escolas de redes diferentes que oferecem a mesma etapa do ensino em distâncias menores que três quilômetros”, reforçou.

“O que quisemos demonstrar é que essa concorrência se dá muitas vezes em grandes adensamentos populacionais principalmente em área urbana”, sublinhou, procurando reduzir ainda mais a influência dos dados apresentados pelo Tribunal na decisão dos municípios de fechar escolas do campo pequenas, especialmente as multisseriadas.

Dados de 2019 e 2020
Os dados foram coletados em uma auditoria operacional do Núcleo de Controle Externo de Avaliação e Monitoramento de Políticas Públicas em Educação (Neduc) do Tribunal, com informações de 2019 e 2020, e foram analisados pelo conselheiro Rodrigo Coelho do Carmo. Após apresentá-los aos demais membros da Corte, na sessão dessa terça-feira (9), o conselheiro devolveu os relatórios ao Neduc, para que eles sejam utilizados como base para a realização de fiscalização in loco nas escolas em 2021.
Na auditoria, o TCE apurou que a taxa de ocupação média, comparando as vagas ofertadas e o quantitativo de matrículas no Estado, foi de 83,7%. Ou seja, das 836,2 mil vagas no Espírito Santo, 150,9 mil estão ociosas. As taxas de ocupação variaram muito entre os municípios, o que aponta para uma oferta excessiva em determinadas localidades, e uma oferta insuficiente em outras, ou seja, um mau planejamento na oferta de vagas.

“Isso ocorre em especial no ensino multisseriado, que é aquele em que o professor trabalha, na mesma sala de aula, com várias séries simultaneamente, tendo de atender a alunos com idades e níveis de conhecimento diferentes. As classes multisseriadas estão presentes sobretudo em áreas de difícil acesso, já que algumas escolas têm um número pequeno de matrículas e a mudança para outras escolas nem sempre é possível, por conta da distância”, destacou o órgão fiscalizador.

Nesta modalidade de ensino, prossegue a entidade, “a fiscalização identificou altíssimas taxas de ocupação, com pares de escolas que ofertam essa forma de ensino a menos de três quilômetros umas das outras. Segundo a área técnica, isso aponta para uma possível falha no planejamento da oferta de vagas nas redes públicas de ensino capixaba, com o uso excessivo do ensino multisseriado”.

Especificidades do campo
O mau planejamento da oferta de vagas de que fala o relatório do TCE, avalia a educadora e integrante do Comitê Estadual de Educação do Campo (Comeces) Maria do Carmo Paolielo, tem por base o argumento de que “algumas escolas que se situam nas zonas rurais não estão com sua capacidade máxima de estudantes matriculados e que em menos de três quilômetros se encontra mais de uma escola, desnecessariamente”. Esse tipo de argumento, ressalta a especialista em Educação do Campo, “aponta uma racionalidade que é própria de análises tradicionais, que nem sempre são adequadas para áreas urbanas e menos ainda nas áreas rurais”.
Ao se tratar essa questão, orienta Maria do Carmo, “é imperiosa a necessidade de que sejam consideradas outras perspectivas de análise, diferente da aplicada às escolas urbanas”.

“O campo, mais uma vez eu afirmo, precisa ser compreendido em sua dinâmica própria, e que resulta inclusive de anos e anos de políticas públicas que não têm assegurado às populações do campo os direitos básicos ao trabalho, à moradia, à saúde e à educação. Cada território deve ser considerado em função de suas características específicas”, conclama, citando o exemplo de grande número de trabalhadores do campo que depende de um contínuo deslocamento em função dos ciclos de plantio e colheita e que leva consigo suas crianças e adolescentes em idade escolar. “Sem falar deles próprios, que têm suas necessidades de escolaridade para serem cumpridos como adultos que são”, salienta.

“Há que se pensar em políticas públicas específicas para o campo e ter outros critérios para fazer, por exemplo, a nucleação, que é tida muitas vezes ‘a solução’ para a concentração de estudantes e a redução do custo financeiro para a manutenção das escolas e contando simplesmente o número de matrículas, porque quanto maior a concentração, menor o custo por aluno e coisas do tipo”, explana.

“Nós precisamos de critérios que levem principalmente em conta uma situação complexa, que é o campo brasileiro e o capixaba, e que tem colocado em risco o direito à educação. Enquanto tivermos uma análise desconectada dessa realidade do campo, soluções continuarão não atendendo às necessidades do campo e o campo continuará sendo um espaço de escolarização que tenta o maior fôlego possível para se manter vivo, com grandes dificuldades. E que se mantém vivo na maior parte das vezes por esforço das próprias comunidades e não tendo a resposta dos poderes públicos, sejam estadual ou municipais, para garantir o direito que lhes é devido”, descreveu a educadora.

Arbitrariedade

Há um ano, o Comeces precisou se manifestar enfaticamente sobre o real conteúdo levantado pelo Tribunal nesse trabalho, visto que algumas prefeituras estavam utilizando o levantamento como justificativa para fechar escolas do campo, afirmando se tratar de uma determinação do órgão fiscalizador. Foi o caso de Governador Lindemberg, no centro-oeste capixaba, em que o então prefeito Geraldo Loss (PSDB) anunciou o fechamento de quatro unidades escolares
Após análise do relatório do TCE, o Comeces esclareceu que “hora nenhuma o relatório fala em fechar escolas do campo. Ele fala da necessidade de organização, de cada município, com suas particularidades e demandas especificas, pensar conjuntamente com o Estado as soluções para melhor atender as comunidades”, e que usar esse relatório como argumento pra fechar escolas é “praticamente uma arbitrariedade”.

Fechamento em massa de escolas

O fechamento de escolas do campo, principalmente as de menor porte e multisseriadas, é uma triste realidade no Estado e no país há décadas, com maior intensidade na passagem para o século XXI.

Apenas entre 2005 e 2015, atingiu quase um terço das unidades brasileiras existentes para atender ao povo do campo, segundo levantamento feito pelo Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária (Pronera) em 2015, com base no Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC) e nos dados da II Pesquisa Nacional sobre a Educação na Reforma Agrária (PNERA).

No Espírito Santo, o auge dessa prática ocorreu entre 1998 e 2003, avalia a Regional das Associações dos Centros Familiares de Formação em Alternância do Espírito Santo (Raceffaes), na publicação Cultivando a Educação dos Povos do Campo do Espírito Santo. Apenas entre 2008 e 2018, segundo o Comitê Estadual de Educação do Campo (Comeces), foram mais de 500 escolas fechadas.

Um dos tristes fenômenos resultantes, em grande medida, dessa política de nucleação/fechamento de escolas do campo, pode ser verificado, ressalta a Raceffaes, em um estudo de 2002 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep/MEC): o deslocamento para o meio urbano de grandes massas de crianças e adolescentes do campo: 48% dos alunos dos anos iniciais e 68,9% dos anos finais do ensino fundamental e mais de 90% dos alunos de ensino médio.

A Regional evidencia ainda outro aspecto salientado pelo Inep: o financiamento por parte do governo federal é falho, tanto pelo volume insuficiente quanto pelos critérios de distribuição para as prefeituras, que acabam por ter maior facilidade para obter recursos para o transporte escolar do que para a manutenção de escolas. E mesmo assim, sem garantir a qualidade necessário no serviço. O Comeces, conta Maria do Carmo Paolielo, tem recebido muitos depoimentos sobre a existência de veículos circulando com especificações de segurança e qualidade abaixo do que consta na contratação feita pelos municípios. 

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