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As novas cores da Piedade

Projeto do grupo Cidade Quintal realiza intervenções no morro que luta para se reerguer após episódios de violência

Dependendo do momento do dia, do alto do morro da Piedade o canto dos pássaros é mais alto que o som dos carros que transitam pelo não distante Centro de Vitória. Meninos empinam pipa, outros improvisam rap e um jovem carrega nas costas uma cesta básica. A tranquilidade, entretanto, por vezes deu lugar ao medo tempos atrás. 

Em 2019, após um momento difícil de violência, mortes e ameaças por conta de facções, foi idealizado o projeto Ativar Piedade, uma parceria dos grupos Cidades Quintal e Árvore Casa das Artes, num momento em que o poder público e moradores discutiam como enfrentar a situação.

Francisco Xavier/Expurgação

Passou-se quase um ano e meio até o projeto se concretizar, por meio de patrocínio da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult) e da empresa Intercores, com apoio do Movimento Comunitário do Bairro Piedade e do Instituto Raízes. Com destaque para cores muito vivas, o projeto ao todo pintou 31 fachadas, a maioria de casas de moradores, mas também uma venda, duas igrejas e o ponto de memória.

O Ativar Piedade optou por formar um circuito de casas, caminhos, escadarias, rampas e becos que perpassam pontos importantes do bairro, reconhecido como um dos berços do samba capixaba. O trajeto deste circuito foi escolhido buscando conectar dois espaços de convivência ainda precários, um pátio onde a Árvore Casa das Artes instalou um parquinho para as crianças, e o terreirinho, espaço baldio onde o poder público prometia uma praça ou quadra, mas até hoje ganhou apenas um calçamento. Nesse caminho entre eles, passa-se pela Capela São Vicente de Paulo e pelo Instituto Raízes, espaço cultural e de memória. “Buscamos consolidar espaços já existentes”, explica a designer Juliana Lisboa, do Cidade Quintal.

Já em fase de final de pintura, os resultados são visíveis e têm dado o que falar na comunidade. “Onde a gente passa sempre tem pessoas comentando. A comunidade toda está comentando que está muito bonito, deu um visual melhor para a comunidade que estava bem acabadinha”, relata Cristina Santos de Jesus, uma das moradas que teve a fachada de sua casa pintada.

Francisco Xavier/Expurgação

“Na época que o Cidade Quintal veio para a Piedade, como a violência estava imperando aqui, a ideia era mudar a cara do bairro e melhorar, para que os moradores voltassem. Foram feitas algumas reuniões com moradores, o projeto foi apresentado e logo foi aprovado por todos. Agora estamos vendo aí o resultado”, comemora a líder comunitária Claudia Rosana Almeida, presidente do Movimento Comunitário do Bairro Piedade.

“O projeto foi para mudar a cara do bairro de triste para alegre, e está dando certo. Mudou completamente e já tem moradores mexendo em suas casas para voltar”, diz, lembrando que no período de maior violência muitas famílias deixaram suas casas e se mudaram do bairro. Com o fim das tensões, começam a pensar em voltar, encontrando agora novos ares e cores.

Depois da pintura das fachadas, agora o projeto entra na reta final colorindo também o piso, as escadarias, rampas e acessos, além de inserir outros detalhes, como relatos de moradores colhidos durante as visitas de preparação. O Ativar Piedade se atentou a detalhes históricos e culturais da comunidade.

Francisco Xavier/Expurgação

Homenagem à vida

A capela da comunidade, um dos pontos de destaque do percursos, dá acesso a um beco que desce até o terreirinho. O trajeto traz lembranças tristes como da execução dos irmãos Ruan e Damião Reis, que chocou não só a comunidade, como todos que defendem os direitos humanos. Mas a violência não é um tema direto no projeto. A cultura de paz é abordada de forma sutil nas obras, com bandeiras brancas pintadas ao longo de pontos marcados por tragédias e outros detalhes que poderão ser percebidos ao longo do circuito.

Muito perto do local, de frente à singela capela que ganhou novos ares com a pintura, se faz uma homenagem à vida dos moradores. Não à forma como se foram, mas sim como vieram ao mundo muitos filhos da Piedade. Assim, o local ganhou o nome de Memorial Nascente, com uma homenagem a diversas parteiras que viveram no bairro. Nos muros se registram os nomes de diversas dessas mulheres: Rita Ribeiro Pinto, Lorentina Martins, Carmem Leite do Nascimento, Franscisca Wanzeller, Benedita Martins, Mãe Dindinha, Didimar de Jesus e Rosalina Barbosa da Costa.

A ideia foi de Sandra Maria Reis, benzedeira e umas das lideranças do bairro. Celebrando os nascimentos, crianças e bebês do bairro deixaram ali marcas de tinta de seus pezinhos. Sandra pensou que quando crescerem, as crianças perguntarão aos adultos quem foram aquelas mulheres cujos nomes estão pintados perto das marcas de seus pés. Assim, essas mulheres e suas histórias serão lembradas. “É importante o resgate da memória. Com o passar do tempo muitas coisas ficaram para trás, as histórias que temos não são mais contadas”, relata Sandra.

Francisco Xavier/Expurgação

Outra questão interessante que também vai figurar nos muros pintados são as lendas do bairro, como das ruínas, do morador que virava lobisomem, do saci que habitava uma árvore, que aparecerão nos desenhos que estão sendo feitos na fase final. “Ficamos muito felizes de que essas histórias se tornem um pedaço da realidade. Mostra que tivemos nossas fábulas, mesmo que diferentes. Não folheávamos livros, mas tínhamos pessoas que criavam esse mundo imaginário que nos fazia sentir igual a todos”, relata Sandra Reis.

Francisco Xavier/Expurgação

De dentro para dentro

O Ativar Piedade tem uma característica diferente dos outros trabalhos que vêm sendo realizados pelo Cidade Quintal em bairros como Ilha do Príncipe, Vila Rubim, Floresta e Romão. A maioria das obras feitas até hoje buscaram identificar a identidade local e traduzir de dentro para fora da comunidade, usando as cores, desenhos, cultura e história para projetar grandes painéis vistos por quem passa pelos locais. “Esse trabalho na Piedade se dá de dentro para dentro. Como se fosse reavivar essas memórias e potencialidades. O público desse trabalho são os próprios moradores”, diz Juliana, já que o alto do morro não recebe tantas visitas, sendo transitado principalmente por quem mora ali.

Para executar as pinturas, idealizadas e desenhadas por ela e pelo arquiteto e artista visual Renato Pontello, foi montada uma equipe composta por seis jovens da própria comunidade, coordenados pelo artista Ed Brown. Eles receberam um curso e certificado para aprenderem sobre pintura e executarem as obras. “Há algumas casas mais altas em que foi difícil subir para pintar no alto, mas no geral foi tranquilo”, diz o coordenador de pintura. “As experiências são sempre muito boas em trabalhar com o Cidade Quintal. Cada bairro é único, sempre há expectativa de deixar o lugar melhor para a comunidade que vai vivenciar o dia a dia”, afirma.

Francisco Xavier/Expurgação

Gustavo de Oliveira Abreu, de 16 anos, é um dos membros da equipe de pintura que pela primeira vez realiza uma atividade do tipo. “É muito bom participar desse projeto. Está ajudando na renda dentro de casa, da minha família e também ajudando o morro, deixando bonito e mais brilhoso”, ressalta, destacando também a boa relação da equipe, que contou ainda com os jovens Virgínia, Eyvid, Elizeu, Hiago e Pedro. A única ressalva que Gustavo faz sobre o projeto é que alguns moradores lamentam que suas casas não fizeram parte do circuito e não foram pintadas.

Além das pinturas finais, o Ativar Piedade também realizará uma reforma do pátio onde fica o parquinho que será batizado como Pátio Dona Juraci, em homenagem à antiga moradora da casa que existia no local, que passará a abrigar espaço para apresentações de circo e outras artes. A previsão é que o projeto seja concluído até o final de julho. Após o término dos trabalhos do Cidade Quintal, o terreirinho receberá ainda a intervenção de outro coletivo artístico.

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