Sábado, 27 Abril 2024

Reportagem especial'Minha estrela é boa, graças a Deus'

Reportagem especial'Minha estrela é boa, graças a Deus'
Texto: Henrique Alves
Fotos: Leonardo Sá/Porã
 




Antes tomar o trem de Braga para Lisboa com um irmão e dois primos, o filho ouviu da mãe uma única recomendação: cuidado. Francisco acolheu o recado. Em três dias, deixaria uma Portugal apreensiva e às escuras em direção a uma terra longínqua, numa cidade fervilhante, sem conhecer vivalma. Mas estava tranqüilo. Entrou no trem, tomou assento; seis horas depois estaria na capital portuguesa. O embarque estava marcado para dali a dois dias, em 2 de fevereiro de 1945.
 
Não foi uma partida lacrimosa. Houve, é certo, um laivo de tristeza; ninguém extirpa suas raízes assim, sem dor, por mínima que seja. Mas era consenso: não havia escolha. Ou Francisco deixava Portugal, ou fatalmente seria enviado a Timor para conter as forças japonesas, ainda presentes desde a invasão à então colônia quatro anos antes.
 
Embora tenha declarado neutralidade logo ao início da Segunda Grande Guerra, Portugal combatia a ameaça nipônica em Timor, o que significava convocar mancebos em idade de alistamento militar como Francisco e seus 17 anos para defender a pátria. A família soube por um amigo oficial do Exército que o contingente de Braga em breve seria chamado. À época, 
Francisco concluía o liceu e se preparava para o vestibular. Queria ser engenheiro.
 
Ele não queria se meter em uma guerra, tanto por princípio, quanto por compleição física: era um rapaz baixo e mirrado. No entanto sabia que para qualquer jovem ainda com expectativas de serviço militar seria uma guerra intima livrar-se da convocação. 
 
A família batalhou em duas frentes para submeter o inimigo. Primeiro, uma articulação ao Exército. Ao mesmo tempo, um estratagema: uma carta de chamada com garantia de emprego no Rio de Janeiro obtida por Francisco com um amigo do liceu, cujo irmão era diretor da Casa Moreno, estabelecimento na Rua do Ouvidor, no Centro, especializado em aparelhos cirúrgicos. Deu certo.
 
Lisboa amanheceu nublada e fria em 2 de fevereiro de 45. Francisco passara dois dias na capital portuguesa com o irmão e os primos, aguardando o momento da partida para uma jornada imensamente maior que seus imberbes 17 anos.
 
O viço juvenil e a sólida educação familiar talvez não lhe dessem brecha para pensar que se dirigia a um destino ainda baço, distante do porto seguro da família e ao encontro de um mundo que se debatia na convulsão mortífera de mais uma guerra total.
 




Às 15h, Francisco subia as escadas do Serpa Pinto, o grande navio encomendado pela britânica Royal Mail, lançado ao mar em 1914 e que, adquirido em 1940 pela portuguesa Companhia Colonial de Navegação, ganharia da história o epíteto de “Navio Herói”, fazendo de Portugal uma das únicas âncoras de salvação em toda a Europa para os refugiados da guerra - em especial judeus fugidos da barbárie nazista - ao estabelecer uma ligação regular entre Lisboa, Nova Iorque e Rio de Janeiro. 
 
Às 17h, o Serpa Pinto partia do Cais do Sodré – “o mesmo de onde partiram as naus para a descoberta do mundo”, diz, hoje, um tanto solene, esse homem de quase 90 anos, que, como os seus longínquos antepassados, também descobriria o seu.
 
Nascido 1926 em Braga, Francisco Pereira de Azevedo sonhava com a Engenharia, mas venceu na vida no comércio capixaba. Dez anos depois de desembarcar na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, ele redefiniria os conceitos e parâmetros do comércio em Vitória com a Doll Sports e, de quebra, capitanearia por três triunfantes décadas a Rua Sete de Setembro, no Centro, como pólo de moda do Espírito Santo.  
 
Embora aposentado há 30 anos, Francisco ainda se mantém ativo. Dorme tarde - um hábito arraigado, assim como pentear os cabelos brancos para o lado com gel fixador - após ver os jornais de TV ou um bom filme. 
 
Desperta no máximo às 8h. Não toma café, leite ou come pão; mantém há mais de 50 anos uma dieta à base de frutas. Depois sai para dar apoio ao filho, que toca negócios nas áreas de combustíveis e distribuição de pneus. Após a entrevista, realizadas nas manhãs das últimas segunda (1) e terça-feira (2), já tinha reuniões marcadas para 12h. À tarde, conserva o ritmo. Só se permite um privilégio: não ter, como teve a vida toda, obrigação com horários. Agora é livre para fazer o que quer onde quiser.
 
Não toma remédio. “O meu remédio é um vinhozinho tinto. Uma taça após o almoço, francês ou português”, diz, desprendendo um sorriso maroto e deixando entrever o indefectível sotaque das terras de além-mar. A antigas amizades também são profiláticas: sempre às quartas e sábados, encontra os velhos amigos dos tempos do Praia Tênis Clube em algum ponto de Vitória, o sábado pertencendo à Curva da Jurema.
 
Franscisco confrontou mais de 20 dias de viagem no Serpa Pinto. Por sorte, conseguiu um bilhete para camarote, dividido com um argentino vindo da suíça. Habituado a viagens, não sentiria mais esta. Comungou com a maioria dos passageiros um cotidiano de carteados, conversas amenas ou festinhas noturnas contemplado a imensidão oceânica nos decks. Estes, após as 22h, uma vez que não havia lugar para todo mundo, eram cobertos para receber colchonetes. A vida ficava mais interna, os salões fremindo no burburinho dos bate-papos.
 
O sexto dia de viagem seria mais um assim. Nasceu deslumbrante, o céu limpo, o sol claro e o Atlântico esticando-se placidamente até o infinito. “Parecia uma lagoa”. Os corações e almas ensolarados dos passageiros, no entanto, nublaram-se quando de repente o navio parou. Cenhos franziram-se; um silêncio opressor desabou sobre tudo. O dia mal raiara.
 
A reposta, e a confirmação, de todos os medos e angústias emergiria pouco depois, a 50 metros da embarcação. Expressões petrificadas assistiram o submarino alemão aflorar à superfície.



Um barco com três oficiais remou em direção ao navio. “Havia mais de 600 judeus dentro do navio. Se eles realmente tentassem verificar os passaportes, ia ser uma desgraça”, conta Francisco. Os alemães subiram e foram ao encontro do comissariado. Foram eternos 30 minutos de reunião. Ao final saíram todos germanicamente rindo, alegres e satisfeitos, com sacos e mais sacos nas mãos. Uma festa. 
 
Desceram, embarcaram e o submarino deu partida; o navio também. A agonia se desfez em um alívio inefável. O comissariado depois anunciaria o inacreditável motivo do encontro: havia dois tripulantes bastante doentes no submarino e o Serpa Pinto tinha os medicamentos necessários, conteúdo dos sacos que deixaram os alemães tão sorridentes.
 
A viagem seguiu sem sobressaltos. A rota previa paradas na ilha de Curaçau (então colônia holandesa) e em La Guaira (Venezuela) para reabastecimento. Houve paradas também previstas em San Juan, a capital de Porto Rico, e na Martinica, entre outros pontos do Caribe, para reabastecimento de víveres. 
 
Só que uma noite todo o navio reclamou do jantar - um gostinho de óleo invadira os paladares. Averiguou-se e descobriram uma fissura no depósito de óleo, que causara a contaminação da água potável. Uma parada imprevista levou o navio a Havana por três dias para reparar a problema. 
 
 

  


Ao invés de murcharem com o inconveniente, os olhos de Francisco, que deixaram uma Europa escura, brilharam com o que viram na capital cubana: uma cidade feericamente iluminada, intensamente movimentada, carrões rabo de peixe deslizando pelas avenidas, turistas norte-americanos para todo o lado. A viagem atrasou, mas aquele encantamento tropical é uma de suas lembranças mais renitentes.
 
Na manhã de 3 de março, após parar em Fortaleza, Recife e Salvador, o Serpa Pinto finalmente atraca no Rio de Janeiro. Francisco, como não conhecia ninguém, ficou a bordo e almoçou com a tripulação. À tarde, os oficiais o acompanharam até a alfândega e lhe arranjaram um primeiro contato: um taxista, que, coincidência, também era português e sensibilizou-se com a situação do conterrâneo.
 
Francisco pediu: “Quero um hotel no Centro que não seja exagerado e em que possa viver mensalmente”. O taxista levou-o ao Hotel da Harmonia, na Praça XV. Uma coisa que Francisco não esquece nessas primeiras horas de Brasil é o deleite profundo de descansar sobre a cama sem balouçar-se. Descanso necessário. No dia seguinte, começaria de fato uma batalha solitária por sobrevivência na terra brasilis
 
O Brasil era uma terra distante, porém não exatamente estranha a Francisco. Os avós, Tereza e José Marcelino, eram pernambucanos de Caruaru, onde tinham um engenho de açúcar, vínculo que fazia do país assunto recorrente nas conversas em família. A geração seguinte nasceu em Portugal pelos caprichos da vida. 
 
A história de Francisco Azevedo começa com um crime no sertão pernambucano: o assassinato de um dos filhos dos avós. O casal quedou-se inconsolável. O avô escreve uma carta a um amigo em Portugal em que relata o ocorrido e expõe cansaço e desgosto. O amigo responde com uma sugestão: trocar o Brasil por Portugal e seu padrão europeu de vida. “Você vai viver muito feliz aqui”, prometeu.  
 
O aceno de uma vida mais alegre mexeu com eles. Quando deixaram o Brasil, dona Teresa estava grávida de uma menina. Era a mãe de Francisco.
  
Eles compraram uma casa na Avenida Central, uma das principais de Braga e, Francisco recorda, cujas árvores e bondes povoaram uma suave infância. Seus pais se conheceram, ele empresário e ela dona de casa, e em novembro de 1926, nascia o primeiro de quatro filhos, uma moça e três varões: nosso personagem. Aos 3 anos, Francisco viajou para o Brasil com os avós. Ficou um ano no Rio de Janeiro.
 
A escolha pelo Brasil quatorze anos depois não seria acaso. No hotel, se preparou para a primeira missão no novo mundo: encontrar a Casa Moreno e o autor da carta de chamada. A sorte foi que a camareira conhecia o estabelecimento e orientou o hóspede com precisão até a Ouvidor.
 
Foi fácil: estava ao número 53, perto da Praça XV. Era hora do almoço quando encontrou Antônio de Souza, irmão de seu amigo e diretor da Moreno. Foram almoçar na Confeitaria Colombo. Antônio estava visivelmente emocionado, disposto a oferecer toda a ajuda do mundo àquele jovem. “Você Veio para quê?”. “Para trabalhar”. “Então já vou lhe arranjar emprego”.    
 
Na semana seguinte, Francisco já era assistente de vendedor da Casa José Silva, no Centro do Rio, fundada em 1896 e então uma das maiores redes de varejo de moda masculina do país - Antônio falara com um dos diretores da empresa- e com duas semanas de casa, Francisco justificaria a frase que hoje profere com humildade e gratidão: “Minha estrela sempre foi muito boa, graças a Deus”.  
  
 




Na José Silva, Francisco virou Azevedo. Pela manhã, os vendedores cuidavam da renovação dos estoques, enquanto eram substituídos pelos três assistentes no atendimento aos clientes.  Bastaram poucos dias para o novo funcionário se adaptar ao trabalho - e, claro, ao clima muito diferente do tenebroso inverno europeu. Numa certa manhã, por volta das 9h30, um senhor alto, de paletó e chapéu nas mãos, atravessou os umbrais da José Silva.
 
“Às suas ordens, o senhor deseja alguma coisa?”, perguntou o solícito jovem. O homem deu uma risadinha; Azevedo notou ao longe os colegas desesperando-se em gestos e palavras. Sentiu que queriam lhe acudir. Mas como aqueles sinais todos lhe pareciam um caos de símbolos ininteligíveis, ignorou. 
 
“Queria umas gravatas. Separa essas três. Você manda lá para o gabinete do senhor Lemos que vou subir para conversar com ele”. Quando o homem subiu, os demais funcionários cercaram o assistente. “Você tá maluco?”. “Mas por quê?”. “Esse é o senhor Antonio Ceppas. Ele vai te mandar pra rua!”. Ceppas era o diretor-presidente da organização José Silva.
 
Minutos depois Azevedo foi chamado ao “gabinete do senhor Lemos”. Subiu. Ao ver através dos vidros os dois homens gesticulando intensamente, pensou: “Vou pra rua”. “É você meu jovem! Como é o seu nome?”, disse-lhe o manda-chuva. “Muito bem. Gostei da sua atitude. Nós vamos ter aqui muito em breve uma seção de camisas sob medida e você vai para a seção de vendedor”. Francisco passou a ganhar o dobro do salário de assistente e a inveja dos colegas, cujas portas a sorte ignorou mesmo com mais tempo de casa. 


Mas não permaneceria muito tempo ali. Foi para outra grande rede do ramo, a Imperial Modas, e em 1948, assumiu a gerência da recém-inaugurada Étoile Modas, em Copacabana, onde, sublinha, aprendeu muito. Três anos depois buscou desafio maior e virou representante comercial de três grandes empresas de moda feminina, uma do Rio e duas de São Paulo. Como já tinha cristalizado um nome no ramo, obteve triunfo.  
 
Aos sábados, a distração pós-almoço era assistir uma peça de música clássica em apresentações na então Escola Nacional de Música, no Passeio Público. Em um sábado de 1954, viu uma pianista executar magistralmente uma peça de Chopin. Saiu extasiado. Na segunda-feira, muito ao acaso, ela estava na calçada, em frente à vitrine de uma loja, conheceria a futura esposa e mãe de seus três filhos.
 




Capixaba, a senhora Azevedo era professora de música em Vitória e estava no Rio fazendo curso. No ano seguinte, ela o convida a passar o Carnaval em Vitória. Ele aceita e se hospeda no Hotel Tabajara, no Centro de Vitória. Ficou uma semana inteira, conheceu a família e a cidade. A estada só não foi perfeita por um detalhe: esquecera no Rio seu potinho de Gumex, o famigerado gel fixador de cabelo. Deixou o hotel e foi às farmácias do Centro atrás do bendito produto. Nada. 
 
“Não é possível”, disse. Ainda espantado, comentou o episódio com os cunhados durante o jantar. “Nesta cidade falta tudo”, respondeu um deles. Bateu-lhe um estalo na mesma hora; os olhos brilharam como se estivessem em Cuba.
 
No dia seguinte, pegou a companheira e disse, assim, casualmente, que queria comprar um par de meias, um lenço, dar uma volta pelas butiques de Vitorinha. À época havia apenas a Madame Prado na Praça Costa Pereira e a Abigail Castro na Rua Nestor Gomes. Quem procurasse em Vitória um papel de presente, uma caixa de presente, uma simples sacola, não encontraria.
 
Quando visitou novamente os cunhados, comentou o assunto: qual a possibilidade de vir para Vitória e abrir uma loja? A família daria apoio incondicional à mudança, já que, para o Rio, ela não iria. O Carnaval passou, mas, pouco tempo depois, Francisco estava de volta a Vitória, procurando imóveis comerciais. Achou três lojas de teto baixo no Edifício Presidente, na Rua Gama Rosa. “Ninguém queria porque geralmente gostam de teto alto, para fazer mezanino. Mas moda tem que ser aconchegante”, diz. 
 
Em setembro de 1955, a Doll Sports é inaugurada na Gama Rosa. Como novidades seduzem o consumidor, os primeiros dias foram de sensação: a loja oferecia produtos que até então só se viam no Rio ou São Paulo, por mais singelo que parecessem, como papel de presente preto, barbante prateado, etiqueta prateada. 
 
A apresentação das mercadorias também foi um marco. Ainda não havia em Vitória uma butique com os ares modernos de vitrines externas e decoradas, bonecas expostas, produtos arrumados e bem apresentados, iluminação específica, balcões, disposição de armários. Logo nas primeiras semanas, sentiu uma resposta muito favorável dos capixabas.
 
A mudança para a Rua Sete se deu por intermédio de uma negociação com os donos da loja ao lado na Gama Rosa. Técnicos especialistas em conserto de motores, os irmãos gregos Matarangas queriam expandir seus negócios. Quando o edifício Manhães de Andrade, na Rua Sete, ficou pronto, os gregos propuseram uma troca: que Francisco se mudasse para as lojas no térreo do edifício e cedesse as da Gama Rosa para eles. Em troca, os irmãos fariam a instalação elétrica do novo endereço.



O dono da Doll Sports não achou má a ideia e aceitou: em junho de 58, a Doll se instala em seu palco principal, a Rua Sete, onde hoje estão as Óticas do Povo. “Foram 30 anos em Vitória, com muito sucesso, graças a Deus”, festeja hoje. 
 
Um dos segredos do sucesso da Doll Sports eram as viagens. Buenos Aires, por exemplo, era destino frequente, de onde ele trazia muito produto em malharia. Quando ia à Europa, também sempre abastecia a loja. “Tinha que andar. Se você não andar, não tem referência em moda, especialmente feminina”, professa.
 
Francisco ainda preserva o gosto pelas viagens, mas, claro, hoje apenas por espairecimento – a última foi para o Canadá, em 2011. E sempre que retorna ao Velho Mundo, a viagem termina onde seus pais, irmãos e avós estão enterrados. Em Braga, se recolhe em si e ora com fervor por seus entes. Não consegue imaginar o que seria se fosse para Timor; muito menos que um dos mais sanguinolentos conflitos do século XX findaria em poucos meses. Daí a ausência de hesitação quando diz que deixar Portugal foi a melhor escolha.

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