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O despudor do poder

“Nossas contradições constroem nossas armadilhas”, disse o marqueteiro João Santana, em depoimento à Operação Lava Jato. Com essa capciosa afirmação, ele admitiu ser cúmplice do esquema de corrupção que permeia as eleições no Brasil. Só não disse quem criou tamanho esquemão. Ele sabe, nós estamos cansados de saber: quem criou o esquemão foi o despudor do “puder”, como dizem os cabras-da-peste do Nordeste ao se referir ao poder. É um fenômeno que veio de Portugal com as capitanias hereditárias e foi se aprimorando com a ajuda dos ingleses (no século 19) e dos americanos do Norte (desde o século 20).  
 
A quem não está familiarizado com o termo, “marqueteiro” é a denominação dada aos profissionais que coordenam campanhas eleitorais. Misto de publicitário e jornalista, ele concentra tanta informação que chega a obrigar candidatos a dizer coisas em que não acreditam. É o resultado de uma deformação da sociedade. Não é exclusividade brasileira. Marqueteiro é figura global.
 
Em resumo, salvo uma ou outra exceção, o marqueteiro é um empulhador profissional. Simpático. Sorridente. Geralmente bom contador de causos. Bom vivant. Conhecedor de vinhos. Viajado. Gastador de dinheiro. Não é de ostentar nem de gritar “sabe com quem está falando?”, pois sabe que tem o poder de orientar seus “clientes”, encomendar pesquisas de opinião e determinar os temas de campanha. Alguns têm hábitos relativamente simples como freqüentar de rinhas de galo ou apostar em corridas de cavalo. Mas sua “cachaça” é o jogo do poder.
 
Não me sinto à vontade ao citar casos particulares mas nesse caso é preciso apelar para a memória pessoal: quando trabalhei na chamada grande imprensa, em São Paulo, me surpreendi ao saber quanto ganhava um simples redator de campanha política. O sujeito se demitia de seu emprego razoavelmente bem remunerado e, durante quatro ou cinco meses, trabalhava feito um cavalo para ganhar nesse período o equivalente ao que ganharia em um ou dois anos no emprego desprezado. Era um jogo.
 
Se a campanha fosse vitoriosa, ele tinha direito a trabalhar por quatro anos no gabinete do candidato eleito, após o que devia camelar mais uns meses numa nova campanha eleitoral estressante.
 
Se o candidato não fosse eleito, o profissional tinha de voltar ao ex-emprego (se o aceitassem, o que não era comum) ou caitituar um novo cargo em outra empresa. Uma saída bastante comum era passar a operar numa agência de propaganda que tivesse um departamento de marketing político. Das grandes agências, a maioria fazia o jogo para ter acesso a verbas de campanhas publicitárias oficiais. Quem não gostaria de ter a conta da Petrobrás? Do Banco do Brasil? Da Caixa? Do Ministério da Saúde?  
 
Alguns profissionais do marketing político criaram seus próprios escritórios de propaganda eleitoral. Casos de Duda Mendonça e João Santana, para citar os mais notórios. Mas havia nesse metiê caras pouco visíveis como Luiz Gonzalez e Chico Santa Rita, ambos bem-sucedidos nos bastidores das campanhas eleitorais.
 
Eles formaram staffs. Habituaram-se, e treinaram pessoas, a encarar candidatos como produtos que poderiam ser manipulados como mercadorias. Merchandising de políticos. Marquetagem. Manipulation, o que inclui a realização de lobbies junto aos grandes veículos de comunicação.
 
Até a ditadura militar tinha seus marqueteiros, pois não bastava dispor da força das armas. A especialidade marqueteira evoluiu de tal modo que desde os anos 1970 se concluiu que sem TV um candidato não ganha eleição. Daí então…
 
Se bem usada, a máquina televisiva coloca na Presidência da República quem ela quer. Foi assim com Collor, para citar um caso exemplar.
 
Nunca trabalhei dentro de uma campanha eleitoral, mas sei por relatos amigos que os meses de correria, entre abril e outubro, são um sumidouro de dinheiro. Acontecem desvios, mas os recursos doados por empresários não são automaticamente embolsados pelos candidatos, pois há controles nas cúpulas partidárias e é necessário prestar contas aos tribunais eleitorais, que podem ser tão rigorosos quanto os fiscais da Receita Federal, se o quiserem.  
 
Mas toda campanha é voraz ao exigir dinheiro vivo – além de crédito — para bancar despesas com equipes de filmagem, redação, edição e impressão de material de propaganda. E verbas para o transporte do candidato e equipe. Para alimentação. Hospedagem. Em alguns casos, como os de comícios, é preciso contratar duplas sertanejas e a corte que as acompanha.   
 
E mais: há cabos eleitorais que vendem no atacado os votos do seu curral. Exigem dinheiro e depois cobram recompensas — empregos para seus protegidos. É assim que os poderes executivos e legislativos deste país ficam cheios de pessoas despreparadas, que só ocupam cargos comissionados (os famosos CC) porque algum doutor as nomeou.
 
Agora não me perguntem como o marqueteiro-mór pode pagar uma multa de 30 milhões de reais. Não é dinheiro que se ganhe atuando como jornalista, mas seria ingenuidade esperar que o sujeito que fez a vitoriosa campanha de Lula à Presidência tenha resistido à tentação de acumular.
 
O marqueteiro vitorioso fica com o direito de dizer onde serão aplicadas as verbas de publicidade do governo. O marqueteiro vitorioso é um semideus da política. Fica tão poderoso que se torna vulnerável. E acaba caindo nas armadilhas do excesso de poder.
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“Mais cedo ou mais tarde todo político corresponde aos que não confiam nele”
 
Millor Fernandes

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