Segunda, 29 Abril 2024

O futuro da democracia

Reproduzo acima o título do livro do italiano Norberto Bobbio, publicado no Brasil pela Paz e Terra, para induzir a uma reflexão diante do quadro que ora vivemos, divididos entre o exercício do direito cidadão à manifestação pacífica, garantido pela Constituição Federal, a defesa democrática dos direitos individuais no coletivo e o dever do Estado de zelar pelo “governo das leis”.
 
Não proponho nada novo, mas um retorno da sociedade à reflexão em vez da festa. A força já foi demonstrada em junho, o que se tem, agora, é algo ainda impossível de se nominar.
 
Muitas são as possíveis definições, mas, possivelmente, nenhuma delas, nascidas do calor das bombas estourando em nossa frente, no arder da fumaça em nossos olhos ou do pavor das janelas de vidro se estilhaçando nos edifícios históricos, nos servirão no presente e no futuro.
 
Somos, no Brasil, uma democracia adolescente no conjunto da jovem história política da humanidade ocidental.  Penso que, depois do grito coletivo de insatisfação, devemos ir menos aos shoppings centers e mais às bibliotecas ou mesmo às reuniões associativas, já que nos últimos anos aumentamos muito a massa dos escolarizados com nível superior. Se há escolaridade de nível superior, há que se ter mentalidade no mesmo nível.
 
Longe de mim dar lições, mas apenas compartilhar algo como um aprendiz da esperança de que o ser humano possa encontrar caminhos melhores do que aqueles vividos em sua história pregressa, que Hegel definiu como um “imenso matadouro”.
 
Na sua definição mínima de democracia, Bobbio diz que o modelo se caracteriza por um “conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos”. E mesmo as decisões dos indivíduos em nome do coletivo são tomadas com base em regras.
 
Não desejo contar o “final da história”, mas o autor italiano é realista sobre os defeitos da democracia, e não são poucos, mas o “pouco” que enumera de suas virtudes nos convencem de que esse modelo é o resultado de milhares de anos de evolução filosófica, histórica e política do ser humano.
 
Gostaria de mencionar aqui algumas coisas que me saltam aos olhos na análise do futuro da democracia. A primeira delas que esse modelo originou-se na velha e pequena Atenas, na Grécia, com a democracia direta, mas sua evolução para democracia representativa enfrentou o Estado absoluto, visando a, finalmente, dar vida à transparência do poder, ao “poder sem máscaras”. Tirar as máscaras é, portanto, o primeiro gesto que indica as boas intenções para com a democracia.
 
Há que se defender a democracia e seus valores básicos: a tolerância, a não-violência, a renovação gradual da sociedade através do livre debate das ideias e a irmandade (fraternidade). Ao contrapor-se ao Estado autoritário, o conteúdo mínimo do estado democrático não encolheu, diz Norberto Bobbio: “Garantia dos principais direitos de liberdade, existência de vários partidos em concorrência entre si, eleições periódicas a sufrágio universal, decisões coletivas ou concordadas (nas democracias consociativas ou no sistema neocorporativo) ou tomadas com base no princípio da maioria, sempre após livre debate entre as partes ou entre os aliados de uma coalizão de governo”.
 
Aviso aos navegantes: pelas conhecidas dificuldades criadas em função das transformações demográficas e sociais, a democracia direta como modelo para uma sociedade plural é um ideal “perdido” na distante e pequena Atenas, e a democracia representativa não significa, exclusivamente, representação parlamentar, mas não vive sem o Parlamento. Portanto, não há democracia sem partidos políticos.
 
Já na apresentação livro, o professor Marco Aurélio Nogueira, tradutor das obras de Bobbio e de Antonio Gramsci, dá o tom do futuro da democracia: o respeito às normas e às instituições da democracia é o primeiro e mais importante passo para a renovação progressiva da sociedade, inclusive em direção a uma possível reorganização socialista, que defende o partido do governador Renato Casagrande, se esse for o caminho escolhido pela sociedade.
 
Abro parêntesis: se há uma virtude no governador do Espírito Santo (e, obviamente, há muitas, como muitos defeitos, assim como em todos nós), esta reside-se em sua coerência partidária, pois que, uma vez tendo abraçado a causa do chamado socialismo-democrático do PSB, jamais se distanciou da legenda. Isso, por si só, já o coloca em vantagem sobre aprendizes de tiranos, que tanto contribuíram para a construção do quadro de incertezas que aí está, ao mostrarem-se infiéis o tempo inteiro. Fecho parêntesis.
 
Nada mais difícil do que fazer respeitar as regras do jogo democrático, salienta Nogueira, para voltar à análise de Bobbio, sem otimismo ingênuo, sobre as incoerências e dificuldades da democracia real: a sobrevivência das oligarquias e do poder invisível, a revanche dos interesses particulares, a limitação dos espaços políticos, a insuficiente educação dos cidadãos – “promessas não cumpridas” pelos ideais democráticos quando forçadas a se submeter às exigências da prática.
 
Nesses “tempos interessantes”, cabe registrar o conselho de Nogueira, titular de teoria política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP – Universidade Estadual Paulista, com pós-doutorado na Universidade de Roma, sobre os ensaios reunidos por Norberto Bobbio, “escritos para servir ao público que se interessa por política”:
 
“São (...) textos incômodos, para serem lidos e discutidos por todos o que buscam seguir adiante. Não requerem qualquer concordância prévia para serem admirados. São um convite à reflexão engajada e despreconceituosa. Uma aposta incondicional no valor da política e da democracia. Indispensável em épocas de difícil reconstrução e confusas esperanças”.
 
Alerta importante: parece que foi ontem, mas a apresentação de Marco Aurélio Nogueira à edição brasileira do livro de Norberto Bobbio foi escrita há 36 anos, em 1987, quando o Brasil vivia sob as incertezas do futuro, saindo de um regime autoritário militar para um pretenso regime político de plenas liberdades e Estado de Direito, sob o governo civil, “eleito pelo povo, para ser exercido para o povo e pelo povo”, como idealizava Abraham Lincoln, o presidente que impediu a divisão entre Norte e Sul da Confederação de Estados norte-americanos, que se tornaram unidos a partir daí.
 
Andaria a história em círculo? Se sim, qual nossa próxima estação no passado?
 


José Caldas da Costa é jornalista, escritor, licenciado em Geografia. Escreve como colaborador. Contatos:

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