Sexta, 03 Mai 2024

O retrato do rei

 

Em 1965, Pelé e o Santos foram a Vitória jogar com o Santo Antônio e Michel Sily, meu marido e então presidente do clube, foi o mentor da ousada façanha. Grande surpresa, o Santo Antônio não ganhou, mas nem tudo se perdeu – o jogo entrou para os anais da história capixaba porque Pelé nunca mais pôs os sagrados pés no Espírito Santo. Minha interação com o atleta do século foi mínima, por motivo de felicidade: na mesma data nascia meu primeiro filho.
 
Nosso relacionamento com o mais famoso brasileiro acabaria aí, não fosse por um poster onde o Rei posa para a posteridade ao lado de Michel. De sangue e alma libaneses, meu marido é um nômade irriquieto. Em 50 anos de casamento moramos em 10 ruas de Vitória, duas cidades no estado, cinco estados no Brasil e dois nos Estados Unidos. O poster tem nos acompanhado em toda essa jornada, e criou sua própria história.
 
Na mesma época em que moramos em Colúmbia, Estados Unidos, Pelé chegou ao Cosmos e ficou famoso em um país avesso ao futebol. Nosso poster na sala virou atração turística. Michel fazia mestrado em uma universidade e morávamos no campus; era comum estudantes amigos e/ou desconhecidos baterem à nossa porta para ‘ver o Pelé’. E a pergunta era sempre a mesma: “É você nessa foto?” Pergunta redundante, pois com 12 anos entre a foto e o fato, as diferenças eram mínimas.
 
Mas todos achavam difícil acreditar que estavam diante de alguém que conhecia tal celebridade. A universidade tinha grande número de estudantes estrangeiros, e lembro particularmente de um francês olhando a foto como se fosse um ícone milagroso: “Com Pelé o campo parece ser de veludo, e a bola parece ser feita de espuma”. Choramos com ele, para dar apoio moral.
 
Uma filha de Pelé nasceu nos Estados Unidos e se chama Jennifer; minha filha nasceu poucos dias antes, e também se chama Jennifer. Poderia ser coincidência, mas na época o nome era uma epidemia. Acho que é o único nome que teve modismo - veio e passou; todas as Jennifers são mais ou menos da mesma idade. Para reforçar o orçametno eu tomava conta de crianças em casa, e a maioria das meninas se chamavam Jennifer. Uma filha americana não poderia escapar a essa onda.
 
O tempo passou e o poster do Pelé continuou fazendo história. Em Vitória, nossa janela aberta na Marcondes de Souza mostrava aos passantes o poster entronizado na parede da sala. Não foram poucas as pessoas que batiam apenas para perguntar a Michel, “É você com o Pelé?” Também ajudava na localização, “Fácil de achar, é a casa com o poster do Pelé”. Certa vez alguém bateu, era uma pessoa amiga que não víamos há anos, e passando na rua por acaso, viu o poster e nos achou. Era um tempo sem Facebook.
 
Miami não escapou ao fascínio de Pelé. O parque em que fazemos nossas caminhadas matinais pertence à Associação de Futebol Amador de Miami. Tem pista para caminhada, playground, um clube com salão de festas e salão de jogos, área de skate e dois imensos gramados usados por times amadores ou improvisados. As aulas de futebol para crianças estão sempre lotadas. Tem também dois sofisticados campos de basebol, quase sempre vazios. Estamos em Miami, gente.
 
Às vezes Michel para e assiste algum jogo, e conversa puxa conversa, sempre acha um jeito de contar que conheceu Pelé. Pessoalmente. E como nãof alta quem duvide, é comum vê-lo correr em casa para buscar uma foto em tamanho menor do famoso poster, devidamente autografada pelo craque, para mostrar aos incrédulos. Uma vez pararam o jogo, os dois times queriam ver, “Esse é você?” o espanto. Depois de 35 anos, o cara com fartos cabelos ao lado do Pelé tem que ser firme, “Sou eu, claro; olha a dedicatória!”

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