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‘O ensino privado é uma concessão do Estado, não pode induzir políticas públicas’

Dra. Gilda Cardoso pede muita cautela às famílias ao discutirem o envio dos filhos à escola, seja pública ou privada

Reprodução/Redes sociais

“Eu lamento muito, porque nós estamos no pior dos dois mundos, a ameaça é grande para o retorno das aulas. Eu insisto para que os pais sejam muito cautelosos nessa discussão sobre a segurança no envio dos seus filhos às escolas, tanto as particulares quanto as públicas”.

O pedido é da professora-doutora Gilda Cardoso de Araújo, coordenadora do Laboratório de Gestão em Educação Básica do Espírito Santo, vinculado à Universidade Federal do Espírito Santo (Lagebes/Ufes). 


“Não é o momento de retorno, nem para a escola pública nem para a escola particular. As escolas têm a mesma natureza, compartilham dos mesmos professores e, além disso, é preciso lembrar que as escolas particulares não podem se arvorar na condição de definir políticas públicas, porque é o contrário, elas é que são uma concessão para funcionar, porque a educação é dever do Estado, por isso existe autorização e credenciamento, seja do governo, seja dos municípios que têm conselho, nas condições em que o Estado estabelece”, enfatiza.

A rede privada de ensino, contextualiza a educadora, representa apenas 20% das matrículas da educação básica – educação infantil e ensinos fundamental e médio – mas, mesmo sendo minoritária no atendimento à população capixaba, tem influenciado em demasia as decisões de governo do Espírito Santo no campo da Educação durante toda a pandemia de Covid-19.

“As instituições particulares, o Sinepe [Sindicato das Empresas Particulares de Ensino do Espírito Santo] vem sim pressionando fortemente o governo do Estado pelo retorno das aulas presenciais”, afirma a coordenadora do Lagebes. Pressão que tem intensificado com a iminência de promulgação da Lei nº 11.144, de autoria do deputado Hudson Leal (Republicanos) e aprovada com 26 votos na Assembleia Legislativa no final de junho, mas que foi suspensa liminarmente pelo Tribunal de Justiça nesta terça-feira (7), por decisão do desembargador Jorge Henrique Valle dos Santos.

“Com a promulgação dessa lei que o Renato Casagrande não sancionou nem vetou, ele simplesmente deixou que o Legislativo aprovasse, a pressão das instituições particulares de ensino foi intensificada, porque o retorno presencial significa que elas não precisarão aplicar os descontos previstos nessa lei”, explana Gilda.

Muito além da promulgação ou não do desconto escalonado, no entanto, a educadora observa um processo crescente de desmatrícula nos últimos meses, especialmente na educação infantil, com muita força também no ensino fundamental e um pouco menos intenso no ensino médio. Sendo esse um fenômeno que tem forçado o Sinepe a exigir retorno o mais rápido possível das aulas presenciais e também uma continuidade da transmissão do conteúdo relativo ao ano letivo de 2020.

Ambiente educativo
O superintendente do Sinepe, Geraldo Diório, pontua Gilda, tem aparecido publicamente, com muita frequência, “mostrando escolas preparadas, entre aspas, pra receber os alunos com aquelas medidas que são básicas, que não surtem efeito nenhum: distanciamento de mesinhas e cadeiras, álcool em gel, tapetes sanitizantes, mas que não levam em conta a dimensão dos aspectos pedagógicos, a peculiaridade da escola”, critica. “A escola não é um comércio, não vende mercadoria, portanto a escola tem que ser organizada de uma forma que ela não signifique, não implique em um lugar de confinamento”, explica.

“O ambiente educativo, para que a aprendizagem ocorra de forma efetiva, é de troca, de afeto, de abraço, de toque, de compartilhamento de material, que é inevitável, principalmente entre crianças pequenas… vai ser muito difícil ter uma quantidade de adultos suficiente, embora o número de alunos esteja reduzido para dar conta do movimento das crianças, do uso de máscara correto… e mesmo que isso dê certo, nenhuma criança vai se sentir bem ficando quatro, cinco horas num ambiente extremamente restritivo”, argumenta.

“A escola já era restritiva, mas tinha momentos prazerosos, como o recreio, a própria interação de professores e alunos na sala de aula, algumas escolas trabalhavam na forma de círculos, de projetos etc., agora imagina uma criança, um adolescente numa sala de aula com máscara, uma filmadora pra transmitir pras crianças que estão em casa, sem poder se mexer, sem poder interagir com um aluno, com medo de pegar um lápis que cai no chão, como os professores vão supervisionar os cadernos, toda hora passando álcool… esse é um ambiente de medo, de insegurança, que nenhum pai, nenhuma mãe, nenhum responsável quer para seu filho nesse momento”, explana.

“Eu vejo esse movimento com muito espanto. Alguns estados têm atendido a esse clamor privatista, esse clamor pelo dinheiro acima das vidas, e eu espero que o Espírito Santo não o faça, assim como São Paulo não fez. Eu espero que haja uma política do Estado de retorno às aulas, mas que não faça distinção entre escolas públicas e particulares”, pede.

Irresponsabilidade
De opinião semelhante é a professora Claudia Maria Mendes Gontijo, pró-reitora de Graduação da Ufes e representante da universidade no Grupo de Trabalho (GT) criado pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu) para elaborar uma portaria em conjunto com a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) com “as diretrizes para adoção de medidas administrativas e de segurança sanitária pelos gestores das instituições de ensino no retorno às aulas presenciais”. 
“Beira a irresponsabilidade as pessoas quererem formar aglomerações dentro de escolas. Nem na Ufes eu entendo ser possível retornar este ano! E olha que são adultos, imagine as crianças e adolescentes!”, afirma. “Acima de tudo tem que estar a saúde e a vida das pessoas. A gente tem que preservar a vida acima de qualquer outro interesse”, assevera.

E até que o retorno das aulas presenciais seja realmente possível, com a segurança necessária para evitar surtos – como previsto pela Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) –, Claudia desaprova a obrigatoriedade de contar o conteúdo transmitido em aulas remotas como dia letivo.

“A Sedu tentar realizar atividades remotas numa perspectiva de criar uma rede de apoio para aqueles que puderem, eu acho positivo. Se as secretarias conseguem chegar até as famílias de alguma maneira, não só com alimentos [as cestas básicas enviadas às famílias mais vulneráveis, que ficaram sem a merenda escolar], mas também livros e algum tipo de atividade que as crianças possam fazer de forma autônoma, seria perfeito, porque mantém os laços da criança com a vida escolar. Mas dentro de um contexto que a gente saiba que grande parte dos pais são analfabetos ou de baixa escolaridade, ou estão tendo que trabalhar para sobreviver… enfim, com tantas crianças excluídas da possibilidade de estudar efetivamente, considerar essas atividades como dia letivo é muito complicado”, pondera. 
“Estão com muita pressa, querendo fazer coisas que não são possíveis. Depois que isso tudo passar, ano que vem pode-se encontrar outras formas, as crianças têm capacidade grande de se recriar em processos adversos. A gente vai conseguir achar alternativas, o que não pode é querer impor determinadas questões que não são possíveis num momento como esse”, aduz.

Na quarta reunião do GT, realizada na última quinta-feira (2), o representante do Sindicato dos Trabalhadores e Servidores Públicos do Espírito Santo (Sindipúblicos), Tadeu Guerzet, que é presidente da entidade e trabalhador da educação, também se posicionou contrário ao retorno das aulas presenciais antes da liberação de uma vacina contra o novo coronavírus.

“Temos que garantir o acesso dos alunos aos conteúdos disciplinares. Mas o momento não se vislumbra nenhuma abertura de escolas, nem para os profissionais da educação, nem para os alunos. É um ambiente bem diferenciado, onde o convívio e o contato físico sempre foram intensos, não será com protocolos que isso irá resolver. No nosso entendimento, as aulas presenciais só terão segurança quando tivermos vacina. Como pai, não tenho segurança em encaminhar minhas filhas às escolas. E como trabalhador da educação, também entendo que estaríamos correndo muito risco” ressaltou.

Organização Mundial da Saúde

Também defensor do retorno das aulas presenciais apenas sob condições de extrema segurança e considerando a possibilidade desse retorno somente em 2021, o deputado estadual Sergio Majeski (PSB), que é professor e mestre em Educação pela Ufes, propôs o Projeto de Lei 382/2020, que estabelece que as escolas públicas estaduais só retornem mediante cumprimento de todos os critérios estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), organizados em seis pré-requisitos a serem garantidos pelo governo do Estado. 
“São mais de 400 escolas localizadas em todos os municípios do Espírito Santo. Ao longo dos mandatos já fui conhecer de perto a realidade de mais de 270 unidades. É muita gente envolvida no dia a dia escolar. Acreditamos que o retorno às atividades presenciais sem o controle da pandemia colocará em risco muitas famílias. A possibilidade de contaminação não ocorre só dentro da escola, mas também no percurso. Parte significativa dos alunos e dos profissionais da educação depende do transporte público e escolar. Não é possível arriscar”, considera o parlamentar.

Ao todo são seis pré-requisitos e 35 orientações observados pela OMS para resguardar os membros da Comunidade Escolar, nos mesmos moldes que vêm ocorrendo em países desenvolvidos que passaram pelo pico da pandemia.

Alguns deles estipulam que o Sistema de Saúde precisa conseguir detectar, testar, isolar e tratar todos os casos, além de rastrear todos os contatos; implantação de triagem diária da temperatura corporal e histórico de febre ou febre nas últimas 24 horas, na entrada do prédio para todos os funcionários, estudantes e visitantes; e garantia de que os alunos que tiveram contato com um caso da Covid-19 fiquem em casa por 14 dias.

Protocolos de testagem
A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Ufes e integrante do Núcleo Interinstitucional de Estudos Epidemiológicos (NIEE), que subsidia cientificamente a Sala de Situação de Emergência em Saúde Pública do governo do Estado, considera o PL um grande avanço e complementa que o Estado deve estabelecer protocolos claros de testagem para professores, servidores e estudantes.

“A estratégia da OMS é de testar para identificar os IGMs, os anticorpos, quando a pessoa está doente pré-sintomática, e poder fazer o isolamento dessas pessoas. Testar, tratar, isolar e rastrear. É muito importante para isso ter um protocolo. Os testes serão de sete em sete dias? De quinze em quinze dias? Os alunos vão ser por amostragem? É preciso definir isso”, defende.

Defensora do retorno das aulas presenciais somente após a disponibilização de vacinas para a população, Ethel lembra das condições reais de implementação dos protocolos sanitários da OMS no universo tão diversificado da educação capixaba. “Os protocolos precisam refletir de forma explícita a segurança de todos, trabalhadores e estudantes. Mas ainda que algumas intuições públicas tenham condições, por suas características, de aderir a esses protocolos de biossegurança de forma mais completa, a maioria das escolas públicas, por problemas históricos de infraestrutura dentre outros, terão mais dificuldade”, adverte.

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