A deputada estadual e Procuradora Especial da Mulher da Assembleia Legislativa, Iriny Lopes (PT), encaminhou ofício para o procurador-geral de Justiça, Francisco Martínez Berdeal, e para o corregedor-geral, Gustavo Modenesi Martins da Cunha, pedindo providências quanto à atitude do promotor de Justiça Luiz Antônio de Souza Silva. Ele foi denunciado ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e ao Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por ter cometido “violência institucional” contra uma mulher durante audiência na Vara da Família de Vitória. A deputada solicitou que o MPES apure o caso e aplique as sanções disciplinares cabíveis. O caso ganhou repercussão nacional após matéria publicada com exclusividade por Século Diário.
A parlamentar classificou a conduta do promotor como “inadequada e extremamente prejudicial”. “Conforme amplamente noticiado pelos veículos de comunicação, durante a mencionada audiência, o promotor Luiz Antônio de Souza Silva proferiu palavras cruéis e insensíveis que impactaram negativamente a uma vítima de violência doméstica, ao dizer que a vítima deveria ‘aquietar o facho’ e voltar a morar com o marido agressor”, apontam os documentos.
Iriny destaca que a vítima suportou violência doméstica por longos anos até finalmente tomar coragem para pedir uma medida protetiva e poder se afastar de seu agressor. “Ao aconselhar esta vítima a retornar à convivência com o marido agressor, o promotor demonstrou total desprezo pela gravidade da situação em questão e pelas leis de proteção às vítimas de violência doméstica que autorizaram a proteção estatal concedida em favor dela”.
O texto acrescenta que “essa conduta repudiável vai de encontro aos princípios de atendimento humanizado e respeito às vítimas, além de ser contrária a ao papel primordial do Ministério Público, que é promover justiça, garantir a aplicação das leis e defender os direitos humanos”. A deputada salienta, ainda, que o comportamento do promotor, “por meio de suas palavras desnecessárias e invasivas”, configura como violência institucional, nos termos da Lei nº 14.321, de 31 de março de 2022.
“Espero, sinceramente, que o Ministério Público de nosso estado aborde essa questão com a seriedade e a urgência que ela merece, a fim de não permitir que o Ministério Público de nosso estado permaneça indiferente perante um comportamento machista que apenas contribui para a perpetuação do ciclo de violência contra as mulheres”, finalizou a deputada.
A vereadora de Vitória Karla Coser (PT), que preside a Comissão de Defesa e Promoção dos Direitos das Mulheres da Câmara Municipal, também encaminhou ofício ao procurador geral do MPES, solicitando informações sobre as providências a serem tomadas. Ela encaminhou um ofício para Iriny Lopes colocando a comissão à disposição para trabalhar em conjunto com a Procuradoria da Assembleia Legislativa,” naquilo que for possível e necessário, sempre em atenção à defesa dos direitos das mulheres em todos os espaços”.
O caso
A vítima, Alessandra de Souza Silva, solicitava pensão alimentícia do ex-marido, do qual ela foi vítima de agressões constantes ao longo dos vinte anos em que viveram juntos e contra quem ela detém Medida Protetiva de Urgência (MPU), devido à gravidade das violências, inclusive com tentativa de feminicídio. Conforme áudio gravado no momento da audiência e anexado à denúncia, Luiz Antônio de Souza Silva “insinuou, de modo jocoso”, que a mulher, por ter cinco filhos com o agressor, deveria voltar a morar com ele. “Cinco filhos juntos. Vocês deveriam aquietar o facho e ficar o resto da vida juntos. Quem tem cinco filhos juntos deveria aquietar o facho. Tá? É isso aí, tá?”.
Presentes na audiência estavam, além do promotor, a vítima, o ex-marido e agressor, Carlos Augusto de Aguiar, a defensora pública Julia Mansour Siqueira e a juíza Clesia dos Santos Barros. Em discussão estava o pedido de pensão alimentícia e a regulação de guarda e convivência das cinco filhas, todas menores de idade.
“É, porque todo mundo é livre. Mas olha a consequência…os filhos depois crescem, gente. Os filhos precisam. Então precisa do ambiente mais…porque assim, a questão única não é só o dinheiro, a questão é o emocional dos filhos, é os pais estarem bem”, prosseguiu o promotor, alegando o bem-estar das crianças, mas desconsiderando o histórico de graves violências cometidas pelo ex-marido contra a mãe de suas filhas.
A denúncia foi encaminhada pelo programa de extensão e pesquisa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Fordan: cultura no enfrentamento às violências (Fordan/Ufes) à presidente do CNDH, Marina Dermmam, e ao presidente do CNMP, Antônio Augusto Brandão de Aras.
O documento narra as informações colhidas durante acolhimento de Alessandra na sede do Fordan, no campus de Goiabeiras. “A Sra. Alessandra afirma que o promotor de Justiça Dr. Luiz Antônio constrangeu-a, fazendo comentários sobre a quantidade de filhos que ela tem, e que ela deveria ‘aquietar o facho e ficar o resto da vida junto’ com o ex-marido (de quem ela tem a MPU). Ele fez também comentários sobre a idade dela e outras coisas”.
A denúncia menciona a Lei nº 14.188/2021, que tipifica condutas que podem ser classificadas como violência psicológica, uma das várias formas de violência contra a mulher, elencadas na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), e uma das violências que Alessandra sofreu do ex-marido ao longo das duas décadas do casamento, e também do promotor, na citada audiência na Vara da Família.
“Eu morei 20 anos com meu marido, o que passei foi ser humilhada, violentada, sofri abuso psicológico”, relatou ao Fordan. “Chegar para fazer audiência, e lá virar chacota para promotor, aí a gente sai de lá como lixo, né? Fica humilhada mais ainda, a gente pegar dá uma denúncia, a gente vira chacota, e aí o que acontece, a gente fica calada e volta para casa”, acrescentou.
O documento também pontua a necessidade de que os presidentes do CNDH e CNPM considerem a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância ao avaliar o caso, visto que “as mulheres negras são as mais vulneráveis a essas violações” e a vítima, conforme sua autodeclaração durante o acolhimento do Fordan, é “mulher preta e periférica”, bem como suas filhas, todas crianças negras.
Assinado pela professora da Ufes Rosely Pires, coordenadora-geral do Fordan, e pela advogada Cristiana Ribeiro da Silva, integrante da equipe jurídica do programa, o documento pede o “acompanhamento ativo” dos trâmites da denúncia, garantido que “procedimentos e coletas de provas sejam realizados de forma célere e efetiva, visando a aplicação correta da lei, evitando a impunidade”.
Vitória
Apesar da violência institucional denunciada, Alessandra saiu da audiência, realizada no dia 20 de março, com decisão da juíza pelo direito da pensão alimentícia no valor mensal correspondente a 50% do salário-mínimo, sendo 10% para cada filha, além da determinação de que “o genitor arcará ainda com 50% do material escolar das filhas e dos medicamentos não fornecidos pelo SUS [Sistema Único de Saúde], mediante apresentação da nota fiscal e receita”. A sentença, descrita na ata da audiência, define ainda pela “residência das [filhas] menores na casa materna” e pelo “termo de guarda compartilhada, com convivência livre, mediante prévio ajuste com a genitora”.
Inicialmente acolhida pelo Fordan, hoje ela também é uma das integrantes da Equipe de Saúde, atendendo outras mulheres em situação de violência acompanhadas pelo programa, com seu trabalho de massoterapeuta, que também exerce de forma profissional. “Quando a gente toma coragem e atitude, consegue as coisas”, disse, em entrevista ao podcast Aplicativo Fordan, em novembro passado. “Você não quer ficar com ele? Procura uma casa de apoio, pode voltar a estudar”, aconselhou, dirigindo-se a mulheres que vivem em situação de violência doméstica. “Hoje eu sou independente, graças a Deus”, afirma.