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‘Os atingidos também querem segurança jurídica’, afirma defensor público

Rafael Portella desmente a ‘falácia do fechamento do cadastro’ requerida pela Renova em troca das indenizações

Eliane Balke

Uma falácia que foi vendida pela Samarco, Vale e BHP. É assim que o defensor público Rafael Portella define a reivindicação de fechamento do cadastro de atingidos feita pelas empresas responsáveis pelo maior crime socioambiental da história do Brasil e sua Fundação Renova. 

O pedido foi judicializado e, segundo relatos de alguns atingidos capixabas e mineiros compartilhados em áudios nas redes sociais dos impactados pelo crime, alguns dos quais Século Diário teve acesso, o próprio juiz da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte/MG, responsável pelo julgamento do pedido, chegou a realizar uma reunião em particular com um pequeno grupo de atingidos, onde afirmou que o fechamento do cadastro é uma medida necessária para o pagamento das indenizações já definidas aos atingidos reconhecidos.

Coordenador do Núcleo Especializado de Defesa Agropecuária e Moradia da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo (Nudam/DPES) e atuando diretamente no território capixaba impactado pelo crime nos últimos quatro anos e meio, Rafael Portella afirma que a segurança jurídica é um direito também dos atingidos.

“Os atingidos também querem segurança jurídica. Não foi por outro motivo que derrubamos a cláusula de quitação geral”, afirma, referindo-se a uma cláusula ilegal imposta pela Fundação Renova nos contratos de indenização assinados pelos atingidos no início do processo indenizatório. “Hoje o atingido que foi indenizado como pescador, pode buscar sua indenização como agricultor”, exemplifica.

A discussão sobre encerramento de cadastro, lembra, começou na segunda campanha de cadastramento. “Se tivéssemos encerrado naquela época, teríamos essa quantidade de gente no litoral brigando ainda por seus direitos? A resposta é não. Porque esses estudos ainda estão sendo feitos. Estamos falando de um desastre único no mundo”, explana, citando também o acordo celebrado com os camaroeiros de Vitória no final de 2019.

Fechar o cadastro não é garantia de que as indenizações e auxílios financeiros emergenciais (AFEs) em atraso irão ser pagos, adverte o defensor. “Fechá-lo só vai impedir que novos atingidos entrem no processo. Quem já teve suas análises aprovadas, precisa receber”, salienta.

Monopólio da informação

Em uma transmissão ao vivo realizada na última quinta-feira (14), Rafael Portella e o procurador da República em Linhares Paulo Henrique Camargos Trazzi, que também atua diretamente na defesa dos atingidos desde o rompimento da Barragem de Fundão, em cinco de novembro de 2015, procuraram esclarecer os boatos que “têm sido vendidos” em favor do fechamento do cadastro e que se alastraram durante esse período de distanciamento social em função da pandemia de coronavírus, que impede a realização das periódicas reuniões e assembleia nas comunidades.

“Qual é o dilema do desastre do Rio Doce? É que o sistema criado, sem a participação dos atingidos e das instituições de Justiça, monopolizou a informação em uma entidade, que é a Fundação Renova”, critica Rafael. “A gente sabe que o cadastro foi mal feito. Isso é unânime. Não há um atingido satisfeito. A gente sabe que a terceirizada contratada pra fazer, a Synergia, cometeu vários equívocos metodológicos. Então, por que encerrar o cadastro?”, questiona.

“O cadastro não se prontificou a mapear nenhum dano à saúde da população atingida. Nesses quatro anos e meio, não foi feito nada sobre isso no Espírito Santo”, denuncia, destacando que “a Fundação Renova é uma instituição que tem o seu conselho curador gerido pelas empresas” e que “a participação dos atingidos foi deixada pra depois”.

Assessorias técnicas

“As falhas da Renova com a demora para garantir o pagamento das indenizações não podem se voltar contra os atingidos pra que eles tenham que abrir mão de uma discussão mais profunda sobre cadastro pra ter direito à indenização”, afirmou o procurador da República, enfatizando a importância das assessorias técnicas, já que a falácia vendida pelas empresas também aventam a suposta necessidade de extinguir as assessorias técnicas para que os pagamentos das indenizações sejam feitos.

As Assessorias, explicou Paulo Henrique, podem ajudar nas indenizações e também trabalhar em outras questões relativas à reparação integral dos danos oriundos do crime.

“O dano não é só uma questão que gera a indenização. A gente tem que voltar a ter um peixe de qualidade, uma água de qualidade, um solo de qualidade, um modo de vida tradicional. A gente tem que poder voltar a mergulhar no Rio Doce, no mar capixaba, a produzir o alimento pra subsistência ou pra venda, as pessoas precisam voltar a ter confiança no alimento produzido ou no peixe pescado, precisam voltar a ter seu comércio funcionando de maneira normal e adequada, com o turismo e todas as atividades tradicionais”, descreveu. “A recuperação ambiental é fundamental para que a gente possa seguir com aquilo que nós sempre defendemos, que é o direito à reparação integral”, asseverou.

“Vamos nos unir, porque coletivamente a gente tende a ganhar mais do que disputando com essas grandes empresas de maneira individual e separada”, esclareceu, referindo-se ao equívoco que está se multiplicando ao longo da Bacia do Rio Doce de formação de comissões paralelas de atingidos voltadas a defender o fechamento dos cadastros e o fim das assessorias técnicas.

“O direto de assessoria técnica é o direito de provar os danos que estão sendo sentidos pelas comunidades. A partir disso, a gente traz paridade à mesa de negociação”, ressalta Rafael Portella, mencionando os vários casos de atingidos que, sem recursos, podem “se socorrer da assessoria técnica pra complementar um estudo, pra fazer uma avaliação mais especifica dos seus danos, pra que possa coletivamente trabalhar as demandas da coletividade”.

Antes de “vender a falácia” do fim das assessorias, a Samarco/Vale-BHP e a Renova judicializaram um questionamento sobre o valor dos orçamentos de todas as assessorias escolhidas pelos atingidos no Espírito Santo e em Minas Gerais. Com respaldo do mesmo juiz, conseguiram forçar essa redução dos valores. “Todas as entidades contratadas fizeram readequação de seus planos, fizeram novas propostas, que foram protocoladas sexta-feira passada [8]. Esperamos novidades na próxima semana, pra finalmente contratá-las e colocá-las em campo”, informou o defensor.

Estudos técnicos

Além de encontrar novas estratégias para manter a mobilização e a união das comissões originais de atingidos e das comunidades, em tempos de pandemia e isolamento social, e da contratação das assessorias técnica, Rafael e Paulo Henrique ressaltaram a importância dos estudos ambientais feitos pela Rede Rio Doce Mar, formada por diversas universidades públicas do Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, bem como dos peritos dos Ministério Público Federal.

“A Rede Rio Doce Mar publicou suas primeiras conclusões. É um marco a ser comemorado! [Os resultados dos estudos] serão usados pelo sistema de governança para preservar direitos”, anuncia Rafael.

São dados científicos, explica, que permitirão aos atingidos e aos órgãos de justiça que os assistem, a “sair da ótica de listagens”, pois “o que resolve é trabalho de campo, é conseguir saber quem é e quem não é atingido”.

“Se a gente não tomar cuidado e amadurecer a nossa demanda, não saberemos o que vai nos aguardar depois. Vamos supor que uma negociação com a Fundação Renova não dê certo. Porque hoje você negocia com o referencial dela, de estudos e levantamentos. E se não der certo? Você vai à Justiça. Você vai levar que informação? Qual documento? Qual é a sua prova? A sua estratégia? O autorreconhecimento sozinho é muito frágil”, alerta.

Por outro lado, compara, é possível alcançar resultados utilizando dados técnicos consistentes, em conjunto com “processos de autorreconhecimento coletivo”, que unem a comunidade, as lideranças e as associações, “estabelecendo os grupos que realmente precisam ser indenizados”. Foi o que aconteceu com os camaroeiros de Vitória e com os quilombolas de Degredo, em Linhares, exemplificou.

Com mais estratégias como essas, afirma, “a gente nada mais está falando do que o encerramento de cadastro pra grupos específicos, porque eles já foram mapeados”, explica. “Se a gente indenizasse o comércio de Povoação, por exemplo, ou os pescadores de Maria Ortiz, ou as marisqueiras de São Mateus, a gente poderia dizer que aquele trabalho foi finalizado. Mas não tivemos ainda a oportunidade de fazer uma discussão tão aprofundada”, diz.

“Não precisamos fechar o cadastro nem precisamos abrir mão das assessorias técnicas para que as indenizações saiam”, reiterou, ao final da transmissão, o procurador Paulo Henrique. “Precisamos dar nomes aos bois”, suscitou. “A demora para o acesso a muitos direitos tem que gerar responsabilização em quem gera essa demora. A gente sabe quem está negando direito aos atingidos. E a gente sabe quem está trabalhando para que os atingidos recebam os seus direitos. Vamos cobrar das pessoas que estão provocando o atraso dos direitos e vamos apoiar as pessoas que trabalham ao nosso lado pra garantir que esses direitos sejam efetivados”, conclamou.

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