Domingo, 28 Abril 2024

De minha janela veria o mar

 

Tudo que somos, sentimos, fazemos e pensamos, se materializa pela mágica de um pequeno grupo de 25 signos chamados letras, que se unem e desunem, variando de posição e alinhamento para formar as cerca de 400 mil palavras que nos mantêm conectados uns com os outros.  As variações são infinitas, podemos criar novas palavras para significar qualquer coisa ou coisa nenhuma. Por exemplo, abregina – que pode muito bem indicar os frutos das abreginosas.  Por que não?
 
As variações verbais dão um show à parte, bastando a alteração de apenas uma letra para mudar uma vida, ou a qualidade dessa vida. Quando digo que de minha janela vejo o mar,  está dito e explicado que tenho uma boa janela e que gosto de ver o mar.  Também indica que enxergo, e que tenho um lugar com uma janela. Mas se disser que de minha janela eu via o mar, tudo muda para pior. Via mas não vejo, porque acabou a janela, porque acabou a visão, ou porque algum monstrengo de cimento armado se ergueu entre minha janela e o mar que já não me pertence.
 
Mudo outra vez o tempo do verbo, e o futuro fica risonho - da minha janela verei o mar, pode significar que vão demolir o monstrengo, ou estou mudando para outra janela, onde terei a sorte de ver o mar...  até que algum outro impedimento leve o verbo ao passado. Mas se digo  – como insinua o título aí em cima - que de minha janela eu veria o mar, o verbo assume um sentido dúbio, se intrometendo sem complacência entre minha janela e uma vista privilegiada. Uma pequena dança, aparentemente inconsequente, entre cinco letrinhas, adicionando  ou rejeitando mais duas, faz toda a diferença na qualidade da minha visão e no status da minha janela.
 
Pois nem mesmo o mar é o limite. Veria... se houvesse mar. Sem notificação ou aviso prévio, a nova administração eliminou o mar do mapa da cidade, concluindo que está tão poluído que já não tem qualquer utilidade para a população. Já não se pesca, que tem mais entulhos do que  peixes; já não se vai à praia, ou ao banho de mar, como diziam antigamente, que tem mais E-coli que areia. A maresia danifica os meios de transporte e as ressacas destroem as vias públicas adjacentes. Veria, se o mar não tivesse secado, num fenômeno oposto às previsões de astrólogas de que o oceano vai virar mar.
 
Veria... se houvesse janela. Os prédios modernos não têm janelas, porque ninguém as usa. Os prédios são tão grudados uns nos outros que já nada há para ver lá fora, inclusive o mar,  eliminado do contexto para contenção de despesas com o paisagismo da orla. Os ecologistas, como sempre, refutam essa hipótese, alegando interesses econômicos escusos. Eliminando as janelas, elimina-se também a necessidade de deixar espaços entre as construções, permitindo a adição de mais unidades. Ou apenas anoiteceu e faltou luz na cidade – outra vez – e o o mar foi engolfado na escuridão. Nada se vê. Ou fechei minha janela e fui dormir.

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Segunda, 29 Abril 2024

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