Sábado, 27 Abril 2024

E as criancinhas, Pelé?

 

Pelé, o primeiro milionário do futebol brasileiro, ficou tão emocionado ao fazer o milésimo gol de sua carreira, há 43 anos, que caiu no choro e balbuciou uma frase pedindo que não se esquecessem das criancinhas. Naturalmente, ele pensava nas criancinhas pobres e desamparadas do Brasil dos anos 1970.
 
Naquele momento, o adolescente Zico tomava biotônico fontoura num subúrbio carioca e o genial Romário usava fraldas; os Ronaldos & Neymar ainda estavam para nascer, mas àquela altura ninguém seria capaz de imaginar as transformações que fariam do futebol um esporte global e cada vez mais milionariamente fora do alcance da maioria dos súditos do Rei do Futebol.
 
Como sede da Copa do Mundo de 2014, o Brasil caminha para fechar uma síntese inimaginável nos áureos tempos de Pelé. Palco e platéia de um encontro de classes ascendentes de várias origens, os estádios e arenas milionários construídos ou reformados para o megaevento da Fifa vão juntar nos mesmos espaços dois extremos do processo econômico -- ambos dispostos a ser “protagonistas” dos espetáculos.
 
No gramado, estarão os atletas formados nas bases dos clubes após “peneiras” supervisionadas por olheiros de empresários. Nas cadeiras, os membros das elites capazes de pagar ingressos de ópera para ver cantar o pau na canela dos adversários. O que era uma diversão popular nascida nos subúrbios torna-se um lazer de abonados. Um lazer com componentes homicidas em que não se descarta a possibilidade de a violência rolar pesadamente também nas arquibancadas.
 
Dias atrás, numa entrevista ao jornalista Juca Kfouri (ESPN Brasil), o sociólogo Mauricio Murad observou que o futebol está tomado pelo mesmo fenômeno visto na política e na economia: a corrupção sendo exercida por quadrilhas sem ética nem compostura. O epicentro do fenômeno são os clubes, transformados em reféns de empresários detentores do passe de jogadores-mercadorias de um jogo internacional cotado em euros e dólares.   
 
Nas asas dos espetáculos patrocinados por verbas públicas (BB, Banrisul, Petrobras, Eletrobrás) e altos investimentos privados (Coca, Itaú, VW, Vivo, Ambev, Fiat entre outros de alcance regional), a alegria esportiva rima com a hipocrisia da vida corporativa.   
 
“Totalmente focado na Copa”, o Brasil está investindo mais de R$ 30 bilhões em obras para receber cerca de 300 mil a 600 mil turistas estrangeiros atraídos por esse evento quadrianual. São obras vistosas, grandes fachadas, com baixa capacidade de atendimento às necessidades fundamentais da maioria do povo (200 milhões de pessoas), a quem restará a opção civilizada de ligar a TV em casa ou encostar no telão de um boteco, numa aliança global com pelo menos dois bilhões de pessoas que estarão ligados na mesma emoção ao redor do mundo.
 
LEMBRETE DE OCASIÃO
 
“Dedico este gol às criancinhas do Brasil!”
(Pelé no Maracanã no dia 19/11/1969)

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