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Supertrampo

Charles Peixoto é poeta e roteirista, e se firmou na década de 1970 como um dos expoentes da poesia marginal, e membro do coletivo Nuvem Cigana, que deu o que falar em pleno auge da ditadura no Brasil. Sua estreia como poeta se deu ao lançar o livro mimeografado “Travessa bertalha 11”, ao que se seguiu “Creme de Lua”, “Perpétuo socorro”, “Coração de cavalo” e “Marmota platônica”. Na década de 1980, Charles Peixoto começou a atuar como roteirista na Rede Globo, o que incluiu seu trabalho para a lendária série Armação Ilimitada, ícone da década de 1980, e depois com a novela teen Malhação.
 
Charles Peixoto é considerado um dos fundadores da chamada “geração mimeógrafo”, grupo de poetas que trouxe à poesia, através da denominação de poesia marginal, e com a contribuição da Nuvem Cigana, a linguagem coloquial, cotidiana, tirando a poesia de seu gabinete, e levando, através de uma expressão mais coletiva do que de autor, a poesia para as ruas e a declamação.
 
A linguagem pop também seria uma das marcas dos poemas de Charles Peixoto. O que, mais recentemente, o levou a ser um dos escolhidos para a conhecida coletânea “26 poetas hoje”, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, que tirou os poetas marginais do underground e os trouxe para o mainstream.
 
E, por sinal, dos livros de Charles Peixoto, podemos dizer que seu primeiro lançamento comercial, de fato, foi em 1985 com “Marmota platônica”. Livro que reunia material novo e obras anteriores do poeta. E, depois de um hiato de quase três décadas sem publicar, Charles Peixoto reaparece em 2011 com o livro de poesia “Sessentopeia”. E agora, com “Supertrampo”, temos o livro que reúne a obra do poeta desde seu primeiro livro, também incluindo, até, poemas esparsos recolhidos da imprensa e outros inéditos.
 
A chamada poesia marginal, nos anos 1970, teve como epicentro a zona sul do Rio de Janeiro. E os poemas de Charles Peixoto refletirão, em geral, uma poesia de concisão, objetividade, e o romantismo de Charles terá referências heterodoxas, tais como os crimes passionais, os dramas familiares, os casos de polícia, tudo num conteúdo urbano e numa forma que coloca a rapidez das expressões breves como a urgência deste ser que está, em plena década de 1970, entre o sol de Ipanema e as sombras da ditadura militar.
 
A poesia marginal é engajada, e mesmo dentro do contexto do desbunde, há uma expressão política, que mescla tal contracultura com o compromisso da arte de perturbar o status quo, não só com diversão, mas também com o necessário e preciso
 
pendor para refletir sobre a devastação do mundo político e real. Os poemas de Charles Peixoto têm este teor de urbanidade, brevidade, exigência do coloquial e do mundano, poesia de rua, feita para a rua, e que, com a Nuvem Cigana, tem no coletivo de rua, e não no autor de gabinete, o seu sentido maior. E, em Charles Peixoto, isso se traduzirá com o desregramento social e afetivo, com um artesanato das coisas cotidianas, o mundano mais fundamental do que o estrito pendor literário.
 
É com o lançamento recente de Supertrampo que temos toda a poesia de Charles Peixoto reunida, o que vai do ano 1971 até 2014. Os livros do poeta são elencados cronologicamente neste livro, o que começa, então, pelo Travessa bertalha 11, e que tem versos como: “você podia sentar/acender um cigarro/conversar sobre a sorte das pessoas/sobre como elas perderam tantas coisas/sobre o que eles perderam/eles não entenderiam/ … que moral e imoral não são deus e o diabo/que as pessoas nascem sem saber de nada” (travessa bertalha 11, pg.15, Supertrampo). Charles Peixoto, nestes versos, coloca o destino coletivo na frente, o sentimento de perder, que é comum a muitos, e além disso, o termo moral e imoral como criação humana, demasiado humana, em que Deus e o Diabo não estão em guerra, mas o Homem. E o termo deste conflito está na sensação básica, racional se citarmos Sócrates, de que o Homem nasce sem saber e morrerá sem saber. O tudo que sei é que nada sei, então, corrobora este sentimento de perda, que é ausência, e que se configura como destino, a sorte das pessoas que perdem e não sabem o porquê, todos nascem com esta fratura da incompreensão, como fator humano por excelência.
 
Continuando a leitura de Travessa bertalha 11, aparecem, em seguida, versos como: “eu detestava olhar pras pessoas/sempre no mesmo lugar … aí enchi o saco e fui ser deus” (travessa bertalha 11, pg.21, Supertrampo). Da constatação do destino inexorável, da fratura existencial que coloca o Homem como ignorante, temos agora a esfera da decisão, Charles Peixoto entra então num sentimento de inconformismo, e como poeta passa a detestar a acomodação das pessoas, “sempre no mesmo lugar”, e decide de um súbito ser Deus. O poeta escreve para alcançar a divindade, e sai assim do lugar comum das pessoas, lugar inscrito na fratura existencial de uma dimensão única: o ser igual e comum que nada apronta, como diria Waly Salomão. E a decisão de ser Deus é o entendimento de que a poesia salva, pelo menos os poetas.
 
Em Creme de Lua, temos os versos: “o poeta é um atravessador de paredes/fantasma de si mesmo” (creme de lua, pg.38, Supertrampo). E agora, Charles Peixoto sai de sua divindade, a poesia é um simulacro do que os deuses veem ou uma ideação de ser deus que não livra o poeta da fratura existencial, e que se coloca como fantasma de si mesmo. O sobrenatural seria, no caso da poesia e do poeta, mais uma ilusão do que uma realidade, e quando Charles Peixoto decide ser deus na Travessa bertalha 11, agora vê que é um fantasma no livro Creme de Lua.
 
Em Perpétuo socorro, a aventura de Charles Peixoto dá seguimento: “na minha cabeça não tem ideia de mofo/nem farsa modernista/ tem minhocas oportunistas/empapuçadas de terra”, e que segue, “sou mais chegado ao escracho que ao desempenho/mais chegado à música que à porrada/mais chegado ao vício que à virtude/” (perpétuo socorro, pg.43, Supertrampo). Aqui temos mais dilemas, e novas decisões. O poeta se revolta com o mofo das ideias antigas. A geração da poesia marginal terá este fastio como marca, e Charles Peixoto se afirma agora como poeta de vícios. A virtude da divindade é invertida, a música ao menos o redime da porrada, e o humor, o escracho, são maiores que qualquer deus da “grande obra”.
 
O saco cheio do poeta se traduz, agora, como um ser mundano. Seu lugar é novo, diverso das pessoas que sempre ficam no mesmo lugar, mas a realidade é a mesma, a amplidão é só o cotidiano, a poesia é seu simulacro de vida, mais mundano, é a Nuvem Cigana na rua, e o poeta como deus do ordinário.
 
Ao que segue, ainda em Perpétuo socorro, os versos: “nenhuma compaixão/paixão é perpétuo socorro” (perpétuo socorro, pg. 50, Supertrampo). A compaixão é vertida em paixão, o socorro do poeta sai do ideal compassivo (divino), e mais uma vez se coloca na dimensão mundana, em que a ilusão da poesia se dá bem com uma ilusão maior ainda, a paixão, e isso como seu socorro, perene, perpétuo.
 
Na abertura de Coração de cavalo, pg.55 de Supertrampo, temos um dos trechos mais bonitos do livro: “a poesia alimenta revoluções/é o vira-lata esperto na mira da caça/a poesia é a criação mais barata/a situação mais delicada/o tombo mais alto/porque os palhaços pensam que têm/cabeça de borracha”. A mira da caça é o poeta, o vira-lata é o poeta, a revolução é o poeta, e isso numa criação barata, e num alçar voo inconsequente, pois do tombo, o poeta pensa que sai ileso, tem a cabeça de borracha. É palhaço, fantasma, divino, e aqui o cotidiano é delicado, o fio da navalha encarna a revolução que é mais barata que tudo, e ainda tá na mira, como caça, como provocação.
 
Ainda em Coração de cavalo, temos: “cansado de tanta interferência/por um pouco de calma/eu lembro de quando tinha muito menos forçação de barra” (coração de cavalo, pg.78, Supertrampo). O poeta quer fazer seu simulacro, quer se realizar na ilusão, é um fantasma, um palhaço, consciente de que a fratura existencial das pessoas que não saem do mesmo lugar podem prejudicá-lo. Pois agora o conflito vira guerra, e a tática do homem unidimensional é a interferência. As revoluções dos versos vão de encontro com uma muralha inexpugnável, na qual a forçação de barra vai ao limite, tornando-se intolerável. E o poeta a denuncia.
 
Em Coração de cavalo, a denúncia segue, mais clara que água: “abaixo a linha dura/qualquer linha/o que der na telha/deixa a gente feliz/bazta nazi manzanas” (coração de cavalo, pg.80, Supertrampo). Aqui, a ditadura militar é citada, e a
 
interferência ou forçação de barra ganha nome e endereço: a linha dura. Aqui o nazi é a resistência do homem unidimensional que torna o político em autoridade, o grito de liberdade em afogamento, num verbo em que a palavra livre se esquiva e fala baixinho para não morrer.
 
O “forçador” é máscara, e o fantasma do poeta assombra com suas revoluções o seu ser deus que tem a tarefa de denunciar a fratura ignorante que é a farsa da ordem. Denúncia da mentira como virtude que não sai do lugar, e o poeta, enquanto isso, e apesar disso, faz o que der na telha, provocação e libertação denunciam a letra unívoca da verdadeira cabeça de borracha: a ditadura militar, aonde que tem cabeça é preso.
 
Já no primeiro lance comercial de Charles Peixoto, o Marmota platônica, aparecem versos desta estirpe: “mais uma vez pulei dentro da minha nave sonâmbula/intitulada marmota platônica/e fiquei julgando ouvir estrelas” (marmota platônica, pg.102, Supertrampo). A ilusão do poeta, seu simulacro, evoca um dos ases da poesia antiga, Olavo Bilac, o senso comum é derrotado pela loucura de ouvir estrelas.
 
O poeta marcha na sua insensatez sensata de colocar a ilusão na ordem do dia, e aqui sai do mesmo lugar de sempre do homem unidimensional, e se realiza verdadeiramente, levando uma vida mais autêntica, em que saber do próprio talento, tê-lo como ofício, faz do simples simulacro um projeto de vida, e com a palavra verdade como diferença, afirmação.
 
A marmota platônica, seu mundo de ideias, torna o mundo diferente, em que ser sonâmbulo e ouvir estrelas é normal, e mais que isso, esta ausculta se faz como lugar de senso crítico que não vê só o que se apresenta como tangível. A nova visão sonâmbula é a visão do transe, em que a verdadeira vida eclode. Enquanto o simulacro cabe mais, agora, ao homem unidimensional que ao poeta, o qual já vê a luz, as estrelas, e, veja que ousadia, ouve tudo, como se o transe fosse o átimo de sentido que falta ao mundo que não sai do lugar.
 
Em Sessentopeia, livro de Charles Peixoto lançado em 2011, aparece novamente este estado alterado da mente, que é sonho, delírio e transe: “sessentopeia/sacripanta sensual a se insinuar através do tempo/sonhos selvagens/paixões suicidas/noites de loucura … sessentopeia/sismograma de um cérebro em surto/páginas da biografia secular de um recém-nascido” (sessentopeia, pg.121, Supertrampo). Aqui, a noite de loucura em que se ouve estrelas tem a imagem firme do renascimento. O poeta, agora recém-nascido, olha o novo mundo, a loucura é a performance de uma realidade que o estreito caminho do homem unidimensional sequer suspeita, pois foi adestrado no tangível, e acha que o simulacro é a realidade.
 
A marmota platônica, a alegoria da caverna, é colocada novamente em Sessentopeia, e o neologismo é criação de simulacro, só que com mais pé no real do que o senso
 
comum dos que não saem do lugar. O cérebro em surto faz as cores do novo mundo, e nada será mais tão conforme ao que o idiota da objetividade espera, pois a poesia não se ocupa do simulacro da unidade conforme ao preestabelecido. A poesia cria a ausculta, na poesia se ouve estrelas, e o mundano tem mais cor e som do que imagina (não imagina?) o homem unidimensional.
 
Já nos poemas novos de Charles Peixoto, o Supertrampo propriamente dito, temos: “assim vigora o temor febril/evidente que não fazemos parte dessa galáxia/extratelurianos são compatíveis/nada improváveis/polêmica relação entre poetas e lunáticos” (pg.187). E que finaliza o trajeto com : “poesia é bom/eleva o espírito/burila o sentimento/traduz a amplidão/e o que de tão pequeno/evapora no fim da tempestade” (pg.193). Charles Peixoto encerra seu Supertrampo com o diálogo surreal entre o poeta e o lunático. Estes são extratelurianos de outra galáxia, em que o senso comum é uma piada, e o sensato mora nas estrelas e tem ausculta nobre e diz que poesia é bom, como seu último pecado e blasfêmia contra o homem unidimensional.
 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor. Blog: http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

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