Segunda, 06 Mai 2024

Reportagem EspecialLar, doce lar

Reportagem EspecialLar, doce lar

Texto: Henrique Alves

Foto: Gustavo Louzada/Agência Porã
 
 


“Não atrapalha a porra do samba, não”. Os seis músicos da roda e a plateia em torno se entregavam ao refrão de Além de Tudo, sucesso setentista de Benito Di Paula, e o atendente do Bar do Ney querendo saber se alguém ali queria mais cerveja. O cavaquinista reagiu impulsivamente. O atendente cedeu. A roda então abriu o peito e se libertou: 
 
Eu vou ficar aqui
até madrugada voltar
e trazer você pra mim
 
Há um ano ninguém atrapalha a p... do samba que acontece no final da feira livre da Rua Sete de Setembro, no Centro de Vitória, logo após a barraca de pastel e caldo de cana. Como a feira, o Samba da Xepa marca ponto todos os sábados, mas só a partir das 10h, nas imediações do Bar do Ney. 
 
Ele nasceu como evento-protesto contra a prefeitura, acusada de tratar com descaso os artistas do Centro. “É de graça. Costumo dizer que o ingresso são os aplausos do público”, diz Beto Capoeira, um dos organizadores.
 
E assim foi no dia 2 de fevereiro, primeiro sábado do mês. Ao discriminado Benito Di Paula e seu samba-joia seguiu-se a tradição de Nelson Sargento e seu clássico Agoniza Mas Não Morre. 
 


Na calçada, os músicos se reuniam em volta de uma mesa sob o Edíficio Gaivota; outras duas dezenas de mesas se espalhavam pelas calçadas. Um rapaz filmava o samba com um Iphone.
 
No dia seguinte, um rio de alegria nasceu no Bar da Zilda, correu pela Rua Sete e desaguou na Praça Costa Pereira. O bloco Regional da Nair, braço carnavalesco do megagrupo de samba homônimo, arrastou cerca de duas mil pessoas entre as cercanias da Escadaria da Piedade e a Costa Pereira. 
 
O grupo nasceu em 2008 e a partir de 2011 fez do Centro seu palco iluminado. As apresentações na área livre da Zilda atraíam gente de qualquer canto da capital e dos municípios vizinhos. A estreita rua do bar, entre a Graciano Neves e a Sete de Setembro, inundava-se de gente. 
 
O bloco desfilou pela primeira vez em 2011 e aquele domingo escaldante repetiu as mesmas cenas dos últimos três anos: quanto riso, quanta alegria. 
 


Certamente ao Regional foram pessoas para quem o Centro é algo tão remoto quanto Bombaim ou Mantenópolis. Num outro patamar, manifestações tais - o Samba da Xepa, o Regional da Nair, a Estação Porto, a Casa de Bamba, entre outros - contribuem para que moradores e não-moradores nutram uma relação afetiva com o coração da capital. 
 
Entre 2000 e 2010 o Centro de Vitória cresceu em 598 habitantes. De 9.240 foi para 9.838 moradores. É um salto modesto: no mesmo período, Jardim Camburi inchou em pouco mais de 15 mil habitantes (de 23.882 para 39.157); Jardim da Penha, em quase seis mil (24.623 para 30.571). Os números são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
 
Não obtivemos dados, mas o povoamento do Centro deve ter crescido um pouco mais nos últimos dois ou três anos.
 
Em termos urbanísticos, o Centro se amolda ao conceito de “bairro autônomo”, como Jardim da Penha ou Jardim Camburi. É bem provido de serviços: as compras do supermercado podem ser feita a pé. Outra: boa parte das linhas municipais e intermunicipais (Transcol) de ônibus atravessa o Centro. Para quem depende de ônibus - ignoremos por ora a frota precária e de tarifa injusta - é uma maravilha.
 
Há um certo lirismo ali também: morar em prédios antigos, amplos e bem conservados, ser vizinho de monumentos históricos, caminhar à sombra das árvores, ver criança brincando na rua, contemplar navios deslizando à beira-mar.
 


São elementos que agregam um valor (não pecuniário) à ideia de viver no Centro, bairro cujo perfil imobiliário combina duas características primordiais para a revitalização: o velho “bom e barato”. Há muitos imóveis bem conservados, agradáveis e, em comparação a outros bairros com características semelhantes, baratos.
 
Esse perfil atraiu uma parcela substancial dos novos moradores do Centro: jovens nos seus vinte e poucos anos. Muitos enfrentam a fase geralmente coalhada de incerteza de recém-egressão da faculdade. Um lugar aprazível a preços admissíveis - com serviços gastroetílicos, digamos assim, a custo plausível sem sacrifício da qualidade - é o que se busca.
 
A cultura é um fator essencial para o renascimento do Centro - embora não tão quanto o imobiliário/socioeconômico. A questão cultural mexe com expectativas de moradores e não-moradores. 
 
O ramo de shows ao vivo de Vitória sofre de uma mesmice crônica: Capital Inicial, Jota Quest, Ana Carolina, Geraldo Azevedo, Titãs, etc. Nada contra os artistas, o problema é a mesmice. Aí no final de 2006 veio a Estação Porto. 
 
De lá para cá, o armazém da Codesa abrigou música para todos os gostos: Roberto Menescal/Wanda Sá, Elza Soares, Tom Zé, Nana Caymmi, João Donato, Arnaldo Antunes, Luiz Melodia, Moraes Moreira, a nova geração com Céu, Marcelo Jeneci, Quinho.... São tantos que é difícil lembrar. 
 
Nos anos 00, o Porto deu uma primeira contribuição cultural consistente à revitalização do Centro. 
 
Um exemplo recente: o show da Orquestra Voadora.  Banda carioca de marchinha pop que atrai milhares de foliões no carnaval do Rio de Janeiro tocando de Michael Jackson a Tim Maia, o voo da orquestra não coube no Porto. Imaginem cerca de 500 pessoas deixando o Porto e tomando as avenidas. A farra só parou na Rua Sete, onde o show continuou tão vibrante quanto. 
 
Uma experiência tal tem uma aura única, a partir da qual moradores e não-moradores criam um laço sentimental com o Centro.
 
Esse é apenas um exemplo. Há uma infinidade de outros elementos que interagem entre si: os sambas da Xepa e da Regional, a Casa de Bamba, os equipamentos culturais do Centro (Galeria Homero Massena, Museu Capixaba do Negro, Museu de Arte do Espírito Santo - Dionísio Del Santo, Centro Cultural Majestic), os monumentos históricos, o histórico boêmio da Rua Sete.
 
Falando em boemia, numa terça à noite pode-se dar com o trecho da Rua Sete entre ruas Coutinho Mascarenhas e Professor Baltazar coberto de mesas e cadeiras. Às vezes é preciso aguardar uma vaga. Os anos abalaram a centralidade da Rua da Lama (Jardim da Penha) ou do Triângulo das Bermudas (Praia do Canto). 
 
Nem tudo vai às mil maravilhas, no entanto. Assaltos e arrombamentos atormentam o comércio. As sessões plenárias começaram na última terça-feira (5) e um vereador, Vinicius Simões, do PPS, mesmo partido do prefeito Luciano Rezende, já apresentou projeto propondo a instalação de um Posto Avançado da Guarda Municipal Comunitária (PAGM) funcionando 24 horas na região.
 
De nada adianta a vivacidade cultural, o lirismo, prédios antigos, monumentos históricos, sombra das árvores ou criança brincando na rua se não há sensação de segurança.

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