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‘Aldear’ a ciência para descolonizar o mundo, conclamam indígenas

Ufes tramita com proposta de seleção específica para estudantes indígenas ingressarem na graduação

Arquivo Pessoal

“Aldear” a política, “aldear” a academia, “aldear” o mundo. O termo está cada vez mais presente nos discursos em defesa da diversidade étnica e cultural e do respeito aos direitos dos povos originários, os maiores guardiões dos conhecimentos ancestrais que, nos atuais tempos de crise climática, se mostram fundamentais para impedir a tragédia absoluta. Terras Indígenas demarcadas são os territórios onde a floresta tropical se encontra mais protegida, ao lado das unidades de conservação de proteção integral. O que a sociedade não-indígena vai conseguir construir a partir desse fato pode ser crucial para a sobrevivência da humanidade.

A Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) tem avançado em seu “aldeamento” em 2023. Depois da formatura da primeira turma do Curso de Licenciatura Intercultural Indígena Tupinikim e Guarani (Prolind), em junho último, agora aprecia uma minuta de resolução que objetiva instituir o programa de vagas suplementares para estudantes indígenas, por meio de processo seletivo específico nos cursos de graduação presencial, a exemplo do que já acontece em outras universidades federais do país, como a de Brasília (UnB), de São Carlos (UFSCar) e de Minas Gerais (UFMG).

A expectativa de criação dessa política na universidade capixaba é alta entre as comunidades Tupinikim e Guarani de Aracruz, no norte do Estado, onde quem deseja cursar uma graduação tem a opção do Prolind ou de ir para outros estados para ingressar em cursos. No atual da Ufes, os desafios de permanência já são grandes, porque é preciso vencer o preconceito que ainda existe por parte dos estudantes não-indígenas e as barreiras culturais impostas pelo ensino básico hoje oferecido aos povos indígenas.

A primeira turma do Prolind/Ufes levou oito anos para se formar, com 70 alunos. Dilzeni Vieira, da aldeia Pau Brasil, é uma dessas pioneiras. Educadora e liderança indígena, ela também integra o grupo que trabalha na proposta levada para a reitoria da Ufes. Ela conta que as aulas aconteciam presencialmente no Polo de Oceanografia da Ufes em Coqueiral de Aracruz, perto das Terras Indígenas de Santa Cruz.

Apesar da proximidade, o que facilitou a questão do transporte, residência e alimentação, a turma atravessou a pandemia de Covid-19, no início, sem a vacinação, com mais dificuldades que a dos estudantes não-indígenas. “A vacina demorou a chegar nas aldeias e nós precisávamos preservar nossos familiares, tínhamos contato com nossos anciãos. As aulas foram suspensas e fomos voltando de forma remota, até tudo se normalizar”.

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Voz

A condição de mulher e mãe acrescenta outras camadas no desafio. “Eu, como mulher, mãe e trabalhadora, é mais difícil. Mas é uma oportunidade que eu abracei, estudar e me formar, para unir a nossa cultura com a ciência. Isso é muito importante, nós mesmos termos voz para falarmos de nós, como povo. Ter igualdade de falar com o não-indígena que tem o conhecimento colonial, ter voz mesmo”.

A oferta de mais cursos, na Ufes, tende a ampliar essa voz e a descolonizar o pensamento, afirma. “O conhecimento cientifico adquirido fortalece o desejo de ocuparmos os espaços. Independente do curso que o indígena cursar, ele vai falar da sua cultura. Seja na arquitetura, na Medicina, no Direito. Vai enriquecer o conhecimento tradicional e também o científico”.

Os ‘parentes’

A distância de casa, quando é preciso sair do Espírito Santo, aumenta consideravelmente os desafios de inserção de estudantes indígenas na academia, como relata Taylane Tupinikim, da aldeia Pau Brasil, estudante do segundo período de Ciências Sociais na UFSCar.

“No início foi assustador, porque a gente que mora em comunidade, tem um círculo familiar. Quando decide sair, se desliga desse meio, não tem apoio, fica carente. O que me confortou aqui é que a gente acaba encontrando outros parentes. Porque hoje, por mais que seja dito que existe uma diversidade de indígenas no país, quando a gente chega na universidade, encontra aquele olhar desconfiado, ‘será que vai entender o que o professor diz’, ‘vai conseguir acompanhar?’. O apoio que a gente tem é encontrar outros parentes nas universidades, um dá força para o outro”, descreve.

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O objetivo de levar a voz indígena para todos os cantos da academia, no entanto, é o mesmo. “A gente vem para a universidade com intenção de voltar e trabalhar em prol do povo, porque é carente. A maior parte da nossa história, saúde e educação é de pessoas de fora, o branco que faz, que publica. A gente não tem, na maioria das vezes, alguém próprio indígena que faça isso. Então entrar no campo da universidade é para isso, para ter voz ativa e autoridade de fazer publicações a gente mesmo. A gente não tem antropólogo Tupinikim. Eu vim para fazer essa formação e voltar para aldeia e trabalhar nessa área. A gente precisa ocupar esses espaços de liderança no nosso povo e incentivar a nossa comunidade, os nossos parentes, a fazerem o mesmo”.

A “história real”, afirma Taylane, não é contada nas escolas não-indígenas. “Então, quando eles se deparam como indígena, têm aquela visão de que a gente anda pelado na aldeia, tem casa de barro, pergunta por que a gente tem celular, internet. Por um lado, isso ofende, mas a gente entende que o ensino na cidade também é tão precário, que eles não conhecem a realidade. Aqui a gente aprende mas tem também que ensinar”.

Violência

Há também o cuidado com a segurança e a integridade física. “Indígenas não andam sozinhos na cidade, sempre em grupo. O risco de uma agressão é constante. A minha mãe, mesmo eu com 27 anos, me manda mensagem, me liga sempre pedindo para eu não andar sozinha. E precisa ter cuidado mesmo. Na Marcha das Mulheres Indígenas do ano passado, a nossa passeata coincidiu com a passeata em prol de Bolsonaro e a nossa foi proibida. Tinha alguns homens com a gente e um deles saiu dali, foi caminhando sozinho, e foi assassinado. Isso é muito triste, a gente não tem segurança para andar. Sempre tem notícias de morte, de estupros, de crianças assassinadas. É muito triste”.

Bolsa permanência

O retorno da bolsa-permanência é outra expectativa grande por parte de quem está fora de seu Estado. “Eu moro no alojamento da UFSCar, que é compartilhado, tenho direito a almoço e janta. E direito a uma bolsa em espécie, só que no governo passado, com o corte de gastos até dentro das universidades, quem ingressou esse ano ainda não está recebendo. O auxílio-café é de R$ 140, que não compra café do mês inteiro, e tem que custear a higiene pessoal. A permanência é uma luta diária”, afirma.

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Nas férias, se a família não tiver condições, a pessoa não volta para casa, fica no alojamento. O meu curso é integral, eu não consigo emprego fixo, posso conseguir como freelancer. Bolsa de estudo para indígena são só duas, então a concorrência é grande e a prioridade é para quem não recebe bolsa. A gente espera que com esse governo a bolsa-permanência volte e melhore”, destaca.

A proposta

Na proposta que tramita na Ufes, a ideia é que o processo seletivo específico seja aberto para todos os cursos de graduação presenciais. O documento entregue ao reitor é para que os indígenas tenham acesso a todos os cursos que quiserem. “Temos muita fé e esperança que vamos conseguir”, afirma Dilzeni.

“É muito importante o estudante ter o acolhimento da família, participar dos movimentos culturais da comunidade, mas eles saem por um período muito longo para outros estados”. No caso dos cursos que serão oferecidos na Capital, a bolsa-permanência também é essencial para garantir a residência e a alimentação dos estudantes na cidade, bem como o transporte periódico até as aldeias, para manter os vínculos. “Os jovens participam dos movimentos culturais da comunidade e isso fortalece sua identidade, como membro da comunidade, e fortalece o povo como um todo”.

A minuta foi entregue ao reitor, Paulo Vargas, no dia 25 de outubro. Agora, a proposta tramita nos colegiados dos cursos de graduação presenciais, que estabelecerão o número de vagas destinadas aos indígenas, garantindo o mínimo de duas vagas anuais por curso.

Os aprovados no processo seletivo específico serão submetidos às mesmas normas acadêmicas e regimentais aplicáveis aos demais estudantes. O documento propõe, ainda, que a universidade ofereça políticas de acompanhamento pedagógico e acesso ao Programa de Assistência Estudantil da Ufes aos indígenas ingressantes.

O diálogo entre as lideranças e o Gabinete da Reitoria começou em 2021, quando o reitor se reuniu com estudantes e indígenas para discutir o acesso e a permanência desses povos na Ufes. A partir desse encontro, foi constituído o Grupo de Trabalho com o objetivo de elaborar e apresentar a proposta agora formalizada.

Para o reitor Paulo Vargas, a iniciativa nasce a partir de uma “dívida histórica” que as universidades têm em relação aos povos originários. “Cabe à Ufes, enquanto instituição, assumir esse compromisso e construir essas possibilidades de acesso. A Universidade só ganha nesse processo”, enfatizou.

Prolind 2024

Sobre o Prolind, a expectativa é de que o edital da segunda turma seja lançado em breve, para que ingresso dos novos estudantes no início de 2024.

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