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‘Não vai tirar o direito de ninguém pescar’, afirma ICMBio sobre APA Rio Doce

Em reunião na Assembleia, pescadores relataram temor com mais restrições à pesca e pediram mais audiência públicas

Uma unidade de conservação de uso sustentável, que se propõe a compatibilizar os diversos usos do território em favor da proteção dos seus atributos naturais pode perder a capacidade de atingir sua finalidade se o processo de criação atropelar a consulta direta e honesta a todos os atores sociais afetados por ela.

Partindo desse princípio – que contrapõe a popular máxima maquiavélica de que “os fins justificam os meios”, com a qual o filosófico Nicolau Maquiavel procurou justificar as atrocidades cometidas pelos monarcas da Europa do Século XV para se manterem no poder -, é possível perceber um “ponto fora da curva” no histórico de criações de unidades de conservação no Espírito Santo e no Brasil, ao observar o diálogo que transcorre neste ano de 2023 em relação à proposta de uma Área de Proteção Ambiental (APA) na Foz do Rio Doce.

Em reunião realizada nesta sexta-feira (30) na Assembleia Legislativa, o compromisso com a criação participativa da unidade foi enfatizado mais de uma vez pelo representante do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão responsável pela gestão da futura UC.

“Eu posso garantir que a criação dessa unidade não vai tirar o direito de ninguém pescar, não vai tirar o peixe da mão de ninguém. O objetivo é cuidar do objeto do trabalho de vocês, é garantir que essa pesca continue sendo feita no futuro. Não estamos falando em proibir pesca, de forma alguma”, disse o analista ambiental Antonio de Padua Leite Serra de Almeida, o Toninho, em um dos momentos em que respondeu às súplicas das diversas lideranças pesqueiras presentes no Plenário Dirceu Cardoso.

Toninho, analista ambiental do ICMBio. Foto: Ellen Campanharo/Ales

Sabrina, de Santa Cruz, em Aracruz, Leônidas, de Regência, em Linhares, Lambisgoia, do Sindicato Estadual de Pescadores e Marisqueiros (Sindpesmes), foram vozes que expuseram o temor de seus companheiros com mais uma possível restrição aos seus territórios pesqueiros com a chegada da APA. “A empresa [Samarco/Vale-BHP] acabou com a nossa pesca. E o ICMBio vem agora acabar com nós de vez. Eles só têm pena das tartarugas, não tem pena de nós?”, disse Leônidas.

Chefe da Reserva Biológica (Rebio) de Comboios, localizada ao lado da vila de Regência e dentro do grande território que a APA pretende abraçar, Toninho reafirmou, diante de cada questionamento, o compromisso com o diálogo e o atendimento às demandas dos pescadores artesanais. “Eu sou gestor de uma unidade de conservação. Eu sei o que representa ter a sociedade com você para a conservação. É o que a gente quer. Seria muito mais cômodo pegar essa área doada pelo governo do Estado para o Ibama e anexar a Rebio de Comboios. Isso se faz com um processo que não precisa de consulta pública. Mas a gente não quer isso, quer as pessoas cuidando do que é o ganha-pão delas”, explicou, tocando num dos aspectos do histórico do processo de proposta da unidade de conservação.

Ellen Campanharo/Ales

Proposta tem vinte anos

A área onde se pretende instalar a APA foi doada pelo governo do Estado em 2003, logo após a publicação do Plano de Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (PDLIS) para as Comunidades do Entorno da Rebio Comboios, em 2001. A proposta inicial era uma Reserva Extrativista (Resex), mas as características do território não se enquadravam na classificação de Resex estabelecida na legislação nacional – Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), Lei nº 9.985/2000 -, então, a APA começou a surgir como mais viável.

O processo de criação foi oficialmente aberto em 2007, mas não avançou diante de resistências diversas. Em 2016, o primeiro acordo para a compensação e reparação dos danos do crime da Samarco/Vale-BHP previu recurso para ser aplicado em unidades de conservação já existentes na área atingida e para a criação de outras, entre elas, a da Foz do Rio Doce. Após cinco anos de estudos já financiados pela compensação prevista no acordo, foi aberto o processo de consulta pública em 2023.

“Estamos prontos para tirar as dúvidas de quem quer que seja, quantas vezes for necessário. As consultas públicas não vão ser o pretexto para criar de cima pra baixo. Vamos continuar conversando com quem for preciso”, reforçou Toninho, referindo-se a uma prática recorrente em processos de criação de unidades de conservação e também de instalação de empreendimentos de grande impacto socioambiental, que é a realização de audiências públicas de fachada, onde as comunidades mais vulneráveis ou impactadas não têm seus questionamentos e necessidades realmente atendidas ou sequer são devidamente ouvidas.

A reunião foi coordenada pelos deputados Alcântaro Filho (Republicanos), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Liberdade Econômica e do Empreendedorismo, e Lucas Polese (PL), também membro da frente. Além do ICMBio e pescadores, foram convidadas entidades como o ES Em Ação e sua financiadora, Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), e políticos como o vice-governador, Ricardo Ferraço (PSDB), o deputado federal Evair de Melo (PP), e gestores e parlamentares do município de Aracruz.

Deputado Alcântaro Filho. Foto: Ellen Campanharo/Ales

A presença maciça de tantas entidades e parlamentares comprometidos com os grandes projetos de desenvolvimento predatório no Espírito Santo chamou atenção de alguns presentes, como o ativista socioambiental de Barra do Riacho, Herval Nogueira. “Quando vem empreendimento, muitas vezes não soluciona o problema da nossa comunidade. Em Aracruz, tem fábrica, portos, tudo, mas temos problema de desemprego, de saúde, transporte”, exemplificou.

Na mesma esteira, a bióloga Marcela Nunes Tavares, que se apresentou como mestre em Ecologia Humana e “pesquisadora dos territórios pesqueiros do Espírito Santo frente aos processos de desenvolvimento”, alertou para o perigo de ocorrer uma captura da pauta dos pescadores pelas grandes empresas no processo de criação da APA do Rio Doce. “É a primeira vez que os empresários se aproximam de vocês para ter uma defesa em comum, que é contra a APA. Vocês estão sendo massa de manobra”, disse, direcionando-se aos pescadores presentes. APA não proíbe pesca”, acrescentou.

Também utilizando o exemplo de Barra do Riacho, a pesquisadora ressaltou: “São 17 indústrias dentro de Barra do Riacho. Cadê o desenvolvimento? Chegou trabalho para vocês? Chegou água potável? Os pescadores de Barra do Riacho não conseguem sair da foz para pescar. Alguém já fez algum estudo para resolver o problema dos pescadores de Barra do Riacho?”.

Ao final do debate, o presidente do Sindpesmes reforçou o pedido de audiências públicas nas comunidades pesqueiras diretamente atingidas, em Aracruz e Linhares, o que foi assumido pelo representante do ICMBio, e avaliou a iniciativa como positiva. “Foi muito produtiva para nós. É a primeira reunião que a gente tem em relação às APAs. É uma oportunidade de falar e escutar e construir essa APA de forma mais aberta, principalmente para os pescadores”, disse Lambisgoia, que acompanha de perto uma situação oposta que ocorre em Vitória, que foi a publicação de uma lei municipal que proíbe a pesca artesanal em toda a cidade.

Lambisgoia, presidente do Sindpesmes. Foto: Ellen Campanharo/Ales

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A Lei 9077/2017 foi elaborada pelo vereador Luiz Emanuel (Republicanos) e sancionada em janeiro de 2017 por Luciano Rezende (Cidadania) sem qualquer diálogo com os pescadores, lançando-os a uma situação de criminalidade que perdura até hoje. A intensificação de operações de fiscalização contra esses trabalhadores foi deflagrada de forma conjunta no dia último dia seis de junho pela Prefeitura de Vitória, agora sob gestão de Lorenzo Pazolini (Republicanos), e a Capitania dos Portos, as Polícias Federal e Ambiental e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

A radicalização da criminalização dos pescadores já dura 24 dias e provocou uma série de manifestações pacíficas de repúdio, levando os vereadores a discutirem o assunto em Plenário por mais de uma vez e a agendarem uma grande audiência pública para a próxima terça-feira (4), na tentativa de encontrar uma solução para o drama dos pescadores artesanais, que sustentam uma atividade tradicional da ilha de Vitória, intimamente ligada à identidade cultural capixaba.

Assinam o convite para a audiência o próprio Luiz Emanuel, o presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, Luiz Paulo Amorim (SDD), além de Anderson Goggi (PP), Chico Hosken (Podemos) e Karla Coser (PT). Tudo leva a crer que tende a acontecer um outro momento histórico para os pescadores artesanais do Espírito Santo.

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Antes dela, a tradicional Festa de São Pedro, no próximo domingo (2), promete acontecer sem a participação de boa parte dos pescadores na procissão marítima, um dos pontos altos da homenagem aos Padroeiro dos Pescadores. Sem trabalhar há quase um mês, muitos já passando necessidade para alimentar a família, pescadores não veem sentido em festejar enquanto não houver uma posição concreta pelos legisladores e gestores municipais que demonstre o respeito que a pesca artesanal merece. “Para muitos não é questão nem de querer ou não ir na procissão, é não poder mesmo. Tem gente sem condição de comprar comida, a gente está organizando mutirões de doações para ajudar essas famílias. Como é que vai colocar óleo diesel no barco pra ficar uma hora rodando com o barco na procissão?”, expõe Lambisgoia.

Que a ausência dos pescadores na festa que deveria ser também em sua homenagem seja recebida pela sociedade capixaba como um grito legítimo de socorro desses trabalhadores, criminalizados para atender a interesses das grandes empresas, principalmente as do Complexo de Tubarão, Vale e ArcelorMittal, bem como aos políticos, empresas e entidades alinhadas com elas. Reconhecer a injustiça cometida contra os pescadores é o primeiro passo para adequar a legislação feita à canetada, o que também vai desaguar em uma gestão responsável, democrática e realmente eficiente da APA Baía das Tartarugas, criada em 2018, com objetivo de conciliar os diversos usos que hoje convivem nas baías e enseadas de Vitória.

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