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Faz escuro, mas é preciso cantar!

Quando há mais de seis anos eu aceitei o convite para compor a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, a par das contradições que marcam o caminhar histórico da Igreja e que já motivaram tantos pedidos de perdão, decidi dizer SIM! Muitas foram as questões que motivaram aquela resposta a qual foi por mim renovada, com fé e determinação, a cada dia nesses últimos anos.

Disse sim, em primeiro lugar, porque o Cristo que me foi apresentado pelos meus pais nos meus primeiros anos de vida, na pequena Mimoso do Sul, pelas minhas primeiras catequistas e com o qual me identifico profundamente não é um líder religioso omisso, descompromissado, alheio à dor do seu povo, corrompido pelas benesses do poder ou acomodado pelo conforto dos palácios. Muito ao contrário. 

O Cristo que me foi apresentado é o Cristo que nasce miserável e que se faz carpinteiro, um humilde trabalhador! É o Cristo que expulsa os vendilhões do Templo e exorta os clérigos a não transformarem a casa de seu Pai em um comércio vil, algo ainda tão atual nas religiões. 

O Cristo com o qual me reconheço é aquele que acolhe a prostituta, a protege da intolerância, do ódio cego e da hipocrisia assassina, posturas, infelizmente, tão presentes na vida de muitos que se dizem cristãos, mas que nutrem e reproduzem a violência, buscam a vingança em substituição à Justiça. 

O Cristo que me inspira é o que multiplica os pães e os peixes e sacia a fome dos trabalhadores. É o Cristo que, mesmo diante da morte, não cede a Pôncio Pilatos, não se alia oportunisticamente a ele, não o abraça, não se humilha, não fala baixo com poderosos e grosso com os pequenos! 

Pensava eu, pois, que integrar a Comissão de Justiça e Paz seria afirmar este Cristo! Afinal, a história desta e de tantas outras Comissões de Justiça e Paz é a história da defesa do pobre, do indigente, das vítimas da violência, da exploração, da ganância desmedida, daqueles sem vez e sem voz. Estar na Comissão, pois, seria afirmar o Cristo que sempre acreditei ante as nossas tragédias contemporâneas!

Disse sim também porque conhecia emocionado a história desta Comissão. Sabia do seu significado para o povo do Espírito Santo, para nossa história, e pensei ali poder doar toda minha disposição, meu engajamento pela transformação social. Os últimos 40 anos deste Estado não seriam como foram sem a presença da CJP. A história recente das lutas sociais do nosso povo se confunde com a história desta Comissão. 

Foi assim no enfrentamento à Ditadura, ao Crime Organizado, à Scuderie Detetive Le Coque, na luta contra o lugar de toda pobreza em São Pedro, nas denúncias de violações ao Sistema Prisional, na defesa do povo atingido pela lama criminosa da Samarco, Vale e BHP Billiton. 

Tomar assento em uma Comissão por onde passaram figuras da estatura moral e ética de João Batista Herkenhoff e Ewerton Montenegro sempre foi para mim uma honra. 

Também disse sim porque a mão que me conduziu à CJP foi a mão de um verdadeiro sacerdote. Alguém que não escolheu a Igreja como opção mais fácil, porém, sabe do tamanho do desafio que é ser testemunha de Cristo nestes dias de tanta desumanidade. 

Alguém que enfrenta com tenacidade e doçura os desafios de anunciar o amor de Cristo em tempos de ódio e selvageria. Alguém que tem absoluta consciência da responsabilidade de seu papel de líder religioso. Alguém que se compadece da dor do seu povo e que não se omite na defesa do seu rebanho. Naquela oportunidade, subiu comigo as escadarias da Mitra Padre Kelder Brandão.

Eu disse sim também porque eu não estava sozinho! Nunca estive, é verdade. Aceitei integrar a Comissão porque ao meu lado estavam pessoas como Vanda Valadão, João José Barbosa Sana, Irmã Rita Cola, Professor Dagiós e tantos outros. E ao nosso lado, como parceiros da CJP, sempre estiveram os movimentos sociais, os sindicatos e outras religiões na construção de uma cultura de diálogo ecumênico e fraterno na busca da paz que só existirá quando houver Justiça. Gente de luta. Gente de fé e vida. Gente que tem lado. Gente que não se verga. 

Mas, companheiros e companheiras, antes de tudo, em verdade, eu disse sim para os meus ideais, para os valores que me movem. Dizer sim à CJP era dizer sim àquilo que eu acredito, para aquilo a que tenho dedicado o melhor de mim: erguer minha voz contra as injustiças, contra as violências em quaisquer de suas expressões, contra o arbítrio, o autoritarismo, a exploração do povo pobre, e, especialmente contra a HIPOCRISIA que reina em nossa sociedade. O que, convenhamos, deveria ser o ideal de todos aqueles que se dizem cristãos, notadamente, aqueles que falam em nome de Cristo.

Mas como todos sabem, eu deixei de dizer SIM! Mas não deixei de dizer sim ao Cristo no qual me reconheço, ao legado da CJP, aos companheiros e companheiras de caminhada, e muito menos aos meus ideais! Foi exatamente por eles que renunciei à Presidência da CJP. Porque antes renunciar a cargos e funções, por mais honrosos que sejam, do que renunciar à essência do que somos, acreditamos e vivemos! 

Eu disse não à posição do arcebispo assim como Cristo ousou dizer não aos clérigos de sua época. Eu disse não à posição do líder máximo da Igreja Católica de Vitória que, sob o manto da defesa da vida, aliou-se, em plena companha eleitoral, a um senador que defende diversas maneiras de morte, porque convenhamos, não se morre apenas quando se para de respirar. Nossa sociedade está repleta de mortos vivos. 

O Arcebispo abraçou um candidato e deixou-se fotografar abraçado a ele. Permitiu que o mesmo lesse um pronunciamento seu em audiência pública em Brasília. Isso não é um mero encontro institucional. Isso é uma aliança, ainda que pontual e estratégica. 

Se a pauta fosse de fato a defesa da vida em abundância, por que não ocorreu antes? Por que não ocorreu para discutir com o Senador sua proposta de redução da maioridade penal, que significa a morte para nossos adolescentes? Por que não ocorreu quando o Senador defendeu a castração química? Por que não ocorreu quando o Senador faz apologia à pena de morte? Por que ocorreu quando o Senador votou a favor da reforma trabalhista que permitiu que mulheres grávidas trabalhem em local insalubre, gerando igualmente morte? 

Por que não ocorreu quando o Senador lançou a candidatura do senhor Bolsonaro a Presidente da República, com defesas da liberação das armas, da relativização da tortura, com posições misóginas, racistas e homofóbicas? Por que não gravar um vídeo pedindo aos católicos para não votarem no MDB autor das maiores desgraças deste país a partir das retiradas dos direitos sociais? Por que o silêncio para uns e a voz firme para outros? 

E o meu NÃO a tudo isso foi respondido da pior forma possível.  Nem uma gota de autocrítica, de autorreflexão, de compreensão de que o projeto político do senador se afasta completamente das posições da fé católica. Em resposta à minha renúncia, veio a extinção da CJP e o fechamento das portas da Igreja ao clamor do povo no momento mais trágico do Brasil desde a redemocratização. E usar o Papa Francisco como fundamento para isso é o avesso do avesso do avesso. Tudo o que o Papa deseja é uma Igreja aberta, uma Igreja em saída, uma Igreja conectada com os anseios do seu povo.

Mas a história não acaba aqui! Como disse o Professor Herkenhoff, a Comissão de Justiça e Paz é um patrimônio do povo capixaba. Ela não pertence a um ou a outro. Ela venceu a ditadura, o esquadrão da morte, as masmorras contemporâneas e há de vencer o autoritarismo. Como Cristo venceu a morte e ressuscitou, a CJP há de vencer a escuridão do conservadorismo reacionário. 

É preciso ter esperança, é preciso resistir! Como os versos do poeta, faz escuro, mas é preciso cantar! Mesmo em meio à escuridão que vivemos, este ato dos movimentos sociais em solidariedade à CJP é uma poderosa canção de esperança! Cantemos, pois!!


Bruno Alves de Souza Toledo – professor de Direitos Humanos, doutorando em Política Social pela Ufes e ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória-ES.

 

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