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No velho armário

Manter bem trancada a pequena gaveta dos três nãos: não odiar, não ofender, não discriminar.

O velho armário está esquecido no sótão há muitos e muitos anos. Ninguém sabe quem o deixou ali, ninguém se preocupa em se desfazer dele. Entre poeira e traças, as muitas gavetas, grandes e pequenas, preservam antigos segredos, saudades, reminiscências, retalhos, remorsos. Resíduos do tênue tecido que chamamos vida: o que ficou para trás e não se quer ou não se pode jogar fora, o que passou e não tem mais como remendar, consertar ou reusar. Tudo que se armazenamos nos escaninhos do verbo existir.

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Trancada a sete chaves, uma delas guarda os remorsos e arrependimentos, pequenos e grandes deslizes que o dia a dia foi acumulando, como a poeira que se junta pelos cantos e nem percebemos: por que não fomos mais gentis, ou mais compreensivos, por que ignoramos as boas chances, por que não cumprimos a palavra empenhada? Por que não nos esforçamos mais, desistimos menos? Por que não lemos mais livros, nos divertimos mais? Por que nos calamos diante das injustiças? Por que não pedimos mais desculpas e discutimos menos? Por que não sorrimos mais e choramos menos?

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O conta-gotas do tempo vai pingando nas gavetas as pequenas conquistas diárias: dar um bom conselho, aceitar as faltas alheias, superar as próprias; perdoar uma ofensa, reparar um erro, ou muitos. Aquela gaveta no alto preserva os prazeres mínimos, felicidade em dose homeopática: o nascer do sol, molhar os pés na onda beijando a praia, contar estrelas, o canto de um pássaro, o cheiro do bolo assando no forno. Imagens registradas na memória do tempo: o sorriso de uma criança, um casal de idosos caminhando de mãos dadas, uma boa música. Um bom livro, ou muitos.

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Tem a gaveta das boas causas, as ações que praticamos sem darmos conta: uma palavra gentil para a atendente de uma loja, um elogio para um amigo, um sorriso para um estranho, ouvir os problemas alheios, estender a mão, aceitar ausências, incentivar quem se arrisca, apoiar os indecisos, amparar os mais fracos. Não temos que salvar o mundo para sermos heróis, basta manter a casa limpa, o pão na mesa, as contas pagas, o voto na urna, acumular amigos, respeitar o próximo.

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Manter bem trancada a gaveta dos três nãos: não odiar, não ofender, não discriminar. Escancarar a larga gaveta dos três sins: rezar, amar, aceitar. Aquela gaveta sem chave é a da fé, que se multiplica no amor a Deus e ao próximo – esse desconhecido de mil faces com quem esbarramos todos os dias e nem reparamos. A fé gera confiança, respeito próprio e mútuo. A maior gaveta, no entanto, é a do amor, que esse exige amplo espaço para dar frutos, como um jardim na primavera. Pois com amor somente as coisas boas acharão lugar no nosso armário. No final do dia, olhar essa pessoa que se reflete no espelho e sentir que tudo valeu a pena.

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