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Justiça dá decisão favorável às mulheres vítimas do crime da Samarco/Vale-BHP

Atingidas terão que ser incluídas no cadastro para acesso ao auxílio e programa de indenização

O juiz federal substituto Vinicius Cobucci, da 4ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte (MG), proferiu liminar favorável para as mulheres atingidas pelo crime da Samarco/Vale-BHP. A decisão determina atualização, revisão e correção do cadastro de todas as mulheres cadastradas ou com solicitações de cadastro pendentes, a partir de requerimentos individualizados já apresentados ou a serem apresentados pelas atingidas. Assim, deve-se fazer “retificação de toda e qualquer informação que seja necessária para fundamentar a sua elegibilidade e permitir o seu acesso direto ao Auxílio Financeiro Emergencial/AFE, Programa de Indenização Mediada/PIM e Novel [sistema indenizatório simplificado]”.

A Justiça decidiu também que deve ser feito o acesso imediato ao AFE, PIM e Novel das mulheres cadastradas na Fase 01, prioritariamente, “devendo todas as informações pendentes serem devidamente saneadas para o correto enquadramento na categoria pleiteada pela mulher”.

Consta ainda no documento a “proibição de comportamentos discriminatórios contra as mulheres que as coloquem em situação de submissão ou dependência, seja perante o seu marido, companheiro ou parente, possibilitando que possam ter acesso às suas informações e promover quaisquer alterações no respectivo cadastro, de forma direta, autônoma e sem intermediadores ou autorizações”.

Outra determinação é que seja encerrada a “discriminação entre titulares e dependentes do cadastro, organizando os dados sob sua responsabilidade, de modo que a mulher atingida consulte as suas informações de forma autônoma e independente”.

A decisão é fruto de um processo assinado pelo Ministério Público Federal (MPF), Ministérios Públicos de Minas Gerais (MPMG) e do Espírito Santo (MPES), Defensoria Pública da União (DPU), e Defensoria Pública de Minas (DPMG) e do Estado (DPES)com o objetivo de responsabilizar as empresas pelos danos às mulheres atingidas no procedimento de reparação de danos decorrentes do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em novembro de 2015.

No processo, os autores apontaram dificuldades enfrentadas pelas mulheres atingidas, como falta de integração entre as iniciativas de reparação e a rede de políticas públicas de atendimento à mulher; inexistência de mesas de diálogo compostas exclusivamente por mulheres; exclusão das atividades laborais típicas de mulheres da matriz de danos; e baixo percentual de mulheres por ocasião na entrevista do cadastro, ou seja, no levantamento de dados primários, já que 39% de entrevistas foram com mulheres e apenas 34% delas indicadas como responsáveis economicamente pela família.
Outros problemas apontados foram sobrecarga doméstica, em razão de conflitos familiares e saúde mental; dificuldades específicas para quilombolas; mulheres com profissões informais, como feirantes, pescadoras, agricultoras e cabelereiras, por vezes com renda superior ao marido ou companheiro, não foram devidamente contempladas pelo processo de reparação; centralidade do cadastro na figura do homem como “chefe de família” e “gerador de renda”; adoção de um modelo patriarcal como única espécie de família; falta de informação adequada, o que impediu o acesso à indenização, por acreditarem as mulheres que suas atividades econômicas não seriam passíveis de indenização; impossibilidade de revisão ou alteração do cadastro da pessoa titular; submissão das mulheres à autorização do marido, companheiro ou titular do cadastro para constar as suas informações; dificuldade na obtenção de auxílio, após o cadastro e ocorrência de separação conjugal; e aumento dos conflitos familiares e violência doméstica e danos à saúde física e mental.
O juiz aponta a gravidade dos fatos narrados. A principal violação, afirma, é a adoção de um modelo patriarcal de unidade familiar. “E, ainda que não haja no caso concreto uma família patriarcal, a centralização do fornecimento das informações na pessoa de um membro determinado da família, sem possibilidade a própria pessoa corrigir seus dados ou alterar seu cadastro, viola a dignidade da pessoa humana, ao se tratar a família como uma espécie de pessoa jurídica”, avalia.
O magistrado aponta que essa prática já foi observada em outras iniciativas capitaneadas pela Fundação Renova, como no caso dos indígenas de Aracruz, no norte, onde a unidade familiar foi tratada como uma pessoa jurídica, dando ao considerado chefe da família poderes de administração e quitação, “o que é absurdo, imoral e inconstitucional”. Ele acrescenta que, ainda assim, houve a “insistência das sociedades rés na manutenção deste modelo, não obstante as advertências do juízo, da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) e demais partes”.
Além disso, afirma, não existe representante legal de família ou representante da família. “A terminologia é inadequada e viola a dignidade da pessoa humana, ao condicionar pessoas adultas e capazes ao arbítrio jurídico de outrem”. Também é destacado que, para o Direito Civil, representante é apenas a pessoa natural maior e capaz que representa o absolutamente incapaz, ou seja, o menor de 16 anos, conforme consta no artigo 3º do Código Civil. Assim, afirma, adotar a expressão representante para indicar a relação entre uma pessoa e seu cônjuge ofende o artigo. 226, § 5º, da Constituição da República.
“Também chama atenção o fato de apenas o cônjuge do sexo masculino ter sido reconhecido como pescador profissional. A realidade prática demonstra que, em sua grande parte, homens e mulheres realizam atividades agropecuárias e de pescaria em conjunto. O fundamento é bastante simples, já que, em razão de ser uma atividade com baixos rendimentos em comparação a outras, o exercício da atividade por dois cônjuges implica maior renda para a família”, diz a decisão.
Luta antiga
A luta das mulheres pela reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão não é de hoje. Em 2019, foi realizado o encontro “Mulheres Atingidas pela Lama na Luta por Direitos”, na Assembleia Legislativa, com o objetivo de discutir as desigualdades cometidas pela Fundação Renova contra as atingidas.
Uma das principais injustiças de gênero, já identificadas naquela época, se davam na definição do valor do auxílio emergencial e das indenizações das mulheres, que sofriam com uma maior perda de renda em relação aos homens.

“Um dos motivos pelos quais a gente acredita que há essa exclusão no processo de reparação em relação aos auxílios emergenciais e indenizações, é que a característica do trabalho que a mulher realiza é mais marcado pela informalidade. Ela não possui carteira assinada, contrato de trabalho ou recibo, então não consegue comprovar sua atividade econômica e renda para a Fundação Renova”, relatou, na ocasião, a defensora pública do Espírito Santo Mariana Andrade Sobral.

Como exemplo, ela ressaltou as artesãs. Em Baixo Guandu, essa falha prejudicou centenas de mulheres. Somente a associação de artesãs do município tem mais de 200 mulheres. Há também as faxineiras de pousadas e casas de veraneio de Regência, que não possuem carteira assinada, mas tinham renda fixa gerada pelo turismo na vila, e as marisqueiras, que limpavam peixe para seus companheiros, seus pais ou outras pessoas da comunidade.
“Elas recebiam por aquele trabalho, mas não conseguem comprovar pela matriz de danos da Fundação Renova”, disse Mariana, que protestou: “existem outros meios de comprovar”, citando a autodeclaração, testemunha ou declaração de pessoas da comunidade, visto que se tratam de comunidade via de regra pequenas e tradicionais, onde todos se conhecem. “Então a forma de comprovação exigida dentro do escritório não se adequa à realidade daquelas famílias”, conclui.

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