No seu batismo nas urnas em 1982, o PT elegeu os primeiros vereadores, entre eles Luiza Erundina, imigrante nordestina que seis anos depois seria eleita prefeita de São Paulo, num dos maiores feitos do partido: derrotou Paulo Maluf, cobra criada da ditadura militar, e João Leiva, raposa do PMDB.
Na realidade, a assistente social Luiza Erundina foi a segunda prefeita petista de uma capital. Em 1986, surpreendentemente, o PT de Fortaleza conquistou a prefeitura com Maria Luiza Fontenelle, que derrotou dois bodes velhos da política (Paes de Andrade e Lucio Alcântara). Formada em serviço social e professora de sociologia na Federal do Ceará, ela quase não conseguiu governar – os funcionários municipais fizeram greves de longa duração, criando problemas em todas as áreas da administração. Seu sucessor foi Ciro Gomes. Mais tarde expulsa do PT, Maria Luiza elegeu-se deputada federal pelo PSB e acabou na extrema esquerda, filiada ao PSTU, que prega o voto nulo.
Desde as primeiras vitórias eleitorais, o partido brigou consigo mesmo quase tanto quanto brigou com os adversários. Em nenhum lugar as gestões petistas foram pacíficas. Ou tiveram de enfrentar adversários aguerridos ou desencadearam brigas entre companheiros de partido. Em 1994 o PT perdeu pela segunda vez a eleição para presidente, mas elegeu dois governadores: o professor Christovam Buarque no Distrito Federal e o médico Vitor Buaiz no Espírito Santo. Os dois foram acuados por militantes e pressionados pela cúpula nacional do partido, formada então por Lula, Zé Dirceu e José Genoino. Ameaçado de expulsão por manter um acordo de convivência republicana com o governo tucano de FHC, Buaiz desligou-se do partido e não disputou a reeleição nem indicou candidato à sua sucessão. O longo atraso salarial do funcionalismo capixaba só foi sanado com a antecipação de royalties do petróleo. Christovam Buarque bandeou-se para o PDT.
No final do século XX, com o país imerso no neoliberalismo, turbinado pela revolução tecnológica resultante da fusão da informática com a infraestrutura de telecomunicações, o eleitorado começava a virar para a oposição. Na eleição de 1998, Lula perdeu mais uma vez para FHC, mas o PT elegeu os governadores José Orcírio (Zeca) no MS e Olivio Dutra no RS. O Plano Real dava à população uma sensação de segurança desconhecida desde a inflação galopante iniciada nos anos 1960. A estabilidade monetária foi o maior legado dos tucanos, que não souberam transformar suas obras em votos. Para chegar lá, porém, Lula teve de pagar pedágio ao sistema.
Em 22 de junho de 2002 Lula lançou a Carta ao Povo Brasileiro, quatro páginas com críticas ao governo federal e promessas de reformas, crescimento econômico, geração de empregos e distribuição de renda. Um dos parágrafos-chave da carta dizia que Lula presidente “honraria os contratos”, expressão trazida em Nova York por José Dirceu, após reunião fechada com banqueiros e outras figuras do Império.
A história do PT tem portanto um divisor de águas – a Carta ao Povo Brasileiro. Só bem mais tarde se perceberia que o compromisso de “honrar os contratos” significava a manutenção da política econômica do governo FHC.
Mesmo dentro da moldura neoliberal, o governo Lula fez apostas significativas e promoveu mudanças. Não se pode negar que as metas da Carta foram perseguidas, mas os resultados ficaram aquém das promessas. Ainda assim foi graças ao governo Lula que o país saiu do mapa da miséria da ONU. Nunca antes neste país fora feito tal esforço de justiça social. Bolsa Familia. Luz para todos. Escolas técnicas. Universidades. Prouni. Benesses que se estenderam pelos dois mandatos de Lula e foram reforçadas no primeiro governo de Dilma Rousseff, que levou adiante, aos trancos e barrancos, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), criticado como “uma lista de boas intenções” pela ex-ministra Marina Silva. Na realidade, o PAC foi uma tentativa de passar a limpo uma série de projetos de infraestrutura para os quais faltaram recursos públicos e, também, investimentos privados. A falha não foi só do governo Dilma; faltou protagonismo na iniciativa privada, que perdeu tempo pedindo mais e mais facilidades.
Tanto adeptos como adversários reconhecem que o boom agrícola dos últimos 20 anos foi fruto de investimentos públicos e privados na produção rural, que passou a sustentar o superávit na balança comercial brasileira. Com o decantado Agronegócio deslanchando, o Brasil acumulou reservas cambiais de mais de 300 bilhões de dólares, formando uma trincheira contra movimentos especulativos externos e internos. Além de pagar o FMI, o governo Lula emprestou-lhe dinheiro, mas não teve coragem de rompoer com o jugo dos credores da dívida pública. Bem na defesa, faltou ao PT coragem/criatividade para ir ao ataque e marcar gols históricos.
As reformas foram parciais e até contraditórias. A ajuda aos miseráveis, iniciada com o Fome Zero, foi transformada no Bolsa Família, elogiado no mundo inteiro e criticado pela elite e a classe média internas. O governo deu força à agricultura familiar, mas puxou o freio da reforma agrária. O apoio irrestrito à agricultura empresarial levou o PT a legalizar praticamente sem debates a soja transgênica, adotada maciçamente por agricultores que a trouxeram inicialmente, de contrabando, da Argentina.
Delineou-se assim o PT conciliador/resiliente: em nome da governabilidade, o partido abraçou o pragmatismo político, deixando em segundo plano a ética pregada enquanto foi oposição. A prioridade passou a ser a manutenção no poder a qualquer custo.
O que se dizia então era que o virtuose Lula segurava o violino com a mão esquerda, mas o tocava com a direita. Os filiados mais antigos como o economista Chico de Oliveira e o filósofo José Gianetti da esquerda uspiana começaram a debandar. E assim foram se afastando lideranças regionais magoadas por críticas mais ou menos injustas e rasteiras mais ou menos explícitas. O missionário Frei Betto, que nem filiado era, deixou de colaborar com o governo Lula e escreveu A Mosca Azul (Rocco, 2006), um livro contundente sobre os desvios do PT. Algo semelhante aconteceria mais tarde com o deputado Fernando Gabeira.
A cada petista histórico que se afastava do partido, porém, associavam-se (inclusive pela internet, num lance ousado do comandante José Dirceu) centenas de petistas de ocasião. De olho em algum cargo comissionado, aderiam não mais os petistas de coração, mas os partidários do crachá de CC (cargo comissionado). Quando se viu, os governos petistas estavam praticando não apenas o pragmatismo político, mas o fisiologismo, o clientelismo e o toma lá-dá cá que fazem parte da rotina dos partidos políticos brasileiros. E assim se chegou ao chamado Mensalão.
Quem pôs o dedo na ferida pela primeira vez foi o deputado federal Roberto Jefferson, do PTB do Rio, descontente com sua fatia na pizza servida por ordem do “maitre” Zé Dirceu. Denunciado em 2005, o Mensalão manchou a biografia do PT, que já carregava nas costas o cadáver do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, assassinado em janeiro de 2002. Até hoje o caso não foi esclarecido. A versão oficial da polícia é que Daniel foi vítima de um sequestro comum. Uma versão alternativa sustentada por familiares de Daniel diz que foi crime político associado a um esquema de propinas envolvendo empresas de ônibus de Santo André.
LEMBRETE DE OCASIÃO
“O polo de referência das esquerdas, em torno do qual precisam se unir, é somente um: os direitos dos pobres.”
Frei Betto em A MOSCA AZUL (317 páginas, Rocco, 2006)