Sábado, 20 Abril 2024

A arte comunitária e o (des)monumento no Rio Doce

A arte comunitária e o (des)monumento no Rio Doce

“Monumento de Amor ao Rio Doce”, projeto do artista Piatan Lube, realizou entre os dias 17 e 22 de julho sua primeira etapa no município de Baixo Guandu (noroeste do Estado), o primeiro do Espírito Santo que em que o Rio Doce chega. A proposta é de diálogo com as comunidades afetadas pelo crime socioambiental da Samarco/Vale-BHP, a partir da troca de frutas por cartas de amor ao rio.


Durante esses dias, ele esteve na Praça Getúlio Vargas, no centro da cidade, na Ponte Mauá, que cruza o rio e liga o município a Conceição do Rio Doce (MG), e no distrito de Mascarenhas, uma vila de pescadores. O resultado foram 213 cartas preciosas com mensagens que falam da relação e do amor das pessoas locais com o rio. O próximo passo será chegar à outra ponta do rio no Espírito Santo, a comunidade de Regência, em Linhares, norte capixaba.


Contra a subjetividade individual do artista, ele aponta para uma arte comunitária. Contra os monumentos rígidos, ele clama por monumentos de afetos. Nascido em Minas Gerais, Piatan cresceu em Piapitangui, zona rural de Viana. Possui graduação e mestrado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e seu trabalho busca inspiração nos elementos naturais como água, terra, flores, alimentos e musgos. Também se propõe à escuta das pessoas e da natureza, explorando a relação do ser humano e o seu entorno, convidando todos a redescobrir o planeta onde se habita.


- Que tipo de monumento é esse que você busca construir no projeto?


A ideia que se tem hoje é de monumento rígido, arcaico. De pegar, por exemplo, o Marechal Deodoro e fazer um busto para colocar na praça. Um cara que matou milhares de índios com o rosto estampado o resto da vida. 


Parto de uma ideia estética de que cada sentimento que temos é monumental quando pensamos no bem comum. Então busco outro tipo de monumento, um diálogo que não é rígido, é completamente relacional, um monumento colaborativo, comunitário. O monumento vai dizendo dos lugares. 


À medida que as pessoas vão pegando as frutas, a mandala vai se desfazendo e vamos recompondo a mandala. Quando utilizo no título da obra a palavra monumento, é uma provocação à lógica monumental presente no mundo inteiro. Mas também é para convidar a esse sentimento que é nobre, que é o amor. O rio é um dos maiores monumentos naturais de qualquer lugar. Traz essa provocação, esse paradoxo para esse tipo de contexto, no qual o sentimento da pessoas está aflorando na escrita da carta.


- Qual o significado do formato desse monumento?



É uma mandala, um símbolo muito forte no sentido espiritual e de cura do planeta. Quando feita em território aberto, cria uma espécie de portal, a posição das frutas numa mandala é completamente simétrica e harmônica. Em Baixo Guandu comecei a obra no coreto da praça, que é circular e responde a toda uma lógica de dimensionar a mandala.


- Como surgiu a proposta de trabalhar com os alimentos?


O trabalho com as frutas tem acontecido desde 2013, quando comecei a realizar cozinhas experimentais, a partir do mapeamento de árvores frutíferas localizadas ao redor do Museu de Arte do Espírito Santo (Maes). Colhíamos e cozinhávamos coletivamente. Nasceu então numa relação direta com as frutas públicas.


Depois fiz um projeto de troca de frutas por cartas de amor para a humanidade. Quando o crime ambiental aconteceu, em 2015, fiquei muito chocado porque meu trabalho tem uma relação direta, muito próxima da água, vista como bem universal e memória do mundo. O processo de civilização começa através da água. 


Depois do crime fiquei muito sensibilizado e propus criar uma intervenção urbana com cartas trocando afetos por memórias, porque tem o poder de transformar. Em Baixo Guandu ouvi muitas vezes que essa indenização, o salário pago pela empresa, está meio que calando as vozes da comunidade. O pessoal não fala mal da empresa. Durante a escrita das cartas, começam a rever certas relações íntimas que não conversam pessoalmente, então as cartas conseguem transgredir isso.



- Como avalia o resultado desses dias de atividades em Baixo Guandu?

O trabalho tem uma potencia intimista. Primeiro trabalha com o rio, que é um ponto de fundação da cidade, inclusive. Ou seja, aquela cidade está ali por causa desse rio. A cidade se organiza, o processo de civilização do homem se organiza sempre a partir da água. O trabalho é um pouco silencioso, vai se instala na cidade e fico ali o dia inteiro com as mandalas trocando as frutas por carta de amor. 


A ideia da carta é um dispositivo muito importante justamente por ser intimista. Fiquei sabendo de alguns documentaristas que estão trabalhando com o Rio Doce, que quando a pessoa vai gravar a entrevista, ela trava, não quer mostrar o rosto. Tem toda uma lógica meio opressiva em relação a você declarar sua tristeza com o rio, já que a Samarco [Vale-BHP], através da Fundação Renova, está pagando mensalidades para as pessoas. Então muita gente questiona e fala, ao invés de dar dinheiro para as pessoas, isso precisa ser revertido para recuperar o rio logo. A carta foi pensada justamente por ser esse momento intimista. Você não precisa assinar, caso não queira se identificar por medo dessas futuras represálias. Então, quanto tá você a carta e a memória do rio e sua relação com o rio, isso é muito forte e esse silêncio é ativista.


Baixo Guandu foi muito especial por ser uma cidade completamente afetada, de uma comunidade que sofreu e sofre muito até hoje. Todos os distritos, o processo de irrigação, agricultores que reclamam que não podem regar as plantas com a água do rio mais. 


- Que tipos de carta foram escritas? O que poderia observar em relação à linguagem, poética, conteúdo dessas cartas? O que mais chamou sua atenção nelas?


- As cartas que foram escritas são muito variadas, principalmente por essa relação muito particular que cada um tem. A lembrança da avó que levava as roupas para lavar no rio, levava aquelas bacias com trouxa de roupa na cabeça. As pessoas que iam passar o dia, tinham a cultura, cultivavam o rio na sua vida mesmo. A prática de tomar banho no final de semana, os restaurantes e bares todos direcionados pro rio, ou seja, toda cidade se localiza, se relacionava diretamente com o rio. Então são diversas as respostas. 


Tem uma muito bonita de um cantador, poeta, agricultor, aquele pessoal que se reúne pra tocar uma sanfoninha e vão fazendo rimas na hora. Ele falou uma coisa bem bonita: “o ser humano quando morre vai para o cemitério, nosso rio tá quase morto por tanta lama de minério”. Tem muito poema, a galera se esforça para escrever os poemas. Tem outro muito bonito que um menino fala que o dinheiro que eles recebem não compra toda a força que o rio tinha na vida deles. Tem uma menina de 16 anos que gostei muito do texto dela, fala assim: “Muito mais que doce, o rio...”, começa a escrever a carta a partir dessa informação. As linguagens são variadas, a poética é muito afetiva, muito forte. Estou muito tocado, cada uma delas me tocou profundamente.


- Você fala de uma relação ainda não cicatrizada entre os moradores e o rio depois do crime. Como acha que os monumentos e cartas contribuem para o processo de regeneração?



- Sobre essa relação ainda não cicatrizada, há muita dor, tudo se relacionava diretamente com o rio. Percebo que muitas pessoas não querem mais ficar olhando pro rio, nunca mais entraram na água, nunca mais fizeram aquele caminho que fazia a vida inteira. Cria uma cisma, quase igual aquela coisa de ex-namorada, sabe? Que você tem que ficar um tempo sem ver. Não sei é só isso não, mas é por aí. Acho que quando você fecha o olho e começa a lembrar esse amor, essa relação vai voltando. Então eu acho que a verdadeira revolução começa dentro da gente. Esse pensamento de amor ao rio que pode transformá-lo de fato. Quando você é instigado a pensar uma maneira de amar o rio de novo, começa a imaginar soluções. 


Isso é muito profundo, essa lógica operacional da arte de transformar primeiro dentro para depois fora, é muito complexa, porque a estética sempre é fora. Por isso nós chamamos de arte social, comunitária, porque é uma outra energia de construção artística. A gente pode chamar até de práticas sociais e acredito que a partir daí, de alguma maneira, você vai voltando, porque é muito forte o que esse povo viveu e está vivendo ainda. 


- Quais os próximos passos do projeto?


- Daqui a 15 dias, em agosto, vou nas aldeias dos índios Krenak. Faço questão de ir, porque eles têm uma relação muito forte com a água, é muito dura a relação deles. Tem uma história muito mais forte rolando e até o modo como eles interpretam as informações naturais dentro da cultura e modo de pensar deles, então é muito bacana captar essas informações também. Essa semana vou em Regência para o encontro dos afetados do Rio Doce, com lideranças de pescadores, para conviver, participar e fazer uma intervenção lá, e vamos participar do Festival Regenera em novembro em Regência. Ideia é montar também uma grande exposição em um museu, estou escrevendo o projeto agora, para tentar captar fundos para montar a exposição. Pretendo publicar, tenho algumas parcerias que ainda não posso divulgar.

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