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Morre Mestre Terto, o mais longevo da cultura popular capixaba

Ele comandou o Ticumbi de São Benedito por 64 anos, mantendo viva essa tradição única do norte do Espírito Santo

Tertolino Balbino traz poesia no nome. Mestre Terto, como ficou conhecido, comandou por 64 anos o Ticumbi (ou Baile de Congo) de São Benedito, um dos poucos grupos remanescentes desta manifestação cultural típica dos negros do Sapê do Norte, região quilombola localizada entre Conceição da Barra e São Mateus. Na noite desse sábado (16), às vésperas da Páscoa e a 11 dias de completar 89 anos, ele faleceu depois de tempos adoecidos, em que permanecia como Mestre Emérito.

Não seria exagero dizer que foi um dos mais importantes mestres da cultura popular capixaba do século passado e deste que ainda está no começo. Por sua dedicação, sabedoria e fé, sua capacidade de manter um grupo unido, preservando e reinventando tradições, ativo e se renovando ao longo do tempo, desafio cada vez maior nos tempos de tantas distrações. 

De janeiro de 2022, um dos últimos registros de Mestre Terto, em sua casa, trajado com a vestimenta do Ticumbi de São Benedito. Foto: Lígia Sancio

Mas entre mestres e mestras, não há como comparar. Cada um com seu ofício, seu compromisso, sua comunidade, seu território, com diferentes manifestações que fazem pulsar de forma esplêndida a vida pelos vários cantos do país. Fugindo de comparações, Terto foi único. Deixa um legado impossível de se medir. Manteve firme o Ticumbi por mais de meio século no território quilombola e o projetou para além das divisas do Espírito Santo, além de permitir novos diálogos e ressignificações, como nas apresentações conjuntas com a Orquestra Sinfônica do Espírito Santo (Oses), ocupando palcos antes inimagináveis para esses negros do norte capixaba.

Assumiu o comando do Ticumbi com apenas 21 anos, após a morte do Mestre Luiz Hilário, mostrando que o ofício de ser mestre não depende da idade, mas da capacidade e da liderança. Logo, assumiu o desafio de levar o grupo para representar o Espírito Santo no Congresso Internacional de Folclore em São Paulo, em 1954.

Em entrevista a Rogério Medeiros, quando tinha já 72 anos de idade e meio século de mestre, dizia que “ainda aguenta mais um pouco à frente do grupo para passar o bastão de mestre para outro negro conduzir as homenagens da negritude ao santo”, conforme relatou o jornalista. Passou-se mais de uma década até que em 2018 ele transmitisse o comando do Ticumbi para um novo mestre, Berto Florentino. Mas até seu último ano de vida, acompanhou os festejos. 

No 1º de janeiro de 2022, quando Berto, adoecido, não pôde comandar a tradicional apresentação anual na Igreja de São Benedito, lá estava Mestre Terto, apesar das dificuldades na vista, ouvindo atentamente o grupo se apresentar e exercendo a mestria da maneira que ainda podia, como Mestre Emérito. Quem é rei, dizem, nunca perde a majestade.

Tertolino Balbino, felizmente, teve em vida reconhecimento com diversos títulos e homenagens em vários âmbitos. Certamente não tanto quando merecia, mas muito mais do que tantos mestres que permanecem no anonimato fora de suas comunidades. Agora eterno, Mestre Terto continua merecendo ser sempre lembrado, homenageado e seguido como exemplo, para que a cultura siga viva, como resistência aos atropelos da modernidade pausterizada.

‘Um baluarte na trincheira do eucalipto’

Com o título acima, Rogério Medeiros nomeou a mencionada entrevista feita com Terto para o Século Diário, que trazia no subtítulo “Meio século de resistência”. A resistência e a mestria seguiram até o fim da vida, assim como os eucaliptos ainda seguem sendo paisagem presente no Sapê do Norte.

O jornalista descreve a importância de Terto por ter sido um dos grandes responsáveis para que a manifestação do Ticumbi, que existe somente nesta região do Espírito Santo e em nenhuma outro lugar do mundo. Uma celebração de devoção aos santos que inclui elementos de poesia, música e encenação e um percurso tradicional por comunidades e Igrejas, que se repete a cada final de ano, culminando na apresentação na manhã do primeiro dia do ano seguinte.

Sobre a importância do mestre para a permanência desses festejos, Rogério Medeiros explica. “Ele tem origem no quilombo, o quilombo do Negro Rugério, assim como tiveram origem mais cinco ticumbis, mas que sucumbiram com a entrada do eucalipto no território quilombola. Uma diáspora retirou da área deles mais de 50 mil negros, deixando pouco mais de 3 mil, assim mesmo prisioneiros do eucalipto. Só sobreviveu este ticumbi de mestre Terto, que faz com que ele seja hoje venerado pelos negros da região, como responsável pelo resgate da principal manifestação da cultura negra do norte do Estado”. Foi a persistência do Ticumbi de São Benedito, apesar das dificuldades e mudanças provocadas pela expansão do monocultivo de eucalipto na região,  que permitiu que a festa seguisse viva e surgissem ou ressurgissem outros três Bailes de Congo hoje atuantes na região. 

Mestre Terto, à frente, conduzindo o Ticumbi. Foto: Rogério Medeiros

Revisitando a entrevista, temos alguns importantes aportes de uma autobiografia de Tertolino. Córrego de Santana, em Conceição da Barra, região antigo Quilombo de Nego Rugério, foi o berço de sua presença no mundo. Cresceu na roça mesmo, plantando frutas, café, e produzindo farinha, principal produto da região por séculos, e até hoje uma marca da região. A safra era colocada no lombo dos animais para ser levada para venda até as regiões centrais de São Mateus e Conceição da Barra.

Terto, perguntado sobre o que é ser mestre de Ticumbi, comentou: “Eu acho que o mestre tem que tirar a brincadeira e passar para os outros. E ficar na frente para manobrar o grupo”. Sobre “tirar a brincadeira”, explicou sobre os versos feitos que fazem perto do festejo, com rimas renovadas a cada ano. “Eu tiro tudo de cor, vou escrevendo, separando as partes para depois, nos ensaios, estar tudo decorado. Depois que eu faço a brincadeira, que está tudo certo, eu posso escrever para deixar como lembrança, mas eu tiro de cabeça”, diz, evidenciando o poder da oralidade nas comunidades quilombolas. Apesar das quase duas horas de apresentação, tudo ficava guardado na memória.

Ser mestre, contou, não é nada fácil. Exige uma dedicação permanente, de tempo, conhecimento e relações sociais. “E para nós, os mestres, é uma dificuldade porque eu carrego um peso há 50 anos, que tem que carregar a cruz nas costas, mas não tem jeito mesmo. Um dia desses eu estava falando que o meu Ticumbi, a maioria fala que você está sempre aparecendo na televisão, mas eles não sabem o peso que eu carrego para botar o grupo em dia”. Algo que fazia não sem sacrifício mas com muito amor, e sobretudo, devoção, como homem de fé que foi.

Que São Benedito siga o abençoando e acompanhando em sua nova jornada. Viva Mestre Terto!


Mais um Ticumbi de pura superação

Sem seu mestre, adoecido, manifestação do povo negro percorreu Conceição da Barra, falou da pandemia e criticou Bolsonaro


https://www.seculodiario.com.br/cultura/mais-um-ticumbi-de-pura-superacao

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