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Como a revitalização de uma escola na periferia da Serra mudou a vida dos alunos

Documentário capixaba “Adolescer” integra mostra nacional sobre cotidiano de jovens estudantes na pandemia da Covid-19

Acervo 55CINE

A Escola Estadual Jones José do Nascimento, no bairro Central Carapina, na Serra, já era referência nacional quando o diretor Gustavo Moraes e a produtora Leandra Moreira se viram com a oportunidade de concorrer a um edital para apoiar a produção de documentários sobre o cotidiano de jovens estudantes durante a pandemia da Covid-19. 
Ganhadora de vários prêmios educacionais, a equipe gestora da escola havia conseguido, em quatro anos, sob liderança da diretora Juliana Roshner (atual secretária municipal de Educação de Vitória], transformar a realidade dos alunos e professores, refletindo em benefícios para as famílias e mesmo a comunidade como um todo.
“Conhecemos a história da Jones através da Juliana Rohsner na produção de um outro projeto. Imediatamente ficamos interessados na história de uma escola que havia passando maus bocados e seria fechada. Isso em um bairro onde a educação é ainda mais essencial para possibilitar novas perspectivas e futuros verdadeiramente transformadores”, pontua Leandra.

“Em quatro anos de gestão, com a Juliana capitaneando esse processo, essa escola virou referência em educação. Conversamos com ela sobre a possibilidade de fazermos o documentário com o foco nos adolescentes e o quanto tudo isso representou para eles. Daí, desenvolvemos o projeto”, conta a produtora, sobre a gênese do Adolescer, realização da Produtora 55 CINE, que será lançado no dia 4 de julho (veja aqui o trailer).

Gustavo conta que a primeira etapa do projeto, antes das filmagens, foi de visitas à escola para conhecer a realidade da comunidade a partir do relato dos próprios moradores. “Passamos cinco meses indo à escola sem câmeras, conversando e entrevistando a comunidade escolar para entender o que era relevante para eles sobre aquela escola e a participação deles nesse processo. Só depois disso, é que filmamos. Esses cinco meses foram importantes para que todos nos conhecêssemos e, em nossa opinião, como consequência, o material ficou o mais natural e representativo da realidade vivida na escola e no bairro”, explana.
Acervo 55CINE

Em seguida, a captação de imagens durou três meses, em dias não sequenciais. “Variava muito, pois era de acordo com a disponibilidade dos entrevistados e dentro da realidade da própria escola. Agora, sem dúvida, realizar um filme durante a pandemia e respeitando todos os protocolos de saúde foi um desafio e exigiu de nós da equipe sempre muita atenção com todos os envolvidos. Superamos bem, acho, mas não gostaria de repetir. O distanciamento social é uma questão quando você faz um filme onde a aproximação física e emocional é tão importante”, pondera o diretor. 

Inspiração 

Apesar da naturalidade e fidelidade dos relatos sobre resistência e superação, Gustavo afirma que “o filme não dá soluções”, mas “identifica questões que devem ser refletidas pela sociedade como um todo”. O sucesso alcançado na Jones, ressalta, é resultado de “uma colaboração entre todas as partes envolvidas: alunos, diretoria, professores, pais e comunidade”. Receita que, pondera, pode ser válida “para a educação pública de um modo geral”, pois “se não trabalharmos juntos, não teremos uma educação de qualidade para todos”. 

Inspirar pessoas é, talvez, o maior objetivo do documentário. “Queríamos tentar registrar em imagens e depoimentos a essência de algo tão orgânico e natural e que esse registro pudesse, de algum modo, servir de inspiração para outros tantos alunos que passam por experiência semelhante e também para escolas por aí que enfrentam os mesmíssimos desafios que a Jones vive em seu dia a dia”.

‘Fui recebida com uma ‘biscoitada’ na testa’

Braço direito da diretora Juliana desde os primeiros meses à frente da Jones Nascimento naquele início de 2016, a coordenadora Françoise Santos de Oliveira, hoje sua assessora na Seme da Capital, lembra que foi recepcionada na escola com “uma biscoitada na testa”, logo que chegou no estacionamento, depois de ver alunos subindo nas carteiras numa total falta de controle. 

“O diretor e o coordenador anteriores haviam saído da escola escoltados pela polícia. Eles tinham uma política muito autoritária, com muitas suspensões e transferências de alunos, as famílias se rebelaram, a comunidade queria entrar armada dentro da escola. Era o bairro mais violento do Estado e o quinto do Brasil, conhecido como Sovaco da Cobra e outros nomes peculiares”, relata Fran, como é carinhosamente conhecida. “Eu era a quarta coordenadora que passava por lá só naquele ano! E estávamos em abril!”. 

Fran percebia que a escola “não tinha objetivo de aprendizagem, era um depósito de meninos. Eles saíam do nono ano sem fazer as quatro operações, sem escrever o próprio nome direito. Eram tantos problemas pedagógicos, que ninguém via que o banheiro estava sujo, que tinha pino de cocaína embaixo da pia, pontinha de maconha na janela”, narra. 

Ao longo de quatro anos, os índices de aprendizagem subiram, os prêmios em dinheiro se sucederam e trouxeram mais recursos para investir em mais melhorias, as ocorrências policiais praticamente desapareceram, a infraestrutura da escola melhorou incrivelmente, ganhando sala de vídeo, quadra, biblioteca. Festas e comemorações foram envolvendo todos os alunos, professores, os comerciantes do bairro, as famílias. O afeto, a empatia, o respeito e o desejo de melhorar de vida passaram a dar o tom do dia a dia escolar. 

Fran conta que, olhando hoje, nem consegue acreditar na coragem que elas tiveram. “Encaramos professores, pai, mãe, traficante que colocou arma na nossa mesa reclamando que a estávamos tirando os meninos do tráfico e colocando câmeras na escola. Derrubamos na mão um tapume improvisado por onde os meninos fugiam da escola”, elenca.

Acervo 55CINE

As transformações que a equipe gerou na escola são literalmente incontáveis. Não cabem em uma matéria de jornal. Desde fazer funcionar a biblioteca, após quase cinquenta anos de existência da unidade, ou construir uma quadra e até fazer a Festa Junina anual e o Dia do Estudante, e mesmo pequenas ações que, no começo, abriram as portas para as maiores, como entregar xampu de piolho e escovinha de lavar os pés para as crianças, ou espalhar cartazes pelos corredores incentivando boas ações, como “seja gentil”, não corra nas escadas”… 

Ouvir o relato de Françoise, por apenas uma hora e meia, provocou emoções e trouxe nó na garganta da repórter em vários momentos, tamanha a coragem e a beleza do pouco que pôde ser contado. Coragem e beleza com samba no pé, diga-se de passagem, pois a coordenadora é passista de escola de samba, talento que, acredita, ajudou a ser aceita e respeitada pelos jovens. 

“Em muitos momentos eu falava a mesma língua que eles, falava gírias, batia na mesa, entrava na frente de aluno que queria dar cadeirada em professor. contava minha história de vida, de mulher pobre, preta, órfã de mãe, que passou fome e que lutou muito para conquistar o que tenho. As meninas viam em mim uma referência. Porque eu sempre fazia questão de ir arrumada, de salto alto, maquiada. Elas passaram a aceitar seus cabelos e se cuidar mais também”, diz. 

Uma das maiores emoções foi levá-los ao cinema. “Meninos choraram de emoção! Nunca tinham ido ao cinema, nunca tomado um açaí. Muitos nunca tinham saído do bairro”. 

Acervo 55CINE

As conquistas foram atraindo mais apoios, incluindo a Polícia, o próprio governo do Estado e até o Exército. “Conquistamos a liberdade de fazer um regimento próprio para a Jones. E construímos esse regimento junto com os alunos”. 

Em meio às vitórias, muita tristeza e cansaço também. “Perdemos muitos alunos para o tráfico, fomos em vários velórios e fomos ameaçadas. Um aluno desenhou na perna até sair sangue que queria ‘a cabeça da diretora’. Ela chamou para conversar, ele pediu desculpas. Continua no tráfico, mas respeita o espaço da escola, é carinhoso com a gente”, conta Fran. 

Se pensava em desistir? “Todo dia eu pensava em desistir. Era muito doido, desesperador. Às vezes estava descendo a rua e tinha um tiroteio, já fiquei perdida no bairro, dentro do carro, no meio de um tiroteio. Mas em casa pensava nas crianças, nos professores, nas mudanças que já tinha alcançado e via que não podia desistir. Antes de ser professora, coordenadora, sou humana”.

A saída da Jones aconteceu a partir do convite que Juliana recebeu para assumir a Educação da Capital e a convidou para acompanhá-la na nova empreitada. “Eu chorei muito quando saí na escola, não teve despedida por causa da pandemia”, conta Fran. Mas os vínculos afetivos se mantêm.

“Ontem recebemos mensagem de uma aluna sobre a importância desse trabalho na vida dela. Acompanho vários alunos. Um que se tornou advogado, outra que trabalha na indústria, que montou seu próprio salão de beleza. Uma aluna passou em Medicina em segundo lugar! Para a gente tudo isso é motivo de glória! Nunca vamos nos cansar de contar a história da Jones. Ganhamos muitos prêmios, mas a maior recompensa é ver a evolução dos alunos”. 

O documentário de Gustavo e Leandra se soma a essa necessidade de fazer a história ecoar nas vidas de muito mais pessoas. “Inspirar outras pessoas, para a gente, é muito legal. Levar a mensagem de que, se você quiser, você faz. É só ter amor pela comunidade que você trabalha”, ensina Fran. ´

Programação 

A produção do capixaba Adolescer foi possível por meio do Edital Conexão Juventudes, do Instituto Unibanco, em parceria com o Instituto de Políticas Relacionais (IPR) e a Brasil Audiovisual Independente (Bravi), que selecionou projetos de seis estados brasileiros, cada um ganhador de um prêmio de R$ 130 mil.

Divulgação

Cada filme tem duração de 26 minutos e passam por temas como situação de estudantes imigrantes, educação indígena e afro-centrada, falta de acesso à internet, violência urbana e dificuldades para compatibilizar emprego e estudo.

As exibições acontecem por meio de parcerias com TVs educativas. O cronograma prevê a exibição de um filme por semana, de 4 de junho a 9 de julho, às 11h30 nas emissoras Rede Minas (MG), TV Ceará (CE) e TV Sagres (GO); às 12h na TV Antares (PI); e às 14h na TV Educativa do Espírito Santo – TVE (ES). Além disso, nas segundas-feiras consecutivas, de 6 de junho a 11 de julho, também na TV Universitária (RN), sempre às 18h. 

A primeira exibição foi de Onde aprendo a falar com o vento (dias 4 e 6 de junho); seguida de Contraturno (11 e 13 de junho); desConectados (18 e 20 de junho); Antes do livro didático, o cocar (25 e 27 de junho); Adolescer (2 e 4 de julho); e Terremoto (dias 9 e 11 de julho).

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