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‘Privatização e financeirização ameaçam o direito à educação desde antes da pandemia’

Gilda Cardoso e Vera Perone denunciam ingerência do privado sobre o público, que gera lucro até na Bolsa de Valores

Rede Social/Divulgação

“A privatização e a financeirização da educação ameaçam o direito à educação dos brasileiros e capixabas”. A afirmação resume a essência da denúncia feita pela doutora em Educação Gilda Cardoso, coordenadora do Laboratório de Gestão da Educação Básica da Universidade Federal do Espírito Santo (Lagebes/Ufes). 

O Espírito Santo é área de atuação dos principais grupos, empresas e institutos privados de educação que atuam no Brasil há duas décadas, como Positivo, Natura, Airton Sena e Lemann, que incidem diretamente sobre as prefeituras, vendendo produtos como cursos, apostilas, assessorias e plataformas. 


Além deles, a ONG Espírito Santo em Ação, vinculada à Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), tem pautado as políticas públicas do setor em nível estadual, viabilizando projetos como o Jovens de Futuro, cuja matriz é o “empreendedorismo” , a Escola Viva, inspirada numa experiência de Pernambuco pelo Movimento Colabora Educação, e a implantação do novo ensino médio direcionada pela Fundação Lemann.

Todas essas organizações integram o movimento Todos Pela Educação, “que na verdade é um movimento de advocacy para incidir nas políticas educacionais tanto do governo federal quanto de estados e municípios, pautando currículo, formação de professores e avaliação em larga escala para premiação ou punição”, explica Gilda.

A lógica é a do desempenho com matriz empresarial, ressalta. Ou seja, exatamente o oposto do que sustenta uma educação pública e que fortalece a democracia em frágil construção no País, além de contrariar o princípio da gestão democrática, já que “esses grupos não são obrigados a prestar contas para a sociedade”, denuncia.

Atualmente, por exemplo, a plataforma de gestão dos municípios, por articulação da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), é a Conviva, do Instituto Natura. “A população não tem acesso aos dados dessa plataforma”, aponta Gilda, que esclarece ser muito mais eficiente, barato e seguro a parceria dos municípios com as universidades e institutos federais, que “possuem excelência” no assunto, sejam plataformas de gestão e educação, sejam formações para educadores. Mas para reverter esse equívoco, assevera, é preciso decisão política dos governos.

“Se os empresários querem fazer parte da construção de políticas públicas de educação, deveriam ter assento nos órgãos públicos de formulação, acompanhamento e controle junto com as demais instâncias da sociedade civil”, aponta a coordenadora do Lagebes, citando conselhos de escolas. conselhos e fóruns de Educação, sindicatos, associações acadêmicas e outras direcionadas para garantia dos direitos, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Disparidade de investimento

“Os governos não deveriam permitir essa simbiose oculta entre os interesses do mercado e dos cidadãos”, repudia. “O dinheiro investido dificilmente é identificado nas prestações de contas dos governos”, conta.

Matéria recente publicada na editoria de E-Investidor do Estadão, discorre sobre as agruras das companhias privadas de educação na bolsa de valores, por ter sido um dos setores mais afetados durante a pandemia, com elevada inadimplência e pressão das famílias para baixar os preços das mensalidades. Mas a matéria também destaca como o contexto pandêmico tem projetado positivamente o Ensino à Distância (EAD), principalmente por meio de decisões do governo federal, como o aumento do limite de aulas online dos cursos presenciais, de 20% para 40% da carga horária.

Outro dado animador, ressalta o jornal, é o pacote de ajuda de R$ 16 bilhões apresentado no Senado, que prevê a liberação do uso do FGTS de aluno ou familiar para pagamento de mensalidade por até cinco meses; um auxílio emergencial para pagamentos de mensalidades, no valor de R$ 400 mensais para educação infantil e básica e de R$ 700 para o ensino superior; além de uma linha de crédito de até R$ 40 bilhões para financiar as mensalidades de 2020 e 2021 de alunos de graduação e cursos técnicos de nível médio.

Já para a educação pública, o que tramita no Congresso Nacional é um auxílio de R$ 31 bilhões, por meio do PL 3165. Ou seja, para o setor público, que detém 80% das matrículas da educação básica, é pensado um pacote com apenas o dobro do valor destinado às privadas.

“Os estados perderam 28 bilhões no mínimo em arrecadação que deveriam ser destinados à educação”, salienta. Em contrapartida, o PL prevê R$ 31 bilhões para os 26 estados, 5.560 municípios e o Distrito Federal. “O valor é insuficiente”, avalia Gilda.

Sedução
Para trilhar um caminho diferente, como vêm fazendo nossos vizinhos Argentina e Uruguai, onde a educação como direito e bem público já está mais consolidada, é preciso uma definição de ordem política que parta do Estado e da sociedade.

“Muitas vezes nem professores sabem do perigo que é assumir esses projetos, pois apostilas ou formação que incentive habilidades socioemocionais, bandeira do Instituto Ayrton Senna, ou o empreendedorismo do Instituto Itaú, parecem bem interessante”, expõe Gilda. “Que mal poderia haver?”, ironiza. 
As famílias também são vítimas dessa sedução, acrescenta, pois muitos pais e mães acham que os materiais apostilados, com logomarcas bonitas e famosas, são um ganho para seus filhos, que poderão “estudar a mesma coisa que os alunos de escolas de elite”, onde as mesmas empresas e institutos também vendem seus produtos. Desconhecem, no entanto, que os produtos são diferentes para os diferentes públicos e essa diversidade é um dos trunfos destacados nas bolsas de valores para valorizar as ações das empresas, que duelam entre si por fatias mais fartas do próspero mercado.

‘O professor não sabe, precisa receber pronto’
O lamentável e oneroso engodo capixaba se repete por todo o Brasil, lamenta Vera Perone, coordenadora do Grupo de Pesquisa Relação Entre o Público e o Privado na Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (GPRPPE/UFRGS), que pesquisa o assunto há vinte anos, no Brasil, na Europa e na América Latina, e atualmente produz publicações por meio de uma rede de pesquisadores em mais de dez estados brasileiros, além de países como Argentina, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Chile, Inglaterra e Portugal. 
“As prefeituras precisam ficar mais atentas. Os municípios pagam caro por aulas ruins e antiquadas. O dinheiro público é de todos, é preciso empregar melhor esse recurso, com formação de qualidade e não com compra de material pronto. O professor é um intelectual”, adverte a acadêmica, lembrando uma fala muito praticada pela mentora do Instituto Airton Senna, Viviane Senna, de que “os professores não sabem, por isso a gente tem que mandar o material fortemente estruturado”.

Além de pronto, o conteúdo é também fortemente monitorado, acrescenta Vera. De escritórios em São Paulo, essas organizações monitoram o dia a dia dos professores nos mais distantes rincões do País.

A falta de autonomia para o processo criativo do professor é muito grave, salienta a pesquisadora. “Os professores se formam, são profissionais, intelectuais, trabalham com o conhecimento, que é muito diferente de mercadoria. Como vem uma empresa e diz como ele deve trabalhar? Isso é muito grave para a democracia. O professor passa a ser mero executor. Quem determina isso tem muito poder. Como passa esse poder para uma instituição privada que tem seus próprios interesses? Como pode um banco [Instituto Unibanco], por exemplo, determinar o que os jovens vão aprender no ensino médio?”, questiona.

A pandemia, explica Vera, não inventou a pressão das instituições privadas sobre a gestão e os recursos valiosos da educação pública, apenas intensificou o assédio. “Intensificou e justificou a entrada desses produtos. Como agora tudo é urgente, então não se questiona coisas que questionariam em outros tempos”, expõe.

O perigoso processo de mercantilização da educação, além dos prejuízos financeiros e pedagógicos a curto prazo, também prejudica a construção da própria cultura democrática no Brasil, contextualiza Vera.

Lógica democrática x lógica meritocrática
“A educação no Brasil só se universalizou nos anos 2000. Teve a perspectiva de universalização na Constituição de 1988, mas só foi se universalizar mesmo nos anos 2000. E, por enquanto, só o ensino fundamental. O médio ainda não e o superior ainda menos”, relata. 
“Nós não temos uma cultura democrática. A naturalização das perdas é constante na nossa história. Por isso o papel da escola pública é tão importante. A ideia da competitividade, do setor privado, arrasa com todo esse trabalho”, analisa. 
Enquanto o público trabalha a construção de valores e princípios da democracia e do coletivo, o privado traz outras relações sociais e de poder, de subordinação. “Não aceitam quem constrói outros princípios de sociedade”, compara. 
Mas é preciso manter o foco na educação para todos, de qualidade, laica e pública, como um direito e um bem público. Para isso, acentua, “a gente acredita muito fortemente na democratização da informação e do conhecimento”. Por isso o GPRPPE disponibiliza todas as suas publicações gratuitamente na internet e tem promovido uma série de lives sobre a relação entre o público e o privado na América Latina.

O caminho é o da “educação como bem público inegociável”, ratifica Gilda, em consonância com a colega gaúcha. “A lógica do reformismo gerencialista empresarial não é adequada ao direito à educação, porque escolas não são empresas. Escolas formam cidadãos e qualificam para o mundo do trabalho, o que não quer dizer ensino profissionalizante ou empreendedorismo. Isso não deu certo em nenhum lugar do mundo”, explana.

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