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Abelhas sem ferrão: por uma regulamentação que inclua quem cria e cuida por amor

Consulta pública apresenta texto que elitiza uma atividade tradicional, alerta Associação de Meliponicultores

“A gente cria pelo prazer de contribuir com a natureza. Eu comecei por uma paixão, amor à primeira vista. Depois de seis anos, agora que estou tirando um pouco de mel, fazendo sabonetes artesanais. A minha netinha é bem envolvida também. Encontra os zangões, as princesas [abelhas que se tornarão rainhas das colmeias]…é uma paixão para a família toda”. 
O relato apaixonado é de Gleide Maria Aparecida Ferreira, meliponicultora de Regência, no litoral de Linhares, norte do Estado, e representa uma fatia considerável da realidade dos cerca de três mil criadores de abelhas sem ferrão localizados nas mais diversas regiões do Estado.
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Estimativa da Associação dos Meliponicultores do Espírito Santo (AME-ES) dá conta de que mais de 90% dos criadores capixabas são não comerciais, ou seja, possuem menos de 50 caixas de abelhas. E, entre eles, a maioria não têm a venda de produtos – mel, própolis, geleia real – como principal objetivo do trabalho de criar e cuidar, mas quer se regularizar para sair da clandestinidade a qual estão submetidos, devido à falta de uma normativa estadual que regulamente a atividade. “Menos de 3% desses três mil estão registrados como criadores comerciais”, observa o presidente da entidade, Adailton Gonçalves Pinheiro. 

Até o momento, o que existe é a Lei Estadual nº 11.077/2019, mas sua regulamentação ainda não aconteceu. Na última terça-feira (27), o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) abriu consulta pública para uma proposta de Instrução Normativa (IN) nesse sentido. A princípio aberta até o dia 10 de janeiro, visa contribuir para definir uma IN que irá estabelecer “as diretrizes e procedimentos para emissão de Autorização de Manejo de Fauna para a atividade de meliponicultura, a criação de abelhas sem ferrão”. 

A regulamentação é uma luta antiga da associação e vinha sendo discutida na Câmara Técnica Estadual de Apicultura e Meliponicultura há quatro anos. “A AME-ES entende que quanto mais pessoas regularizadas, maior será a força da atividade como um todo”, afirma o presidente. 

Em novembro passado, a AME-ES solicitou o envio da última versão do texto da IN e a retomada das discussões, que estavam paradas há muito tempo, por falta de convocação por parte do Iema. “Mas não recebemos resposta nenhuma e fomos surpreendidos com a consulta pública. Ao invés de rediscutir, ele lançou a consulta, com um texto que não é o que vinha sendo proposto pelos meliponicultores. Sem falar no prazo da consulta, que é muito curto, duas semanas, e num período ruim de mobilização, com muita gente em recesso pelas festas de fim de ano”. 

‘Ninho-isca’

O texto atual, alerta, praticamente impede que os criadores não comerciais – que possuem menos de 50 caixas de abelhas – consigam o registro, porque cria proibições e exigências inalcançáveis para eles. Proíbe, por exemplo, que eles façam capturas de enxames na natureza por meio de “ninhos-iscas”, que são pequenas caixas ou garrafas com um atrativo – geralmente geopropólis, mistura de terra com própolis e álcool de cereais. Ao atrair um novo enxame, o ninho-isca é transportado para o meliponário, incrementando o plantel do criador.

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A estratégia, explica, é milenar e, se feita com os devidos cuidados, não só não é predatória como benéfica para as abelhas. “Não existe ocos na natureza com abundância para que elas se multipliquem naturalmente. Com essa carência de ocos nas árvores, elas não acham lugar para nidificar e se beneficiam dos ninhos-iscas”. 

Nas cidades, essa carência de ocos naturais se reflete em ninhos sendo feitos pelas próprias abelhas em locais inusitados, acentua o meliponicultor Ricardo Braga, representante da AME-ES na Câmara Técnica. “Fazem colmeias em buracos de tijolos, padrões de luz, churrasqueiras ou fogões à lenha pouco usados”. 

Em tempos remotos, essa estratégia de atração das abelhas era feita das mais variadas formas. “Estamos tratando de conhecimento tradicional, usado antes da chegada do açúcar dos portugueses. O conhecimento dos maias sobre abelhas sem ferrão é milenar, maravilhoso. Índios brasileiros também têm vasto conhecimento”, contextualiza. 

Proibir essa prática para os criadores não comerciais de hoje, afirmam os meliponicultores, “é um atraso, uma elitização”. A norma “não está justificada” no texto e não tem qualquer embasamento prático, na avaliação da associação. “O certo seria colocar na regulamentação que, para usar iscas, que seja feito através de autorização do Iema e do proprietário do local onde vai ser colocado, excluindo, claro, áreas dentro de unidade de conservação”, propõe Adailton.

“A Instrução, como se apresenta, fortalece os criadores comerciais, mas pode impedir o acesso de pessoas com menor renda. É a elitização de uma atividade tão tradicional!”, reforça João Luiz Teixeira Santos, ex-presidente da entidade. 

Outro aspecto inapropriado da proposta de IN, na avaliação da AME-ES, é a exigência de que o pequeno criador esteja vinculado a alguma instituição de pesquisa. “Inviabiliza a própria norma. Considerando o grande número de criadores, causará um gargalo para atendimento da demanda por parte dos pesquisadores”, expõe. 

Melipona capixaba

Uma preocupação especial é em relação à Melipona capixaba, espécie endêmica do Espírito Santo e classificada com ameaçada de extinção na categoria Vulnerável. Segundo a legislação federal, é preciso que o produtor faça um plano de manejo para trabalhar com a espécie, o que é algo inalcançável para a maioria. 

O cuidado no manejo da espécie é essencial para sua conservação. Um aspecto relevante é que ela hibrida com outras, ou seja, cruza com outras espécies, criando novas espécies, mais resistentes ao ambiente. “Se a melipona nordestina chegar na região de Domingos Martins, por exemplo, pode acabar com a capixaba”, alerta Ricardo Braga. 

O trabalho dos criadores tradicionais e não comerciais, no entanto, não precisa ser inviabilizado para que essa proteção aconteça. “Parte dos criadores trabalha a espécie há dezenas de anos, e muitas vezes em cadeia de herança familiar que antecede ao próprio registro da espécie. Assim, há de se considerar o necessário respeito à tradição cultural, não criando empecilhos ao exercício da atividade, que aliás, é fundamental pera conservação da uruçu capixaba”, pontua João Luiz.

Ritiele Alcântara de Oliveira

Tradição e participação

“Tem de tudo. Tem meliponicultor com dinheiro que traz abelha do Pará de outros lugares e cria aqui, sem qualquer preocupação ambiental. E tem muita gente que faz por amor, com todo o cuidado para proteger as espécies”, conta Ricardo Braga. Por isso, “a gente precisa de uma regulamentação urgentemente”, ratifica. 

“O resto do país quer simplificar demais, trazendo os problemas da hibridação, por exemplo. Nós podemos fazer algo muito bom aqui, mas é preciso que o processo seja participativo, o que não está acontecendo. Apesar de quatro anos de discussões na Câmara Técnica, percebemos, nós, sociedade civil, que estamos sendo ouvidos mas não relevados, o Iema não considerou nossos posicionamentos”, reivindica. 

“A consulta não está sendo feita com pesquisa de campo. Não considera o aspecto social da atividade. A maioria dos criadores são produtores rurais com dificuldade de internet. E eles vão continuar informais ou se escondendo dos órgãos que deveriam facilitar a vida deles”, protesta Adailton Gonçalves.

“Tem coisas que é difícil para quem mora no interior. Às vezes aqui fica dois a três dias sem internet, às vezes sem energia. Vejo muita dificuldade da forma que eles querem fazer. E tem gasto o ano todo. Só de cera, comprei 17 kg. Gasto 20 a 25 quilos de açúcar por mês quando está em baixa temporada, sem florada na natureza. Fora as caixas, que elas roem. É o tempo da gente, cuidando”, ilustra Gleide. “Se é o que eu estou entendendo, vou ter que parar de criar abelhas, de fazer iscas”, lamenta.

“É uma preocupação e nós estamos bem encaminhados para pedir ao presidente do Iema [Alaimar Fiuza] que volte com as reuniões da Câmara Técnica ou que dê mais tempo para a consulta pública”, afirma o presidente da AME-ES. “O ES é uma referência na meliponicultura brasileira. É uma atividade tradicional no nosso Estado. Não podemos deixar que as pessoas tenham medo dos órgãos ambientais, temos que tê-los como aliados”, reforça. Com a regulamentação, “a gente pode chegar a uma IG, identidade geográfica para mel, própolis, para os produtos dessas abelhas”, projeta. 

Para além do potencial econômico, João Luiz volta a destacar o caráter mais ambiental e mesmo terapêutico da atividade, no que se refere ao perfil predominante entre os criadores capixabas. “A maioria dos meliponicultores é composta por pessoas simples e que mora mais isolada e sem acesso aos pesquisadores. São essas pessoas as mais focadas na criação com pegada mais ambiental, e também, as que mais se interessam em promover resgate de salvamento e em conseguir as colônias de maneira mais natural”.

“As abelhas são minhas filhinhas. Estava com depressão profunda e elas me ajudaram bastante a parar com remédio forte. É esse tipo de herança que a gente tem que deixar para o futuro, tem tanta coisa ruim no mundo! Pretendo deixar isso para os meus netos”, profetiza Gleide.

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