Sexta, 19 Abril 2024

Caparaó capixaba dá exemplo de turismo organizado de forma comunitária

Caparaó capixaba dá exemplo de turismo organizado de forma comunitária
“Antigamente era só a enxada, agora tem o turismo também, né”. A fala da agricultura aposentada, costureira, artesã e dona de casa Maria Helena da Silva, a Lena, dita em uma das reuniões do Conselho Municipal de Turismo de Divino de São Lourenço, na região do Caparaó Capixaba, dá uma ideia do impacto que o turismo tem provocado no cotidiano da pequena vila do Patrimônio da Penha, com seus pouco mais de 500 habitantes, encravada aos pés da Montanha Sagrada, a Serra do Caparaó, com seu Parque Nacional, florestas exuberantes, nascentes e cachoeiras de águas puras e geladas, sua biodiversidade incrível e sua gente acolhedora.



Quando Lena foi morar na vila, ainda “nas fraldas”, mal havia ruas. Eram, quando muito, picadas em meio ao mato alto, que separava as poucas casas que haviam, o comércio de secos e molhados, um pátio pra abrigar os cavalos dos viajantes...



A família veio de Guaçuí, onde nasceram o pai e a mãe, ainda viva, Dona Leonina, que até há pouco tempo enchia os olhos dos moradores e visitantes ao carregar seus enormes fardos de lenha, que buscava no sítio no caminho entre o Patrimônio e a estrada que leva ao Portal do Céu, esta, uma grande área já adentrando os limites do Parque, onde alguns moradores vivem em meio à floresta e à água abundante, e o turismo ecológico e místico encontra cenário privilegiado para existir.



A escolinha já existia, em outro formato, a praça não. E, aos poucos, o pequeno Patrimônio, localizado a pouco mais de dez quilômetros da sede do município, foi crescendo. Em 1991, em meio aos preparativos da Eco 92 – Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Sustentável – o Patrimônio da Penha recebe pela primeira vez um Encontro Nacional de Comunidades Alternativas (Enca), marcando assim o início da descoberta do lugar pelos amantes da natureza e buscadores de uma vida espiritual mais consciente.



Dois anos depois, foi criada a ONG ambiental local, ainda ativa, a Amar Caparaó –Associação para o Melhoramento Ambiental da Região do Caparaó. E no final dos anos 1990, o Fórum Itinerante do Caparaó iniciou sua ronda pelos 11 municípios capixabas do entorno direto e indireto do Parna, resultando anos depois, no Consórcio Intermunicipal para o Desenvolvimento Sustentável do Caparaó (Consórcio Caparaó), que, entre outras ações fundamentais, capitaneou a abertura da portaria capixaba para o Parque Nacional, em Pedra Menina, município de Dores do Rio Preto.



Ou é hippie ou é nativo



Nessa época, de início do turismo, chamava atenção dos nativos do lugar, toda aquela gente colorida, alegre, com sotaques e línguas tão estranhas, que passavam dias inteiros nas cachoeiras, cantando e brincando – quando eles mesmos, nascidos naquela terra, mal subiam a serra pra admirar e muito menos se banhar nas águas puras, principalmente as mulheres, que, ainda hoje, a maioria, nunca tomou um único banho nos poços e corredeiras – eram, todos, “hippies”. Muitos foram estabelecendo moradia, seja temporária ou permanente, diversificando mais a “fauna humana” local.



Pois bem, essa convivência curiosa entre os “estrangeiros” e os “nativos” foi evoluindo e se moldando às respectivas necessidades. Os pequenos comércios foram atendendo, da melhor maneira possível, os primeiros visitantes e novos moradores. Surgiu a primeira pousada, empreendimentos nos vilarejos vizinhos também foram aparecendo, criando um núcleo ecoturístico de aproximadamente 60 km, entre Pedra Roxa e Pedra Menina, passando pelo Patrimônio da Penha e Mundo Novo.



Tudo muito lento singelo, respeitando a velocidade natural que impera na região, soberana sobre os ritmos acelerados das máquinas, típico das grandes cidades. Quem chega de fora, seja pra visitar ou morar, percebe imediatamente a diferença de “densidade temporal” do lugar. A atmosfera convida a estar mais presente no aqui e agora, a caminhar atenta ao ambiente ao redor, aos ruídos, cheiros e formas que povoam as ruas, a cumprimentar os passantes, mesmo que sejam desconhecidos, a observar as crianças que brincam mais livres e seguras na praça, a sorrir mais, a acreditar mais na abundância intrínseca da Vida.



Quase vinte anos depois dessa primeira leva de novos moradores e turistas, com o Enca, o primeiro grande boom turístico na vila aconteceu, por volta de 2009. A essa altura, o lugar já constava nos catálogos turísticos estadual e regional, com divulgação em nível nacional e até internacional. A segunda opção econômica, da qual Lena fala no início da matéria, já era uma realidade consistente para boa parte dos moradores, sejam nativos ou “hippies”.



Com a projeção e o crescimento do lugar, reivindicações antigas foram finalmente atendidas e, desde meados de 2010, a instalação de uma antena de celular e o asfaltamento de uma das estradas que chegam ao Patrimônio provocam um novo boom turístico.


Em 2015, os gráficos que registram, ano a ano, o número de abertura de novos empreendimentos, de postos de trabalho ligados ao turismo e a capacidade de hospedagem e outros índices mostram setas em ascensão abrupta e, até o momento, ininterrupta.



Exercícios de democracia



Para a turismóloga Relva Rodrigues, chefe do departamento de Turismo da Secretaria Municipal de Turismo de Divino de São Lourenço, nativa da Penha e filha dos primeiros “hippies” que aqui se estabeleceram, a divulgação individual, pelas redes sociais, é um fator importante a ser estudado, como catalisador da grande exposição do Patrimônio como destino turístico. “A pessoa posta uma foto na hora nas redes sociais e aquilo já toma uma dimensão enorme. Tem ajudado muito na divulgação”, avalia.



Nas reuniões do Conselho Municipal de Turismo, que ajuda a coordenar, Relva observa o amadurecimento político das pessoas. Se no começo, as reuniões eram mais caóticas, com menos encaminhamentos de soluções, hoje ela realmente apresentam caminhos e as discussões são mais organizadas, com respeito ao tempo de fala de cada um.



As reuniões são sempre abertas e feitas juntamente com a Associação de Moradores do Patrimônio. A busca é sempre por decidir tudo em consenso e, quando não é possível, faz-se a votação. Antes do voto, porém, todos são convidados a se manifestar, e, cada um, independentemente de ser conselheiro ou não, tem um minuto de fala. “É um exercício de democracia”, orgulha-se a turismóloga.



Há cerca de um ano, as reuniões voltaram a ser mais frequentes e diversas ordenações importantes foram sendo decididas e executadas, como a manutenção de duas guaritas nas subidas das cachoeiras, com guardiães pagos pelas duas associações locais: a de moradores, e a de produtores rurais do Portal do Céu (Aprovap).



Em ambas as guaritas, a orientação é para que o turista suba a pé, com o máximo de silêncio possível, para ouvir os pássaros e outros seres da floresta, não leve bebidas alcóolicas, recolha seu lixo, não tome banho nem use protetor solar nas cachoeiras abaixo da captação de água da vila, e, principalmente, respeite a natureza e a cultura local.



Caixinhas de contribuições voluntárias recebem as doações espontâneas que complementam a remuneração dos guardiães que dedicam seus fins de semana e feriados a cuidar do lugar, seja recepcionando os visitantes, seja fazendo a ronda nas cachoeiras.



Desejos traçados



O Conselho é paritário, metade das cadeiras com o poder público municipal e metade com a sociedade civil. “O Conselho é o alimento da Secretaria”, define Relva, referindo-se à missão da Secretaria, de executar o que é definido pelo Conselho, que é soberano. 


Na última reunião, logo após o agitado feriado de Ano Novo, levantou-se a necessidade de mais policiamento e de reavaliar o acordo estabelecido informalmente com os comerciantes, sobre o horário limite para sons, sejam shows, música mecânica ou mesmo batucadas, flautas e cantorias feitas dentro das casas.



O acordo é rigorosamente fiscalizado pelos próprios empreendedores e moradores e, mesmo sendo informal, com mais restrições que a legislação municipal que embasa o Disque Silêncio, tem apoio tácito da Polícia Militar, que se compromete a orientar os transgressores – não pode punir, pois não é lei – a cumprirem a regra da comunidade. Até o momento, nos feriados é permitido até às duas da manhã, mas é possível que isso se modifique.



Numa reunião anterior, a Plenária decidiu não aprovar o pedido de um empreendedor do município vizinho, de Dores, de realizar um evento no Ano Novo, em um espaço público do Patrimônio, mas onde cobraria pela entrada. Após detalhada explanação pelos presentes, a votação foi um esmagador não à proposta.



Para além das questões práticas de curto prazo, as reuniões também dão vazão a metas de longo prazo e aos sonhos, como um portal na entrada da vila e torneiras jorrando águas das nascentes que existem dentro do Patrimônio, citadas pela cearense Glau, cuja mãe e filha se tornaram moradoras locais. Ou a tobata turística, com bancos alcochoados, para levar os visitantes com limitação motora para conhecer as cachoeiras do Portal do Céu, levantada pela Relva.



Entre o sonho e a realidade, cresce de forma ordenada o turismo no Patrimônio da Penha, já estabelecido como fonte de trabalho e renda importante para os locais. As opções também se diversificam. Já não há mais só aquele turista alternativo, sem grana. Há agora as famílias, os que querem mais conforto, atividades noturnas, que querem adquirir os artesanatos e produtos locais ... todos eles contribuindo pra diversificar e fortalecer a economia local.



“O turista que não tem como pagar uma pousada, fica em campings e casas de aluguel e movimenta toda a economia da vila, na padaria, nos restaurantes, nas lanchonetes, nos mercados”, enfatiza a diretora de Turismo do Município. “O único turista que a gente não quer é aquele do carro de som, que vem pra fazer bagunça. O mais importante é respeitar a cultura local, as regras da comunidade”, afirma.



Isso é fundamental e continua sendo a diretriz principal, passados quase trinta anos. Afinal, como bem disse, também numa reunião do Conselho, a comerciante nativa Cleonice Moreira dos Santos, “o Patrimônio da Penha é a minha casa, a gente tem que cuidar da nossa casa, pro turista, mas pra gente também”.



Mais informações turísticas sobre a região, você encontra no website Região do Caparaó Capixaba, lançado em dezembro passado pelo Consórcio Caparaó. 

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