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As contradições de Torino em defesa de grileiros do território quilombola

Ignorando dados oficiais, deputado diz que índios e quilombolas “quase” foram expulsos pela Aracruz Celulose

Ellen Campanharo/Ales

Conforme vem reiteradamente fazendo ao longo deste mês de junho, o deputado Torino Marques (PSL) usou seu tempo de fala na sessão ordinária dessa segunda-feira (29) para engrossar as críticas contra a Suzano e a defesa de um grupo de “posseiros” que ocupam “terras devolutas” reivindicadas pela multinacional na região de São Mateus e Conceição da Barra, norte do Estado.

Numa verdadeira miscelânea contraditória de dados, fatos e denominações, o deputado ignorou a história do Espírito Santo, os dados oficiais da Fundação Cultural Palmares e os estudos mais recentes feitos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), ao chamar de agricultores familiares os grupos que têm invadido o território quilombola. A prática foi identificada como grilagem pela Defensoria Pública Estadual e já se espalhou por cerca de 80% do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte.


“A questão aqui não é privativa de qualquer ideologia, antes que venham com ‘mimimi’. Aquilo não é invasão de terras, como é a prática do MST, é uma ocupação que permite o trabalho e sobrevivência que mata a fome de milhares de pessoas. Eu pedi aqui nesse plenário justiça social e continuarei pedindo eternamente. São mais de 500 famílias de posseiros, que vivem e cultivam produtos básicos para alimentação. Peço aqui o apoio das comissões das quais eu faço parte nesta Casa de Leis, de Segurança, Agricultura, Meio ambiente”, declarou, usando o fato para sublinhar a postura de seu aliado Jair Bolsonaro, de criminalização de movimentos sociais do porte do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
“Nós deputados estaduais devemos estar atentos a esses fatos, principalmente neste caso que é uma questão humanitária e social. Envolve abuso de poder, desconfiança contra autoridades de todos os poderes, envolve ameaças e o medo. Nada melhor do que implantar o medo na população. Vocês estão vendo o que está acontecendo com a Covid-19…o Espírito Santo não pode voltar aos dias de terror, quando até índios e negros eram ameaçados e quase que obrigados a abrir mão de suas terras”, disse, endossando o negacionismo que tem caracterizado o governo federal na gestão da pandemia.
Em seguida, defendeu a reabertura da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Grilagem, que investigou denúncias de grilagens de terra feitas pela então Aracruz Celulose, mas que foi extinta no mesmo ano, sem relatório final, o que motivou a abertura de uma Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal (MPF) de forma a concluir as investigações e penalizar os culpados, mediante evidências de que funcionários da empresa, usados como “laranjas”, “se apresentavam como agricultores que preenchiam os requisitos necessários, obtinham os títulos das terras e os transferiam, dias ou semanas depois para a empresa.
“No final dos anos 1960 a então Aracruz Celulose foi acusada de invadir terras indígenas dos povos Tupikins e Guaranis. Mais tarde foram incomodar os povos quilombolas da região do Sapê do Norte. A história está sendo repetida, mas não vamos deixar que se repitam a extinção de aldeias indígenas e comunidades quilombolas, como no passado muito recente. A maior parte do Espírito Santo assistiu calado a esse desmantelo, a esse massacre. Essa casa criou uma CPI que foi arquivada em 2002 e nós a queremos de novo para investigar fatos novos nesse momento”.
O tom do discurso nessa segunda-feira foi semelhante às falas feitas na última sexta-feira (25) em um vídeo gravado com a deputada federal Soraya Manato (PSL), numa reunião com os chamados posseiros. “Estamos aqui com as associações de produtores rurais de Itaúnas, Conceição da Barra aqui na região de São Mateus. E nós estamos com sangue no olho para resolver o problema dessa turma que precisa de ter escritura de suas terras onde eles já estão há mais de cinco, dez anos. É agricultura familiar, Dra. Soraya?”, pergunta Torino à colega de partido. “Sim, e nós vamos fazer o possível e o impossível para que essas famílias tenham estabilidade, que significa posse da terra. É isso que é o objetivo nosso e do nosso presidente Bolsonaro”, responde a deputada.
Dois dias antes, em outra sessão ordinária da Assembleia Legislativa, Torino pediu “justiça social” para o que vem ocorrendo “nas terras devolutas ocupadas durante muitos anos pela antiga Aracruz Celulose”, pois “aquela empresa hoje denominada Suzano tem usado sua força descomunal na Justiça contra pequenos posseiros de uma parte das terras”, narra, afirmando tratar-se de “16 comunidades que praticam ali com quase 500 famílias, a agricultura familiar” e que estão procurando ajuda de seu mandato.

“O Espírito Santo precisa se voltar para aquela situação que começou no início dos anos 1970, quando a antiga Aracruz Celulose praticava grilagem das fartas terras devolutas na região”, diz. “Na medida em que a empresa desocupava as terras, as famílias foram encontrando na ocupação uma solução de sobrevivência, para fugir da fome e da violência da cidade”.

Insistindo em afirmar que “ali se trabalha”, o deputado faz questão de criar uma oposição ao que ele diz ser praticado pelo MST, ignorando, portanto, o fato de ser esse movimento social o maior produtor de arroz orgânico do país, e um dos maiores doadores de alimentos para famílias vulneráveis durante a pandemia de Covid-19.

“São cultivados produtos de lavoura branca, aipim, feijão, abóbora, quiabo, milho e pequenos animais, com a mesma qualidade de produtos orgânicos. São organizados em grupos. Toda semana formam uma carga que vai para as feiras das cidades, onde vendem os produtos e o dinheiro volta para quem trabalha”, descreve.

A papeleira é alvo de sua artilharia, que parece querer poupar os indígenas e quilombolas, mas que, na verdade, atropela os fatos históricos para defender pessoas que, assim como a Suzano/Fibria/Aracruz, agridem as comunidades quilombolas em seu próprio território, ao invés de realizar a luta pela reforma agrária empreendida dignamente por movimentos sociais como o MST, ao ocupar terras particulares improdutivas ou devolutas de fato.

“Com essa nova investida, a Suzano parece repetir aquela fome de terra que marcou a história da Aracruz Celulose nos anos 1970 e 1980. São muitas as histórias que justificam porque o norte capixaba virou uma imensa floresta de eucalipto”, prossegue a narrativa, cometendo ainda a gafe de chamar de floresta os monocultivos de eucalipto que crescem mais do que qualquer uso do solo no Espírito Santo nos últimos quinze anos, sendo os principais responsáveis pela desertificação que assola a região.

“Queremos que a Suzano exista, que se desenvolva cada vez mais, que cresça e crie mais empregos aqui e também na Bahia, mas que não sacrifique os pequenos produtores que têm famílias para cuidar. Ficamos sabendo também de relatos que até famílias quilombolas foram incomodadas. São comunidades e populações que fazem parte daquelas terras, que fizeram história, que sofreram judiação, desde o advento da escravidão no Brasil. Estão lá por direito, assim como devem permanecer as famílias de agricultores”, declara.

“Justiça social: é essa a realidade que se impõe ali. Sou contra a Suzano pleitear glebas de terras devolutas. Estou ao lado das famílias da agricultura familiar. Estou do lado deles. Nosso mandato vai defender quem trabalha”, reforça, sem que, em nenhum momento ao longo de todo esse mês, tenha mostrado qualquer intenção de apoiar o trabalho que a Defensoria Pública já vem fazendo na região, ao buscar o diálogo e a responsabilidade do governo do Estado e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Na última reunião coordenada pelo Incra sobre o assunto, no dia 23 de junho, os mapas solicitados pelas comunidades quilombolas não foram mostrados, e a negociação não pôde avançar, sendo marcada nova reunião para o dia 14 de julho.

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