Ano passado, a cantora Anelis Assumpção lançou um dos melhores discos de 2011, Sou Suspeita Estou Sujeita Não Sou Santa. O álbum de estreia da filha do fundamental Itamar Assumpção traz a utópica Neverland, um reggae macio sobre um lugar feito apenas de paz, amor e flores. Sem crises, nem guerras.
Esse sonho com a Terra do Nunca é dividido com a cantora Céu, cuja voz preguicenta deixa ao final uma doce promessa: There is a land far far away / There is a land far far away. Essa terra distante, que existe em outro lugar, existe mesmo. Se não fisicamente, pelo menos em música.
Anelis e Céu foram buscá-la no Abyssinians (fotos acima e capa), trio vocal jamaicano que talvez melhor tenha traduzido o ardor espiritual do roots reggae e que, demos graças, se apresenta nesta quarta-feira (22) em Vitória. E com um luxuoso detalhe: o grupo começa por aqui sua estreia em palcos brasileiros.
O Abyssinians é um dos raros frutos da primeira geração do reggae jamaicano que ainda estão na ativa. Voltemos à Jamaica de 40 anos atrás. Corria o ano de 1968 quando o grupo vocal Carlton & His Shoes, liderado por Carlton Manning, gravou os singles Love Me Forever e Happy Land no lendário Studio One. O êxito foi retumbante. Mas aqui interessa-nos um outro lado da história.
Carlton é irmão de Donald Manning, que, ao lado de Bernard Collins, fundou naquele ano o Abyssinians (hoje David Morrison completa o time). Happy Land serviu a base para a criação de Satta Massagana, cântico de 1969 que fixaria para sempre o nome do trio na morada dos deuses do reggae e, cá entre os mortais, celebrando a existência da “terra distante, que existe em outro lugar”, se tornaria uma das composições mais regravadas da história do gênero.
Seria, no entanto, imprudência reduzir a magnitude do Abyssinians a seu famoso hino rastafári. O primeiro álbum “cheio” do trio saiu apenas em 1976, quase uma década após a aparição de Satta, que, aliás, batizou o disco.
As 14 canções do disco fazem de Satta Massaganna um álbum indispensável, feito de consistência musical, lirismo harmônico, consciência social e religiosidade. Muita religiosidade. As canções são antes cânticos de louvor.
Uma solene crença religiosa, no amor e no fazer-o-bem perpassam Good Lord, Know Jah Today, Abendigo, I And I, sem falar na própria Satta. A veia social também salta da garganta: se Bob Marley fez Get Up, Stand Up, uma violenta convocação à luta por direitos, o Abyssinians tem Declaration of Rigths, não tão contundente, mas semelhante em seu recado.
O álbum seguinte, Arise (1978), não apresenta o mesmo vigor musical. O que não é exatamente ruim: trata-se de um disco de cadência mais reflexiva. A espiritualidade, claro, continua, e já na abertura, com This Land Is For Everyone, sobre uma terra, a mesmíssima de Satta, onde cabem todos e qualquer um: o branco, o preto, o amarelo. Mais imersas em piedade estão Mightiest Of All e Let My Days Be Long.

Gerações se sucederam até chegarmos ao final dos anos 90 quando surge na Califórnia (EUA) o principal nome do reggae contemporâneo. O Groundation (foto acima) promove uma alquimia com o jazz e o blues que concebeu uma sonoridade única, mas também uma missão sempre delicada: como equilibrar o suingue leniente e a espiritualidade do reggae com a eficiência e precisão musicais características da banda?
A cada álbum essa pergunta é feita e respondida. Com maior ou menor nível de eficácia. Mas respondida. O Groundation vem apresentar em Vitória a turnê de lançamento de seu novo rebente, Building An Ark, lançado este ano. A noite ainda tem a banda paulista Mato Seco.
Com o Groundation acontece um interessante fenômeno. Pelo menos entre Each One Teach One (2001), talvez o mais fraco da discografia, passando pelo conceitual Hebron Gate (2002), a obra-prima da banda, e chegando ao profundo e pensativo We Free Again (2004), a ousada proposta musical é bem resolvida, em especial nos dois últimos, terceiro e quarto álbuns, respectivamente.
A partir do sexto disco, Upon The Bridge (2006), tem início um aprofundamento da “ousada proposta”: apagar ainda mais as fronteiras entre o reggae raiz e o jazz. A empreitada por enquanto culminou neste Building An Ark, mais um passo na abolição das divisas.
Talvez os fãs mais tradicionais torçam o nariz, a banda tem se mostrado mais inquieta, criando obstáculos para si mesma, o que é sempre foi uma opção (estética/artística) saudável. Em bom português, disco a disco as músicas se mostram mais cerebrais: como em Be That Way, Payaka Way (esta com direito a solo de baixo), Keep It Up ou Daniel.
O que não significa o fim da chapação. Exemplo: a canção de abertura, que batiza o disco. Ela começa num singelo piano/voz/violão para de repente virar um fumacê generalizado. The Dreamer também segue por aí, assim como, de certa forma, Payaka Way. Humility é o Groundation em seu melhor: virtuoso porém regueiro.
O disco termina com Sunlight Reflections, uma breve oração que vincula-se aos temas meditativos com que o Groundation costuma arrematar seus discos: Each One, Teach One (do álbum homônimo), Seventh Seal (We Free Again), Seesaw (Upon The Bridge), Golan to Galilee (Here I Am, 2009).
Agora vejamos ao vivo o passado e o presente do reggae. O Groundation é de casa. Ano sim e outro também a banda apresenta um show devastador. Quanto ao Abyssinians, melhor não alimentar expectativas. Deixe a coisa fluir. Quem floresceu na Jamaica dos anos 60 não está até hoje aí à toa.
Serviço
O Festival de Reggae Ilha em Paz, com Groundation, Mato Seco e The Abyssinians, acontece nesta quarta-feira (22), a partir das 22h, no Ilha Shows. Alameda Ponta Formosa, 350, Praia do Canto, Vitória. Ingressos: R$ 30 (primeiro lote/pista/meia), R$ 35 (segundo lote/pista/meia), R$ 50 (primeiro lote/camarote/meia) e R$ 60 (segundo lote/pista/meia). À venda nas Lojas Atol das Rocas (Shopping Vitória, Praia da Costa e Campo Grande), Bicho Guloso e Zepellin Lanches. Informações: 3224-3726 ou 3225-5199. Classificação: 16 anos.