Sexta, 03 Mai 2024

Em Corpus Delicti, Juli Zeh cria uma sociedade totalmente asséptica

Em Corpus Delicti, Juli Zeh cria uma sociedade totalmente asséptica
Planos de saúde, remédios, exames constantes, medidas preventivas. Há tempos que os seres humanos querem se livrar a qualquer custo das moléstias do corpo. A escritora alemã Juli Zeh imaginou como seria viver em uma sociedade asséptica e saudável, que erradicou totalmente todas as doenças. O seu livro, Corpus Delicti (2013), é ambientado em um futuro próximo regido pelo Método, um sistema apoiada no racionalismo e na ciência.
 
Durante a história, explica-se que o Método foi criado logo após as guerras do século XX, em um momento em que conceitos como nação, religião e família se dissolviam, os sistemas de garantias sociais entrava em colapso e o caos e insegurança se instauravam. O Método foi o sistema que solucionou esses problemas.
 
Entretanto, o que aparenta ser um sistema perfeito que livra o cidadão do sofrimento vai se mostrando pouco a pouco um regime autoritário, que priva o ser humano da sua liberdade. A saúde se torna um princípio de legitimação estatal e o controle total dos corpos os tornou dóceis e cativos.
 
Na obra, a manutenção da saúde é um direito e um dever do cidadão. O medo da doença e da morte se tornou um terreno fértil para o nascimento de uma ditadura e um estado de vigilância constante. Nessa sociedade um ser humano saudável é visto como norma, só assim ele está apto a alcançar os melhores resultados e a felicidade.
 
Para manter esse bem-estar comum, a ordem é manter a casa e o corpo sempre asseados, consumir apenas alimentos saudáveis, praticar exercícios físicos diariamente. O Método controla tudo isso, inclusive os esgotos para verificar os dejetos e o uso de sustâncias tóxicas. Há também chips implantados na pele dos indivíduos para facilitar o controle e o reconhecimento de cada um e qualquer cidadão que se expor ao risco de contaminação é punido por colocar em risco o bem-estar comum.
 
A protagonista do livro é Mia Holl, uma bióloga que recentemente perdeu o irmão. O irmão de Mia Holl, o idealista Moritz, suicida-se depois de ser acusado de assassinar e estuprar uma jovem. Mesmo depois do exame de DNA, que comprovou a suspeita, ele alegou-se inocente. Mia, que sempre acreditou no Método, começa colocar sua crença em dúvida, mas ela só descobre a verdade em seu julgamento.
 
Apesar do sofrimento, Mia não tem direito de se sentir deprimida e se abster de sua rotina. A bióloga então começa a ser investigada porque seus relatórios de sono, de alimentação, de exercícios e seus exames de pressão e de urina não foram entregues ou estão abaixo do normal. Essa situação é encaminhada a um tribunal e ela é tratada como uma criminosa.
 
A princípio, isso parece um exagero ficcional, mas a lógica é simples e reconhecida: o estado lhe deve assistência em caso de necessidade, mas é dever do cidadão evitar esse esforço do estado.
 
Outro personagem instigante é o famoso jornalista Henrich Kramer, que se coloca sem qualquer dúvida em favor do Método. Ele defende que por meio do Método a sociedade finalmente chegou ao seu objetivo. Ao contrário das outras sociedades, o Método não se vale de uma religião, da economia ou de uma ideologia, ele se baseia apenas na razão.
 
Enquanto o julgamento de Mia se desenvolve, ela lembra cada vez do irmão. A história é interrompida com flashbacks de quando Moritz ainda estava vivo, que provam que ele era uma alma livre e até um pouco ingênuo às vezes, nessas passagens fica difícil acreditar que ele seria capaz de cometer um assassinato.
 
Outro ponto interessante da escrita de Juli Zeh é a forma como ela desenvolve os relacionamentos. Apesar de Mia e Kramer terem interesses totalmente opostos, os dois acabam ficando extremamente próximos e atraídos pela determinação um do outro.
 
No romance também aparece um grupo terrorista chamado D.A.D, ou melhor Direito a Doença, que apoia Mia. O D.A.D prega a liberdade, o direito de fumar, nadar em um rio natural, comer uma fruta direto da árvore, andar pelas áreas não controladas, não entregar os exames médicos de rotina, namorar com quem desejar – e não apenas com aqueles que possuem um sistema imunológico compatível -, entre outras afrontas a rigidez do Método.
 
De forma sutil, Corpus Delicti critica a sociedade atual que já vive essa tirania da saúde. Mas até que ponto o homem se adequaria a essa realidade? E o governo tem mesmo o direito de intervir na vida dos cidadãos em prol do bem comum? E ser saudável é não estar doente? O que é ser saudável?
 
O livro não tem a pretensão de responder a nenhuma dessas questões e sim de criá-las e gerar muitos outros questionamentos. Entretanto, apesar dos focos de resistência, no final da história, o Método revela que continua forte e a sua manutenção não deixa espaço para heróis e mártires.
 
Serviço
Corpus Delicti
Juli Zeh
Record
254 páginas
R$ 35 (preço médio)

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